Por Felícia Cabrita e Joana Mourão Carvalho
Todas as testemunhas ouvidas no inquérito ao acidente do carro do ex-ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, afirmaram que a viatura em que este seguia, e que acabou por atropelar mortalmente um trabalhador que se encontrava na A6, apenas levava quatro pessoas, continuando sem se perceber como é que a procuradora do Ministério Público que deduziu a acusação chegou à conclusão de que seriam cinco, incluindo abusivamente um elemento do Corpo de Segurança da PSP, que é citado para ilibar o antigo governante.
Questionada sobre este erro, detetado pelo Inevitável na passada segunda-feira, a procuradora-geral da República, Lucília Gago, permanece em silêncio, sendo que desta falsa interpretação dos factos pode resultar responsabilidade disciplinar ou mesmo criminal para a magistrada que elaborou a acusação de homicídio por negligência ao motorista que conduzia o carro, se os advogados das partes entenderem que o erro cometido na acusação foi intencional. O erro poderá ainda ser corrigido na fase instrutória, se assim for requerido.
MP alinhou factos que agravam acusação ao motorista
O despacho redigido por Catarina Silva, que o Nascer do SOL consultou, refere que no carro do ministro seguiam o motorista mais quatro ocupantes, conclusão que a procuradora atribui à declaração em sede de inquérito do condutor Marco Pontes, mas que todos os depoimentos das testemunhas do processo contrariam. Todos referem que no carro do ministro estava o condutor e mais três ocupantes: no ‘lugar do morto’, ia o oficial de ligação da GNR no MAI, e, atrás, ia Eduardo Cabrita e um dos seus assessores de imprensa. O próprio Marco Pontes, nas declarações que prestou, refere isso mesmo, pelo que só poderá ser um erro intencional ou involuntário do despacho de acusação.
Já o elemento da PSP, Rogério Meleiro – que a procuradora refere como sendo a quinta testemunha que seguia na viatura –, ia, por decisão e ordem do próprio ministro, num outro carro atrás, acompanhado por mais dois colegas.
Segundo o Inevitável apurou junto de fontes da PSP, o protocolo do Corpo de Segurança desta força policial estabelece que o segurança do ministro deve acompanhá-lo sempre na viatura em que segue, porque «é ele quem deve controlar tudo o que se passa e analisar qualquer perigo que possa surgir». Além do mais, «é o único que tem legitimidade para exigir que se ande mais depressa ou mais devagar, que pode ligar ou desligar os sinais de emergência, ligar ou não as sirenes, mudar a trajetória, enfim, dar o corpo às balas».
Também de acordo com as normas protocolares, na ausência do elemento de segurança pessoal dentro do carro, quem manda na viatura é o ministro.
Assim, este erro factual da acusação contribui para retirar responsabilidades ao ministro. Isto porque, como se pode ler no despacho, Rogério Meleiro é uma das três testemunhas – juntamente com o oficial de ligação da GNR e o assessor do governante – que corroboram que Cabrita não deu qualquer indicação ao motorista sobre a velocidade a que devia circular: «A testemunha ocupava o lado direito da viatura conduzida por Marco Pontes. Desconhece a que velocidade circulava a viatura, confirma o posicionamento dos elementos que compunham a comitiva e afirma que o senhor ministro da Administração Interna não deu qualquer indicação quanto à velocidade a que devia de seguir a viatura, nem nunca foi estipulada qualquer velocidade de deslocação pelo Corpo de Segurança Pessoal».
Aliás, se Rogério Meleiro não estava dentro do carro, não poderia dar qualquer indicação ao condutor. Mas também não poderia afirmar que o ministro não deu qualquer indicação.
Contudo, nas declarações que o ex-governante prestou em sede de inquérito, a que o Nascer do SOL teve acesso, o próprio garante: «Não dei nenhuma indicação quanto à velocidade a adotar nem qualquer indicação sobre a urgência em chegar ao destino».
MP desvaloriza protocolo e retira responsabilidade a MAI
O grau de ameaça atribuído pelos Serviços de Informações de Segurança (SIS) a Eduardo Cabrita era de grau 3, ou seja, elevado, dadas as polémicas em que esteve envolvido. Por essa razão, o ex-ministro andava geralmente com uma equipa composta por 3 a 4 seguranças.
Estes elementos da Polícia, formados no Instituto Superior de Ciências Políticas e Segurança Interna, são treinados para reconhecer o perigo à distância – e uma das estratégias seguidas na deslocação de uma ‘entidade’ (que é como são referidos os elementos do Governo a quem dão protecção) é levar na viatura da ‘entidade’, ao lado do condutor, o seu ‘protetor direto’, que é o homem que serve de escudo à ‘entidade’ se houver um atentado. Rogério Moleiro, que estava incumbido dessa missão naquele dia, foi mandado pelo ministro para a viatura de trás, onde seguiam os restantes seguranças.
Nunca se saberá se, caso não tivesse abandonado o seu posto, o acidente teria ocorrido – e, em última análise, isso é apenas da responsabilidade do ministro.
Outro dos argumentos que serviu para incriminar o motorista foi o facto de este circular pela esquerda. Apesar de ter justificado que eram ordens do Corpo de Segurança Pessoal – e os elementos desta Polícia terem referido que ele ia na posição correta – a magistrada não aceitou o argumento.
Nuno Mendes, chefe de segurança da Alta Entidade, questionado pela GNR sobre pormenores do Protocolo de Segurança, disse não poder falar de matérias confidenciais, e que essas questões deveriam ser remetidas ao Diretor Nacional da PSP.
«Nós não podemos entregar o manual de práticas de segurança e colocar os nossos procedimentos na esfera pública. Seria a total perda de eficácia dos métodos. Mas a PSP podia responder a questões especificas sobre matérias em causa», adiantou fonte da PSP ao Nascer do SOL.
Catarina Silva podia ter feito uma diligência junto daquela Polícia para esclarecer estes procedimentos que atenuariam a responsabilidade do motorista, mas não tomou essa iniciativa.
Na estrada, o Corpo de Segurança toma a decisão de como devem seguir as viaturas. Naquele caso, seguiram-se as normas de quando se está numa autoestrada (ou há duas faixas): os carros vão desenquadrados, sendo que o carro do ministro segue à esquerda e o da segurança, que faz de escudo, à direita.
O Ministério Público considerou, ainda, que Marco Pontes conduzia em excesso de velocidade no momento de embate (a cerca de 163km/h, conforme a peritagem de especialistas da Universidade do Minho), alegando que o motorista «violou as regras de circulação rodoviária, sendo que não circulava em serviço de urgência de interesse público». Também, segundo a acusação, a comitiva «não fazia uso da sinalização legalmente imposta para o efeito».
Contudo, o manual de Segurança refere que, «quando o ministro se desloca em trabalho é sempre em serviço urgente de serviço público» e «não havendo viaturas para ultrapassar não há necessidade de as luzes irem ligadas».
Em relação ao excesso de velocidade, também há uma exceção no Código da Estrada que estabelece que a prática de uma contraordenação do género não dá lugar à instauração de procedimento quando se trata de «agentes das forças e serviços de segurança e órgãos de polícia criminal», ou «condutores de veículos em missão urgente de prestação de socorro ou em serviço urgente de interesse público».
O despacho também não manifesta dúvidas sobre os equipamentos de sinalização dos trabalhadores: «Envergavam botas de proteção (com biqueira de aço) e vestuário de alta visibilidade (colete refletor e calças com faixas refletoras)». Além de acrescentar que «a atividade em causa estava devidamente sinalizada por veículo de proteção que, no taipal de trás, dispunha do sinal de trabalhos na estrada, como complemento dispunha do sinal de obrigação de contornar obstáculos à esquerda e duas luzes rotativas, a qual se encontrava a cerca de 100m/150m do local de realização dos trabalhos».
A falta de sinalização foi sempre referida pelo ex-ministro e todos os membros da comitiva que o acompanhavam afirmam que a carrinha de sinalização de obra estava à frente do local do embate. E, por isso, poderá ser verdade que no percurso até ao embate não tenha sido possível ver qualquer sinalização, que não existiria. O próprio condutor da carrinha de sinalização explica no seu depoimento que o embate terá ocorrido a cerca de três metros do local onde estava parada a viatura – e que terá ido nessa mesma carrinha avisar os colegas que estavam mais à frente, tendo depois feito marcha-atrás para voltar ao local do acidente.