Boris Johnson mascarou-se de polícia, de gorro, impermeável preto e até um colete à prova de bala, para acompanhar uma série de rusgas a suspeitos de tráfico de droga em Liverpool, esta segunda-feira de madrugada. O objetivo do primeiro-ministro britânico era ir ao terreno anunciar a sua nova política para a velha guerra às drogas. Mas talvez tenha feito a viagem ao norte do país desnecessariamente. Poderia ter encontrado bastantes estupefacientes mesmo ao pé de si, em Westminster, dado que foram encontrados vestígios de cocaína em 11 das suas 12 casas de banho, de acesso exclusivo a pessoas com passe parlamentar, incluindo numa casa de banho mesmo ao lado do gabinete de Johnson, avançou o Sunday Times. O próprio presidente da Câmara dos Comuns, Lindsay Hoyle, viria a contactar a polícia de Londres devido à presença de drogas, acrescentou a Associated Press, tendo sugerido que, além dos cães farejadores já utilizados no Parlamento para procurar explosivos, também haja cães treinados para detetar droga.
Quem sabe que resultado daria um teste semelhante no Parlamento português, nos escritórios de gigantes da finança ou de advogados poderosos? Contudo, no Reino Unido, como habitual, o foco das políticas de combate à droga continua bem longe das elites, tendo Johnson prometido colocar mais polícias nas ruas ao longo dos próximos dez anos, anunciando um investimento de 300 milhões de libras (o equivalente a mais de 350 milhões de euros) e penas mais pesadas para utilizadores de drogas, incluindo a perda de passaporte e da carta de condução, bem como a proibição de sair de casa à noite. A polícia britânica ainda receberá o poder para remexer nos telemóveis de suspeitos traficantes de droga e contactar os seus clientes, para de alguma forma os assustar.
O primeiro-ministro apontou baterias sobretudo aos utilizadores de droga de classe média, ou por “lifestyle”, nas suas palavras. “Estas pessoas acham que é um crime sem vítimas. Não é. O país está cheio de vítimas disso”, acusou Johnson, em declarações ao Sun. As drogas “não te vão fazer mais feliz. Não te vão fazer mais bem sucedido. Não te vão fazer mais fixe”, assegurou.
A ironia não passou despercebida a muitos comentadores. Que diferença se via em relação ao Boris de 2005, que contou perante as câmaras de televisão como experimentara cheirar cocaína. “Tentei, sem sucesso, há muito tempo”, recordou o futuro primeiro-ministro, bem disposto. “Espirrei”, continuou, mexendo atrapalhadamente no cabelo, a sua imagem de marca, entre risota geral.
Talvez fosse mais fácil encontrar utilizadores de droga num encontro de dirigentes do partido de Johnson, feroz opositor da legalização das drogas, do que em qualquer rua de Londres. Aliás, quando chegou à liderança dos conservadores, em 2019, cinco dos seus seis adversários admitiram publicamente ter consumido estupefacientes. Incluindo o então ministro dos Negócios Estrangeiros, Jeremy Hunt, bem como o ministro do Ambiente, Michael Gove, velhos amigos de Johnson desde os seus tempos na Universidade de Oxford – alguns comentadores questionam se não terá sido com estes que Johnson fez a sua experimentação de juventude.
O mais estranho é que todas estas admissões públicas, foram associadas ao estigma da droga estar em quebra, não havendo grandes represálias. “Os danos por parecer estar a esconder algo, ou por ser acusado de hipocrisia, são maiores do que os estragos por admitir algo que fizeste na tua juventude”, explicou na altura Tim Bale, professor de Política Universidade Queen Mary, de Londres, à revista Time – ainda assim, todos os candidatos à liderança dos conservadores mantiveram a sua típica promessa de medidas duras contra a droga.
Isto apesar do consumo de droga continuar a ser generalizado entre dirigentes políticos e deputados britânicos, de ambos os lados do espetro partidário. “Há uma cultura da cocaína no Parlamento”, admitiu um veterano de Westminster ao Sunday Times, que encontrou vários relatos de assessores que se deparam com deputados a cheirar linhas no escritório, ou até no meio de festas onde estavam jornalistas. “Algumas pessoas estão nisso o tempo todo e são completamente descontraídas quanto a isso. Outras estão a explorar”, continuou a fonte. “Eles acham que são intocáveis, protegidos pelos seus amigos na bolha”.
A questão é que não se trata de uma presunção assim tão descabida. Por mais que políticos utilizadores de estupefacientes incentivem a guerra às drogas, sabem que é improvável que sejam prejudicados. “Mas isso vai certamente afetar comunidades pobres e racializadas, que já sofrem o grosso da violência policial”, notou Ann Fordham, diretora do International Drug Policy Consortium.
Apesar da descriminalização da droga não estar na agenda nem dos conservadores nem dos trabalhistas, o modelo português cada vez é mais citado como exemplo no Reino Unido. A descriminalização das drogas em Portugal, em 2000, levou a “significativa poupança a nível financeiro, menos encarceramento, significativos benefícios para a saúde pública e nenhum aumento significativo no uso de drogas”, saudava um relatório conjunto da Universidade Johns Hopkins e da revista Lancet, de 2016, citado esta semana pela New Statesman.
Trata-se de uma discussão mais urgente que nunca, com o número de mortes por overdose e adição a disparar no Reino Unido, batendo as 4500 mortes o ano passado, o mais alto valor registado desde o início dos anos 90. Isto num momento em que se torna cada vez mais óbvio que a guerra às drogas, declarada por Richard Nixon em 1971, ou falhou ou até foi contraproducente – só entre 2011 e 2013, o consumo global de droga aumentou em mais de 30%, segundo o International Drug Policy Consortium.
“A total eliminação das drogas? Continue a sonhar”, sugeriu recentemente Helen Clark, diretora Global Commission on Drug Policy, a um jornalista do Observer. “Nunca houve um momento na história humana em que os seres humanos não tenham recorrido a algum tipo de substâncias que os afaste da sua realidade, seja porque motivo for”.