Na terça-feira, Benfica e Barcelona repetirão em Camp Nou um clássico do futebol que já tem mais de cem anos. De facto, empurrados pela sua vocação universal, os encarnados começaram a promover jogos com equipas estrangeiras cinco anos após a sua fundação e a fazer digressões internacionais a partir de 1912. Como se compreende, a dificuldade de deslocações da época levaram que essas primeiras viagens se resumissem a Espanha. Mas desde a estreia em solo estrangeiro, no dia 2 de junho desse ano, na Corunha, frente ao Deportivo, que o vício não parou. E assim, em setembro de 1920, depois de já ter jogado em Vigo, Madrid, San Sebastian e Bilbau, o Benfica deslocou-se à Corunha para disputar quatro jogos, dois frente ao Barcelona e mais dois frente ao Tarrasa, um clube que nunca passou das divisões secundárias de Espanha mas que, nessa altura, se batia taco a taco com o Barcelona, conquistando, mesmo à conta dos blaugrana, várias competições regionais como a Copa Ramón Torras, a Copa del Día Gráfico e a Copa Sport.
No dia 24 de setembro de 1920, os catalães encheram o Camp del Carrer Industria, popularmente conhecido por La Escopidora, o estádio que o presidente Juan Gamper comprara em 1909 para que o Barça não continuasse a jogar em campos emprestados. Havia a curiosidade de perceber quem eram esses portugueses que equipavam de camisolas vermelhas e que faziam questão de, ano após ano, se confrontarem com as melhores equipas de Espanha tentando tirar proveito do contacto com um futebol de muito maior qualidade do que aquele que se jogava em Portugal.
Dois jogos tiveram lugar no espaço de 48 horas. Em ambos o Barcelona foi claramente superior, vencendo por 5-0 e por 5-2. O Benfica teria a oportunidade de limpar a face nas duas partidas seguintes contra o Tarrasa (2-2 e 4-4). O jornal Mundo Deportivo considerou que o início da temporada internacional do Barcelona ficara abaixo das expectativas, mas que havia bons motivos para que o Benfica se mostrasse em La Escopidora. «A direção do clube exibiu a vontade de receber entre nós a equipa do Benfica, neste momento considerada a melhor de Portugal e a que melhor representa o futebol lusitano. Era estranho, se não mesmo incompreensível, que o Barcelona, depois de já ter sido anfitrião de clubes ingleses, franceses, suíços, checoslovacos e alemães, nunca tivesse defrontado cara a cara um adversário português. Ao compreender e remediar esta anomalia, está de parabéns a direção do clube, ficando nós agora à espera da visita de um clube italiano».
Duas doses de cinco Nessa época, o Benfica contava com algumas figuras proeminentes da história do futebol português nas suas fileiras. Vítor Gonçalves e Alberto Augusto, por exemplo, além de Ribeiro dos Reis, Fausto Peres ou Herculano de Jesus. Seria, no entanto, o guarda-redes Arsénio, que os jornais catalães teimaram em chamar sempre de Ascensi, a suscitar a simpatia geral. No primeiro jogo, após ter efetuado algumas defesas espetaculares, lesionou-se com o resultado ainda em 0-3 e teve de sair do campo. O público rendeu-lhe uma sentida ovação, aplaudindo-o de pé. «Ficaram visíveis as excelentes qualidades do keeper Ascensi que, ao defender uma bola que daria golo certo se magoou e, obrigado a retirar-se, viu os espetadores presentes oferecerem-lhe toda a sua consideração, reconhecendo-lhe inegável categoria. Acrescentamos que também o defesa Bastos nos impressionou bastante». Os cinco golos do Barcelona foram apontados por Garcia, Martinez e Sancho (primeira parte), Garcia e Piera (na segunda).
«Foi muito mais interessante o jogo de domingo do que o de sábado», continuava o Mundo Deportivo. A entrada na equipa de Vítor Gonçalves, que não atuara na véspera, fez-se sentir. «Mais aguerridos, os portugueses apresentaram-se igualmente muito mais compactos, resultado, sem dúvida, da presença a meio campo de Gonzalvez. De tal forma que o Barcelona, enganado pela fácil vitória de sábado, se viu surpreendido e passou uma grande porção da primeira parte sujeito ao futebol dos lusitanos e concedendo várias oportunidades de golo».
O dono da baliza do Barcelona era o fantástico Zamora, sempre acompanhado pela sua boneca de trapos, que ele considerava indispensável para lhe garantir sorte, embora a sua presença dentro da grande área e o estilo com que se saía aos pés dos adversários (as conhecidas zamoranas) dispensasse as deusas da fortuna. Mas só na primeira partida foi possível aos avançados benfiquistas tentarem batê-lo. No segundo jogo, foi Bruguera quem jogou entre os postes. Depois de uma primeira parte a zero, a segunda ofereceu sete golos ao público. Vinyals, de penálti, Garcia (2), Piera e Celia marcaram para o Barcelona. Vítor Gonçalves, também de penálti, e Crespo, após uma saída mal calculada de Bruguera que fez toda a gente pensar que Zamora era inimitável, assinaram os golos encarnados.
«No sábado, o capitão do Barcelona ofereceu ao capitão do Benfica um galhardete de seda com as cores do clube», registava o Mundo Deportivo. «No domingo, foi a vez de o cônsul de Portugal em Barcelona dar o pontapé de saída do jogo, gestos que caíram muito bem no público e que marcaram o caráter de amizade que a partir de agora unirá os dois clubes». Faltavam 41 anos para que Benfica e Barcelona disputassem o seu primeiro jogo oficial, na final da Taça dos Campeões de Berna. Mas encontraram-se, entretanto, por diversas vezes.