No dia 18 de Dezembro de 1921, a página 2 do diário O Seculo era, de certa forma, uma página listada a negro. A notícia de abertura falava da romaria em memória do vice-almirante Machado dos Santos, fundador da República, ao cemitério do Alto de São João.
Cá mais abaixo, ao lado da coluna dedicada à necrologia que dava conta dos funerais da véspera e anunciava os do dia, bem como as convocatórias para as reuniões dos bancos e das companhias, das associações de classe e dos socorros mútuos, vinha o registo preocupante de uma desordem no Casalinho da Ajuda durante a qual o fogueiro Joaquim Ramos foi atingido com uma pedrada na cabeça e da queda do alto da ponte de Braço de Prata de uma mulher que regressava de um casamento. Depois, a duas colunas, vinha o título: “O ENCONTRO PORTUGAL-HESPANHA – Os hespanhoes triunfaram mas os portugueses honraram o ‘foot-ball’ nacional”.
E lia-se, tal e qual como aqui fica: “Os jogadores de ‘foot-ball’ portuguezes realizaram hontem, em Madrid, o seu primeiro encontro oficial.
É já do conhecimento do público o resultado do ‘match’, pois o ‘placard’ do Seculo no Rocio, afixou, pelas 17 horas e meia, o seguinte telegrama: MADRID, 18 – O encontro de ‘foot-ball’ realizado hoje em Madrid, foi de 3 ‘goals’ a 1 a favor dos hespanhoes – (Seculo)
Acrescentamos, porém, ao telegrama que o resultado para a ‘équipe’ portugueza, apesar de sofrer uma derrota, não desvalorisa o ‘foot-ball’ nacional.
Assim é, de facto, pois ainda há bem pouco tempo os jogadores belgas, vencedores dos últimos jogos olímpicos, considerados, portanto, campeões do mundo, sofreram a derrota dos hespanhoes de 2 ‘goals’ a 0.
Não será o resultado do encontro Portugal-Hespanha honroso para nós?
Certamente que sim e teremos de atender à má confecção do ‘team’, às dificuldades que a AFL teve para o organisar e a falta de interesse manifestado por várias entidades, a começar pelo Estado, que dificilmente concedeu licença a alguns jogadores, funcionarios publicos.”
“MADRID, 18 – Realisou-se o desafio de ‘foot-ball’ entre portuguezes e hespanhoes, perante uma assistencia bastante numerosa. Os hespanhoes ganharam por três partidas contra uma – (Seculo)”.
Vida difícil O ano de 1921 foi um ano conturbado em Portugal.
Aliás, não apenas em Portugal. Através de toda a Europa, os anos que mediaram entre 1919 e 1923 seriam marcados por focos de anarquia, de instabilidade e de perturbações generalizadas. A Conferência de Paz de Paris tentava reordenar um mundo saído das cinzas da I Grande Guerra e da realidade crua de mais de treze milhões de mortos. Os Quatro Grandes (Inglaterra, França, Itália e Estados Unidos) liderados por Lloyd George, Georges Clemenceau, Vittorio Orlando e Woodrow Wilson impunham à Alemanha, através do Tratado de Versalhes, condições humilhantes – e desde então sempre contestadas – para a rendição, enquanto a recém criada Sociedade das Nações redesenhava fronteiras e distribuía as antigas colónias alemãs de África e do Médio Oriente pelas áreas de influência dos aliados.
O crédito internacional de Portugal estava pelas ruas da amargura. A tentativa de restauração da Monarquia levada a cabo pelas Juntas Militares em 1919, com o coronel Paiva Couceiro a estabelecer durante mais de um mês a Junta Governativa do Reino entre o Minho, Trás-os-Montes e o Vouga, naquela que ficou conhecida pela Monarquia do Norte, atirara o país para uma guerra civil da qual saiu politicamente muito enfraquecido. As delegações portuguesas na Conferência de Paz, chefiadas por Egas Moniz e, mais tarde, por Afonso Costa, dificilmente conseguiram fazer valer os pontos de vista de uma nação que exigia ser reconhecida como um participante activo no palco da guerra e clamava pela integridade das suas colónias.
Portugal sofre os efeitos catastróficos da inflação, da desvalorização da moeda, das revoltas sociais. Grassa a incompetência política e administrativa, instala-se o descontentamento e o descrédito em largas franjas da população, os oficiais do exército, reforçados no seu prestígio pelas acções militares chefiadas durante a Grande Guerra, exerciam grande influência no governo do país.
António José de Almeida tinha sido eleito para o cargo de Presidente da República, o Partido Democrático era o mais votado mas, sem maioria, ia construindo ministérios ao sabor das conjunturas. Os Governos duravam, em média, de três a seis meses, mas houve alguns que não duraram mais de dez dias! Em 1921 o Partido Liberal chegou ao poder após eleições antecipadas. António Granjo presidia ao Governo mas a revolta de 19 de Outubro redundou na “Noite Sangrenta” que testemunhou o seu assassinato, bem como o de outros políticos republicanos como Carlos da Maia e Machado Santos. Os revolucionários manter-se-iam no poder apenas por três meses. As eleições de Janeiro seguinte dariam nova a vitória ao Partido Democrático e a António Maria da Silva.
Em Madrid Como se vê, talvez Portugal não estivesse, nesse mês de Dezembro de 1921, com grande disposição para se debruçar sobre as peripécias da viagem da sua primeira selecção nacional de futebol. Mas veremos como rapidamente a popularidade da selecção se confundiu com a popularidade do próprio jogo, e esta se tornou um pólo de vincado nacionalismo que permitia à população portuguesa esquecer-se dos problemas internos constantes do país. Hobsbawm tinha razão quando escrevia: “A comunidade imaginada de milhões de habitantes de um país parece mais real na representação de uma equipa de onze jogadores conhecidos”.
O I Congresso Económico Nacional exigia a intervenção das forças vivas da nação nos negócios do Estado; estudava-se a reorganização do Exército Colonial; o Teatro Nacional levava à cena Casa Cercada e, no Coliseu, a companhia de circo Loup and Ladies prometia matinés elegantes. Mas o jogo dos ingleses mexia com as pessoas. E para a tarde do dia de Natal, a disputa entre o Sporting e os checos do Union de Praga prometia enchente no Campo Grande.
Há mais de quarenta anos que o futebol tinha entrado em Portugal. Um inglês, claro está!, organizara um “match” na Planície da Achada, na Camacha, na ilha da Madeira, onde existe ainda hoje uma lápide a assinalar o acontecimento. Estávamos em 1875. Mas só no final dos anos 80, com a espectacular chegada de Londres de Guilherme Pinto Basto trazendo bolas de futebol é que o entusiasmo se espalhou por toda a Lisboa e, por arrasto, ao país.
O encontro de 1888, entre um grupo e desportistas portugueses e o clube inglês do Cabo Submarino, formado por trabalhadores que tinham a tarefa da instalação do primeiro cabo telefónico ligando a Europa à América, ficará por ser o primeiro jogo “a sério” disputado em Portugal. O final do século XIX já nos dá a conhecer vários clubes de futebol, mas a União Portuguesa de Futebol só surge em 1914 e as primeiras competições organizadas a partir de 1922. Os campeonatos nacionais terão de esperar até aos anos 30. E não deixa de ser caso singular, esse, de termos uma selecção nacional antes de se institucionalizar qualquer tipo de prova interna.
Mas regressemos a Dezembro de 1921. Não existia ainda a Federação Portuguesa de Futebol, mas sim a União Portuguesa. A recém formada selecção portuguesa que se prepara para a grande aventura de uma viagem de comboio até Madrid onde jogará, em Manzanares, o seu primeiro confronto, leva já um enorme atraso em relação a muitas outras selecções do Velho Continente. Países como a França, a Holanda ou a Áustria disputam confrontos internacionais desde o primeiro quinquénio de 1900; Inglaterra e Escócia defrontam-se em pelejas animadíssimas desde 1870, ano do primeiro jogo disputado entre selecções, precisamente um Inglaterra-Escócia, que teve lugar em Londres,no mês de Março, com o resultado de 1-1. O mesmo não se passa com a Espanha, no entanto. Apesar de ser um dos países fundadores da Federação Internacional de Futebol Association (FIFA), em 1904, a selecção espanhola iniciara a sua carreira somente um ano antes, durante o Torneio Olímpico de Futebol dos Jogos disputados na Bélgica.
O jogo Quando O Seculo considerava os belgas como campeões do Mundo não andava muito longe da verdade. De facto, entre os Jogos de 1908, em Londres, e de 1928, em Amesterdão – dois anos antes de ter início o primeiro Campeonato do Mundo de Futebol –, o futebol das Olimpíadas servia, pelas suas características universais, de aferição à qualidade internacional das selecções que o disputavam.
Em 1920, em Antuérpia (Antuérpia era a cidade sede, mas os encontros espalharam-se também por Bruxelas e La Gantoise), estiveram ausentes os países que saíram derrotados da Guerra de 14-18, Alemanha, Áustria e Turquia, e as equipas da Jugoslávia, do Egipto, da Grécia e da Espanha fizeram a sua estreia absoluta no mundo do futebol. A competição disputou-se em sistema de eliminatória até à final. Belgas e Checos foram os finalistas, mas a confusão instalou-se mesmo antes do final da primeira parte, quando a equipa da casa vencia por 2-0. Queixando-se de parcialidade por parte do árbitro inglês, a Checoslováquia abandonou o campo, tendo sido de imediato banida pela FIFA. Um “play-off” para encontrar os segundos e terceiros classificados foi montado em cima do joelho. A França, derrotada pela Checoslováquia nas meias-finais, ficou de fora porque os seus jogadores já tinham regressado a casa.
O comportamento dos espanhóis que, após terem vencido a Dinamarca – considerada então uma das mais fortes equipas da Europa – graças a um golo de Patricio, tinham tombado aos pés dos belgas nos quartos-de-final (1-3), foi brilhante. A sua galopada pela Medalha de Prata tornou-se imparável: 2-1 à Suécia; 2-0 à Itália; 3-1 à Holanda. O seu guarda-redes, Zamora, ganhava a fama que faria dele uma lenda. No ataque, o esquerdino Acedo, Sesumanga e Pichichi (cujo nome ainda é símbolo do melhor marcador do campeonato espanhol), garantiram nove golos e davam à Fúria a aura de selecção fortíssima. Como que a dar razão ao que prometera durante as Olimpíadas, a desforra frente aos belgas, marcada para Outubro do ano seguinte, em Bilbao, não deixou dúvidas: vitória por 2-0 com dois golos de Alcantara.
Era com base em tudo isto que os jornais portugueses que se debruçaram sobre o assunto, O Seculo e o Diário de Notícias, exaltavam a renhida derrota dos portugueses. E, no dia seguinte, O Seculo desenvolvia a reportagem do jogo e voltava a dedicar-lhe um artigo na sua página 2 que aqui se reproduz sem alterar uma vírgula: “O DESAFIO ENTRE PORTUGUEZES E HESPANHOES CHAMOU UMA GRANDE ASSISTENCIA E PROVOCOU GRANDE ENTUSIASMO MADRID, 19 – A partida de ‘foot-ball’ entre portuguezes e hespanhoes efectuou-se no meio de grande anciedade. Mais de 12.000 pessoas assistiram ao desafio e no campo as tribunas ostentavam colgaduras vendo-se bandeiras dos dois paizes entrelaçadas. Os vivas a Hespanha cruzaram-se de mistura com os vivas a Portugal. Os hespanhoes começaram jogando com grande impeto e, poucos momentos depois, Meana com um remate de cabeça consegue o primeiro ponto para a Hespanha; 5 minutos mais tarde Alcantara consegue o segundo.
Continua o desafio, ganhando bem as duas ‘équipes’. Termina então o primeiro tempo, com dois pontos a favor de Hespanha e nenhum a favor de Portugal. No segundo tempo, Alcantara consegue o terceiro ponto para a Hespanha, o que estimula os portuguezes, que procuram dominar os hespanhoes, mas não fazem ponto algum, porquanto estes são superiormente aparados pelo ‘keeper’ hespanhol.
Os portuguezes conseguem fazer um ponto, em virtude de uma mão metida na arena do ‘goal’, o que dá ocasião a uma enorme ovação a Portugal.
A partida termina, contando os hespanhoes 3 pontos e os portuguezes 1. Ovações e ‘hurrahs’ tanto à Hespanha como a Portugal.
O arbitro do desafio foi Cazelle, do colégio belga, que tambem foi muito ovacionado pela imparcialidade e oportunismo que deu provas.”
Para a história, eis o registo desse primeiro confronto ibérico:
Estádio Martinez Campos, do Atlético de Madrid, em Madrid
Árbitro: M. Barette (Bélgica)
ESPANHA: Zamora; Pololo, Arrate ‘cap.’ e Balbino; Meana e Fajardo; Pagaza, Arbide, Sesumanga, Alcantara e Olaso
PORTUGAL: Carlos Guimarães (Internacional); António Pinho (Casa Pia), Jorge Vieira (Sporting) e JoãoFrancisco (Sporting); Vítor Gonçalves (Benfica) e Cândido de Oliveira (Casa Pia ‘cap.’); J. Maria Gralha (Casa Pia), António Augusto Lopes (Casa Pia), Ribeiro dos Reis (Benfica), Artur Augusto(F.C.Porto) e Alberto Augusto (Benfica)
Golos de Alcantara (2), Meana e Alberto Augusto.
A Selecção Nacional tinha nascido.