Lançado em 2007 e atualmente detido pela Amazon, o Goodreads é uma espécie de rede social para leitores inveterados. Ali cada um pode elencar, pontuar e comentar os livros que lê, ou espreitar o que se diz sobre os livros que pretende ler.
Recentemente, tendo terminado o primeiro volume de O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico no tempo de Filipe II, de Fernand Braudel (D. Quixote, 1995), fui registar o acontecimento na minha conta do Goodreads, mudando o estado do livro de ‘currently reading’ (em leitura) para ‘read’ (lido). Ao fazê-lo, fui convidado a atribuir uma classificação de uma a cinco estrelas à obra. Aí a coisa complicou-se um pouco.
E videntemente, podia ter atribuído cinco estrelas, como quase todos os utilizadores do site, e não pensar mais nisso. Afinal, que diabo, é um clássico, um livro pioneiro, um monumento, uma bíblia para os historiadores.
Mas não estaria a ser inteiramente honesto se o fizesse. As primeiras 100, 120 páginas deixaram-me de boca aberta de admiração e de espanto. (A propósito, já ouvi muitas pessoas dizerem: ‘Bastou-me ler algumas páginas para ficar absolutamente rendido’. Cuidado com estes comentários: normalmente o ‘bastou-me ler algumas páginas’ significa que não se foi além disso).
Quanto ao início, cinco estrelas, portanto, sem qualquer dúvida. E o meu entusiasmo manteve-se intacto até por volta da página 300. Mas havia ainda um longo caminho por percorrer.
Por volta da página 300, à medida que os números e as estatísticas foram ganhando terreno sobre o texto, começaram a surgir os primeiros obstáculos. Os cálculos demográficos evidentemente assumiram-se como um terreno pedregoso; as considerações sobre as tonelagens dos navios produziram um ligeiro enjoo, como águas agitadas; as oitenta páginas sobre a cotação e a circulação dos metais preciosos, em especial o ouro, constituíram um teste à paciência; e, por fim, as cerca de 40 páginas sobre o trigo, em termos de estímulo intelectual, foram como ficar a pão e água…
Se no início do Mediterrâneo de Braudel temos o tempo longo da geografia e das paisagens, da metade do livro para diante, grosso modo, assistimos a uma pulverização de espaços, datas, atividades, bens e acontecimentos. A unidade desagrega-se. À reflexão perfeitamente maturada, sucede-se um manancial de informação mais ou menos em bruto da qual só um leitor mais especializado poderá aquilatar toda a riqueza e retirar as devidas ilações.
Nalgumas alturas, a leitura do clássico de Braudel foi uma viagem em que o vento soprou de feição. Mas noutras assemelhou-se mais a uma travessia tumultuosa. Ou a uma batalha.
«É difícil um leitor deste livro não ficar com a impressão de que a ‘história total’ não difere muito da guerra total», escreveu o historiador J. H. Elliott em 1973, numa crítica à obra. «Em ambos os casos deita-se lá para dentro tudo o que se tem».
Se Braudel deitou para o seu livro tudo o que tinha, não sei. Desconfio que sim. O que tenho a certeza é que dei tudo o que tinha nesta leitura. O combate deixou-me esgotado, mas satisfeito por ter conseguido finalmente derrubar o gigante de setecentas páginas. Quando ganhar coragem atiro-me ao segundo volume: falta ainda um round para poder dar por vencida a grande batalha do Mediterrâneo.