‘Não concordo com educar as crianças como neutras’

Aos 81 anos, continua a dar consultas quatro dias por semana. Médica endocrinologista, rosto das Brigadas Revolucionárias, antiga militante do PCP e defensora do SNS, há um ano contraiu covid-19 na noite de Natal, doença que levaria o ex-companheiro Carlos Antunes, com quem se sentou então pela última vez à mesa. Admite preocupação este ano…

Depois do que viveu no Natal passado, do seu internamento, da morte de Carlos Antunes, escreveu um forte testemunho como alerta e agradecimento ao SNS. A que momentos mais tem regressado nestes meses, àquele jantar de Natal, ao período que esteve internada com covid-19?Agora que está a aproximar-se o Natal estou muito com a imagem da cadeira vazia. Vem-me todos os dias à cabeça. A morte é difícil. O Carlos não vivia comigo, tinha uma casa alugada em frente a mim, sempre que os netos estavam presentes ele estava connosco e agora ao jantar de Natal a cadeira vai estar vazia. Cadeiras vão estar vazias. Até já pensei pôr a mesa de outra maneira. Sou naturalmente a pessoa que se lembra mais, as crianças esquecem mais depressa. Não acredito que as pessoas vão para o céu, para o inferno, para ao pé dos anjinhos, deve ser cómodo. Mas as memórias ficam sempre e é dessa forma que as pessoas estão presentes. 

Está preocupada com este Natal?
Estou. Por aquilo que vejo, mesmo em pessoas que estão vacinadas, com segunda dose e mesmo já com dose de reforço, sei de casos em que foram contaminadas. Por outro lado, embora Portugal tenha a maior taxa de vacinação da Europa, como sempre foi nas vacinas, há pessoas que acho que talvez também com problemas de personalidade e que decidem que não se querem vacinar e que podem contagiar mais os outros. Esta estirpe pelos vistos tem muito mais contagiosidade. Por isso este é o risco e antes do Natal  pelo menos deve fazer-se um teste rápido, que é o que também vou fazer, apesar de ter os anticorpos elevados.

Escreveu que a imprudência abriu a porta ao invisível.
Sim, não sabemos. A prudência são as regras que têm sido indicadas pela DGS, máscara e metro e meio de distância. Claro que a comer à mesa não fazemos isto e foi assim que no ano passado nos contaminámos. Espero que este ano estejamos mais cientes disso e vejo que as pessoas estão mais receosas, morreu muita gente. É um tempo de máscara que é difícil ultrapassar, é uma nova vida em que as pessoas estão mais distantes e mais escondidas das outras e isto é difícil para todos.

Ia morrendo com uma ‘hipoxemia feliz’, uma das características da covid-19. Sendo médica, surpreendeu-a a doença quando a sentiu na pele?
Acho que teria morrido, sim. Nunca tive falta de ar e naquele momento também não tinha, tinha febre. Quando fui para o hospital vi a imagem dos pulmões estavam infiltrados de alto a baixo, como nunca tinha visto. Com essa tal hipoxemia feliz, que foi uma realidade nova com a covid-19: significa que há pouco oxigénio nos glóbulos vermelhos do sangue mas a pessoa não sente, não percebe que está em perigo. O pai de uma colega minha morreu assim, só tinha 70% de saturação. Eu não tinha uma situação tão flagrante, tinha 80% a 90%, mas os pulmões estavam cheios.

Ficou com sequelas?
Nenhumas. Fui muito bem seguida no hospital.

Mesmo sendo tratada como ‘senhora Isabel’ e não como a médica da casa no Santa Maria.
O médico que me auscultava, um jovem interno, esse tratava-me como profissional, mas o resto das pessoas não. Um interno muito gentil, muito cuidadoso e com práticas de bom médico que me impressionaram.

Que auscultava à ‘velha maneira’. 
Que era o que eu ensinava aos alunos, ensinava a fazer a história e observação clínica. Hoje, o que prejudica muitas vezes é os médicos estarem agarrados ao computador, a preencher papéis, questionários, com o doente de lado, e ali não: ele ia ouvindo e ia-me descrevendo o que ia ouvido, que é a maneira como se deve auscultar. Mas quando digo que fui bem seguida falo também do período após ter tido alta e penso que isso poderá ter feito a diferença. Tinha feito muitos corticoides no hospital, vim ainda com muitos para casa e cumpri aquilo tudo, o que significava muitos comprimidos por dia. E não sei se todas as pessoas que têm alta seguem as coisas com muito rigor.

São mais velhas, nos lares não há sempre pessoal suficiente…
Sim, tem de haver acompanhantes. Acho que pode ter havido dificuldades de seguimento. Depois houve um colega meu de Pneumologia que me disse para continuar a fazer os broncodilatadores, uma colega que estava a seguir estes doentes e que me disse para fazer anticoagulantes porque podia dar embolias cardíacas. Uns 10, 12 dias depois fui chamada para a fisioterapia do hospital, avaliaram-me e prescreveram-me exercícios. Fiz os exercícios regularmente em casa, todos os dias. Com tudo isto, há pouco tempo fiz um raio-X do tórax e estava tudo limpo e as análises bem. Recuperei totalmente, não tive sequelas.

Essa sua descrição mostra bem a quantidade de meios no SNS alocados à covid-19 para além dos cuidados intensivos de que se falou mais e o apoio que pode ser necessário mesmo em casa.
Acho que se falou pouco dos cuidados primários e a maioria dos doentes foram seguidos nos centros de saúde. Sei de um caso na Moita em que a certa altura havia 600 doentes para controlar. Significa ligar diariamente para 600 pessoas, depois a saúde pública tem de ligar a perguntar com quem esteve, onde esteve. Claro que depois as pessoas estranham que ligam para o centro e não conseguem falar.

Quando saiu do hospital disse que o milagre foi a forma como as equipas do SNS se organizaram de forma criativa e rápida, e na altura descrevia-as como exaustas. Passado um ano e com um novo período de stresse pela frente, o que vê?
Muito cansaço. Embora neste momento já estejam retomadas plenamente as consultas e blocos operatórios, já se estão a abrir mais salas covid-19. Nos cuidados intensivos e na mortalidade a pandemia não tem comparação com o ano passado, mas são as mesmas pessoas a fazer as mesmas coisas. Da forma como o SNS está organizado, embora alguns profissionais com 40, 50 anos ainda tenham contratos em exclusividade anteriores a 2009, os mais novos não têm essas condições, têm de ir trabalhar para outros sítios para pagar a casa além do trabalho que têm nos hospitais. Por isso acho que estamos num momento em que era essencial avançar o regime de exclusividade, opcional, mas para todos.

Era uma das propostas no Orçamento do Estado e no novo estatuto do SNS, mas que não estava ainda fechada em termos remuneratórios. Concordava com o modelo?
Sim, dedicação plena e opcional, espero que fique no estatuto e que seja regulamentado em breve. A minha experiência é que os recém-especialistas quando ficam em dedicação plena se sentem mais motivados. Não é que quem não tenha dedicação plena não possa ficar no SNS, mas a verdade é que uma boa parte dessas pessoas fugiu para o privado. No meu serviço (Endocrinologia) em Santa Maria foram pelo menos três pessoas para o privado que estão a fazer imensa falta lá.

Essa ‘sangria’ para o privado é reversível? Os hospitais privados cresceram, estão com campanhas agressivas, os seguros também, vemos carências no SNS…
É reversível, é preciso é que o serviço público lhes pague convenientemente. Há uma interna minha que estava a ganhar por 40 horas semanais, porque não são 35 horas no caso dos médicos, entre 1200 e 1500 euros conforme as horas de banco calhavam ao fim de semana ou não. Esta médica, que foi a melhor nota a nível nacional, foi para o privado ganhar em metade do tempo, 20 horas, a mesma coisa. Tem três filhos e a certa altura torna-se impossível reter as pessoas desta maneira. Essa sangria existiu, foi muito grande, numas especialidades mais do que noutras e tem de ser reversível, porque não vamos formar especialistas de um dia para o outro. São os que existem que têm de voltar para o serviço público, contratados de outra forma.

Em Santa Maria ficaram agora pela primeira vez por preencher 10 vagas para internos de Medicina Interna. Havia candidatos mas não quiseram Medicina Interna no maior hospital do país. É só o dinheiro ou o sistema público já não atrai da mesma forma os jovens médicos?
Para além do dinheiro, há outras questões, por exemplo a garantia de que há concursos para ascensão na carreira. A progressão dos médicos é por exames públicos, não é por idade. E são exames difíceis. Mas tem de haver concursos e há tempos que não há. Por outro lado, se as pessoas estiverem ligadas a um projeto de investigação isso atrai-as muito. Portanto, a questão do dinheiro  a certa altura é inultrapassável, mas tudo isto pesa.

Esta semana o Sindicato Independente dos Médicos dizia a propósito dessas vagas vazias no Santa Maria que, como são os médicos a colher o sangue para análises, só começam a ver doentes à tarde ou no fim da manhã. Vimos o caso de um sobrinho de Manuel Alegre que foge do hospital de Coimbra por não aguentar estar internado sem condições. Isto também pesa, não?
De facto a colheita de sangue podia e devia ser feita por técnicos de laboratório e não pelos médicos e ali é isso que acontece. Essa não tem de ser a função do médico.

Pode ver-se isto como uma coisa um bocado snobe, mas se os médicos fizerem as funções de técnicos veem menos doentes…
Pois, há funções e competências próprias. E, sim, muitas vezes estas coisas de que falamos e mesmo os ordenados podem parecer coisas snobes. Num país onde o ordenado mínimo é 650 euros, onde há 26% em risco de pobreza, estes agora querem ganhar mais… A minha posição não é sindical, é uma posição de defesa do Serviço Nacional de Saúde que dá resposta a todos os portugueses. Ou as pessoas são pagas ou vão embora. Não há desemprego médico. Por outro lado, e indo a esse caso de que falou, as condições na urgência são insuportáveis, sobretudo antes da triagem. E é assim porque em Portugal num ano normal há 6 milhões de idas às urgências – 6 milhões de idas às urgências num país de 10 milhões de habitantes é um disparate. Sabemos que muitas seriam observáveis nos cuidados primários. Tenho esperança que, com o PRR, os cuidados primários sejam equipados com aquilo que quem está nessa área achar que deve haver: algumas análises, raio-X, eletrocardiograma. Se isso acontecer, uma boa parte dos doentes que vão às urgências hospitalares passarão certamente a ir ao centro de saúde.

Esta semana fui a uma consulta no centro de saúde e já nem a citologia é feita pelo médico, passou uma credencial para ir fazer fora, quando o Papanicolau era feito pelos médicos de família, aproveitando a consulta para rastreio do cancro do colo do útero. O médico diz que não há condições. Se até procedimentos que se faziam nos centros de saúde são esvaziados, como se vai aumentar a resposta?
E vai fazer fora com o SNS a pagar… Houve um momento em que os centros de saúde foram muito minimizados em termos de competências: tiraram-lhes estomatologia, pediatria, foi péssimo porque levou tudo para os hospitais. Depois houve uma valorização dos médicos de medicina familiar, que ganharam competências, por exemplo essa. Sabemos que isto aconteceu e sabemos que há esses problemas, agora há esta tentativa de voltar a valorizar os cuidados primários e esperamos que seja séria. Tem de ser, porque, se não, qualquer dia as situações de horas de espera na urgência para doentes graves serão piores.

Considera que existe um diagnóstico correto da parte do Governo que está a cessar funções sobre o estado do SNS?
Acho que da parte da ministra da Saúde há um diagnóstico correto. A Dra. Marta Temido é uma pessoa que, pelas funções que teve sempre no SNS e pela sua formação, tem um conhecimento muito grande da estrutura do SNS. Tem um retrato do país e uma ideia das soluções que é a correta. Tem sido muito apertada pelas Finanças. Não há autonomia das instituições e dos hospitais para contratarem, têm de passar pela ARS, Ministério da Saúde e pelas Finanças e isto não pode continuar a ser assim.

Existindo esse aperto, mesmo tendo havido um reforço orçamental nos últimos anos e sabendo-se que alguns problemas se mantêm, percebeu quando disse que também é preciso resiliência e a polémica que se instalou entre os médicos?
Eu tenho a gravação e a ministra não disse que era preciso mais resiliência. O Ministério devia ter transcrito o que foi dito e não o fez. O que a ministra disse foi que os médicos que estão no hospital de Setúbal têm resiliência além das suas competências técnicas. Para mim, o que aconteceu foi um ataque ad hominem, foi trocado o sentido da frase para a atacar. Os médicos que não leram o que ela disse, que estavam a trabalhar quando ela o disse e tendo ouvido aquilo que dizem que ela disse, ficaram naturalmente revoltados. É o tipo de intriga e de combate político que na minha opinião não se deve fazer.

Mas estando-se agora em tempo eleitoral, não sente do lado do Governo um ‘dourar da pílula’?
Em geral, a conversa das pessoas que têm funções governamentais, em todos os Governos, é falar como se tudo se passasse muito bem e quando dizemos alguma coisa ‘já fizeram, estão a fazer e ainda vão fazer tudo muito melhor’. É um discurso irritante quando se sabe que há muitos problemas. Acho que os ministros deviam dizer à cabeça: ‘Sei que há este problema’. Mas, por sinal, acho que não é esse o padrão da Marta Temido.

Pode haver instruções superiores?
Nos Conselhos de Ministros deve haver com certeza uma recomendação geral. Não estou lá, nunca ninguém me contou, mas calculo. Mas sei que, por exemplo, que com um artigo que escrevi e que falava da falta de recursos humanos e das razões, foram feitas fotocópias e distribuídas a todos os ministros. Deduzo que o assunto terá sido discutido seriamente. E o que posso dizer das reuniões que já tive com a ministra da Saúde foi que não ouvi essa resposta ‘já fizemos, estamos a fazer e ainda vamos fazer muito melhor’. Quando muito ‘um não sei mas vou ver’. Mesmo nas reuniões que tivemos com o movimento do manifesto do lado da solução, que para nós é uma forma de termos participação de sociedade civil e movimentos de crítica e proposta para salvar o SNS e não apenas de protesto, houve sempre abertura. Na última reunião, houve críticas muito duras e a ministra disse que é bom que assim seja. Não vejo um discurso à defesa. E há críticas muito duras.

Qual é a crítica mais dura que faz neste momento ao Governo?
É em relação aos salários, não só do SNS mas dos trabalhadores no geral. Aquelas extraordinárias assistentes operacionais dos hospitais, que andam a limpar o rabinho às pessoas, ganham 650 euros. Não pode ser. Não dá para pagar meia renda em Lisboa, as pessoas são empurradas para as periferias das metrópoles, umas mais organizadas, outras desorganizadas, com longos tempos nos transportes diariamente. Muito mal vai o país se isto não for revoltante.

Há ainda as pessoas das limpezas, precárias, lugares muitas vezes ocupados por imigrantes.
Sim, pessoas de empresas contratadas para fazer limpezas. E o mais chocante é que, sob o ponto de vista de consideração social, é como se estas pessoas fossem invisíveis. A senhora que fazia as limpezas no meu serviço dizia-me que durante anos fez a limpeza da direção do hospital e que nunca ninguém lhe perguntou como é que se chamava, até que veio um diretor que finalmente perguntou e começou a cumprimentá-la todos os dias. São invisíveis.

Foi outra imagem que trouxe do seu internamento em Santa Maria, de ver o hospital do lado do doente?
Já tinha estado internada uma vez quando parti um pé e quando fiz greve de fome. Os invisíveis vêm de manhã, limpam a arrastadeira e outras coisas assim e depois perguntam: o que é que quer para o pequeno almoço?

São os que ouvem depois o protesto de que o peixe não presta, a comida não tem sal, o ‘são os meus impostos que pagam o seu ordenado’.
Sim, são os que apanham e não vivem à custa de impostos nenhuns porque recebem muito pouco. E sabemos que sim, há quem fuja a pagar impostos mas não está ali. Há uma injustiça social muito presente nos serviços públicos e no ministério da Saúde. A minha crítica é em geral essa, a desvalorização do trabalho e em particular do trabalho que é mais desgastante. São pessoas que estão a viver no mesmo tempo que cidadãos que têm milhões. Não pode ser.

Mantém essa utopia de juventude?
Tem de ser. Se perdermos a capacidade de nos revoltarmos é porque perdemos a vida ou então entregámo-nos ao destino que haverá sempre ricos e pobres. Isto não tem de ser assim. A sociedade portuguesa organiza-se pouco do ponto de vista cívico. Neste movimento que criámos, juntámos pessoas de todos os partidos de esquerda, do PS, do PC, do Bloco e independentes como eu, mas era preciso mais, mais mobilização, mais exigência.

Ficou desiludida com os partidos à esquerda por não ter havido acordo para aprovação do Orçamento do Estado ou mete as culpas no PS?
Nem nuns nem noutros, mas não deviam ter votado contra. Acho que se deviam ter abstido. Salvavam a honra, o OE passava e não tinha de haver eleições agora.

PCP e BE vão ser penalizados nas eleições?
Tenho receio que sejam penalizados e isso é mau porque são necessários. Acho que a conjugação desses partidos com o PS faz com que haja uma unidade à esquerda que permite lutar pelo SNS, por melhores salários, por melhor habitação. O PS é um partido de vocação governamental e embora o Parlamento seja autoridade máxima para legislar, precisa dessas forças à esquerda que não são, como se diz, extremistas ou populistas para fazer essas mudanças.

Mas saiu do PCP por considerar um partido extremista.
Não era por ser extremista, era por ser estalinista. Isto é importante. Não é por terem posições radicais na relação entre trabalho e capital. Saí porque são estalinistas, porque eram. Porque seguiam os princípios do autoritarismo e dos regimes ultra repressivos dos países do pacto de Varsóvia.

Como concilia isso com achar que um partido com essa génese é um parceiro necessário do Governo?
É um problema para mim. Tenho esse problema da génese do PC mas as pessoas que atualmente são do Partido Comunista não são contemporâneas desses acontecimentos estalinistas. Podem ter é uma amnésia histórica dessa génese. Seria bom para o PC se fizesse uma verdadeira análise crítica histórica desses períodos e acho que os atuais jovens e pessoas em idade adulta do PC, sem o expressarem, são contra esse período negro, muito negro, da história dos Partidos Comunistas. Mas deviam expressá-lo.

Essa não revisitação pode alimentar o outro extremo, que pode questionar por que é que nos chamam fascistas e não assumem erros?
Por isso é que eu acho que o PC devia fazer essa revisão história, e tem no seu interior intelectuais capazes de o fazer, para se livrar daquele passado.

Seria possível assumi-lo num quadro internacional comunista?
Eu acho que sim. Eu própria estive no PC e quando descobri esse legado saí. Em Portugal tínhamos tudo isso oculto, havia a ditadura fascista e aquilo que sabíamos pelo partido comunista, havia duas censuras juntas. Quando li os relatórios do XX Congresso de Krutchov, quando percebi o que era feito, desvinculei-me. Não podia estar numa organização que aceitava aquilo. Mas mantive-me com as mesmas ideias sobre sociedade. Não fui para a direita, continuei a ser de esquerda.

O que a repele na direita?
Não aceito que se fique tranquilo com as coisas que os EUA fazem, matam com drones, à distância. Desencadeiam guerras como a que foi a do Iraque, que estragou uma região inteira. A Europa faz do Mediterrâneo um cemitério. Não posso estar com isto, com a exploração dos trabalhadores. Portanto há quem saia pela direita, eu saí pela esquerda sempre. E desde pequena foi assim.

Nasceu no Barreiro, zona industrial.
Fui educada pela esquerda e para mim esse foi sempre o mundo real. Mas voltando atrás, esta direita que se tem estado a formar segue o padrão fascista. O Deus, pátria, família.

Fala do Chega. André Ventura diz que Sá Carneiro estaria orgulhoso.
Não sei se Sá Carneiro alguma vez invocou coisas assim, foi contra isso. É um menino de oiro da Foz do Porto, a que se chamaria um beto, e conseguiu romper politicamente com esse meio e foi religiosamente contra esse meio. Afrontou o próprio cardeal patriarca. Foi coerente na rutura com um passado que estava no ADN dele. Esta invocação da religião para dar cobertura ao que se faz, invocar Deus como fazem os islâmicos…  é dizer que há um Deus e está só de um lado. Depois o nacionalismo do ‘nós é que somos bons’ é outro padrão fascista. E por fim invocar a família mas num sentido patriarcal e mais fechado, um conceito retrógrado e mau para as mulheres numa altura em que se vão libertando. 

Como vê a a passagem dessa luta pela igualdade para a discussão em torno dos géneros e maior relativismo cultural e sexual. É uma evolução natural da sociedade?
Acho que tudo tem de ser debatido caso a caso. Sinto que estão a ser misturadas coisas que não devem ser misturadas. Tenho tido muitas vezes essa conversa com pessoas que estão nessas lutas mas não tem sido assim. A homossexualidade não pode ser misturada com a transexualidade. As pessoas transexuais devem ser ajudadas a mudar de sexo, mudar de identidade, tratadas no sentido hormonal, mas é uma condição clínica: cada vez se compreende mais que são recetores hormonais para as hormonas que estão nos ovários ou testículos mas não funcionam no cérebro. O meu serviço em Santa Maria era o que se ocupava destes casos. Portanto, são casos que têm de ser estudados, perceber se as pessoas o querem fazer e serem então tratadas. Isto é diferente da homossexualidade. A homossexualidade é uma variante do normal: há uma parte da humanidade que tem preferências sexuais por pessoas do mesmo sexo e não tem por outra.

Há quem diga que as pessoas estão todas algures nesse espetro.
É como haver pessoas que escrevem com a mão esquerda. No passado barravam-lhes a mão esquerda para escreverem com a direita. É a mesma coisa. A homossexualidade é como escrever com a mão esquerda ou com a direita, são variantes do normal, que é uma coisa diferente da transexualidade, uma condição clínica. O que se procura são formas da sociedade aceitar aquilo que sempre existiu no género humano mas não se pode misturar tudo. Houve culturas que admitiam transformações sexuais. Li um artigo interessante sobre certos clãs na Albânia, ultra tradicionalistas, em que as raparigas que ficavam solteiras vestiam-se à homem e passavam a ser o homem da família em todos os aspetos e castas. Não sou muito de ir buscar exemplos ao passado porque o passado teve coisas horrendas mas se terá havido, em algumas sociedades, alguma admissão da transexualidade, a verdade é que se castigou muito estas pessoas.

Os primeiros casos que acompanhou foram quando?
Antes do 25 de Abril. Os tratamentos de mudança de sexo começaram em Coimbra e no nosso serviço em Santa Maria. Tinha de haver uma autorização da Ordem dos Médicos do colégio de especialidade para a transformação cirúrgica, mas foi ainda antes do 25 de Abril que tivemos o primeiro bilhete de identidade passado em função de mudança de género. Portanto temos uma longa história e não somos um país preconceituoso, mas o que acho é que não se deve misturar tudo e discutir as coisas de forma superficial. Há por exemplo situações de sexo indefinido à nascença, que é outra situação que pode ocorrer mas tudo isto tem de ser visto caso a caso e não de uma forma superficial.
O que acha de pais educarem as crianças como neutras?
Não concordo. Durante o estadio fetal, na gravidez, as crianças têm logo uma impregnação ou de testerona ou de estrogénio nos recetores de cerebrais. Os rapazes e as raparigas são diferentes e ainda bem que somos diferentes. Isto tudo começou por as mulheres quererem ser parecidas com os homens e essa é a crítica que faço. Como têm menos direitos que os homens, são tratadas de forma desigual, e tudo isso é verdade, quiseram ser parecidas com os homens. Nós não somos parecidas com os homens, somos diferentes. E ser diferente é bom.

Nos últimos tempos surgiu até uma corrente para não se dizer mulher mas pessoa com vagina, pessoas que menstruam. A escritora J K Rowling foi alvo de duras críticas por ironizar que antes se dizia mulher. É aqui que se vai longe de mais? Tem receio de ser ‘cancelada’ como se diz agora?
Francamente, é uma boa discussão. Andei no liceu nos anos 50 e lembro-me de ter colegas que diziam que gostavam de ser rapazes. Gostavam de ser rapazes porque os rapazes podiam andar à solta na rua, jogar à bola e as meninas tinham de ficar em casa. Sempre disse que gostava muito de ser rapariga, gosto de ser mulher, de ter características de estrogénio. Embora todos nós tenhamos a outra hormona também, as mulheres têm  testosterona e os homens têm estrogénio. Sei que ao dizer isto há pessoas que não aceitam.

Vamos acabar neutros, mas a ser explorados como antes eram só as mulheres?
Neutros não. Mesmo em relação aos meus netos, tenho um rapaz e duas raparigas e marco as diferenças. Claro que as raparigas têm de ser educadas a ter todos os direitos, mas são raparigas.

Dá uma boneca às meninas e uma bola ao rapaz ou um comboio?
Sou capaz. Bola dou aos dois. A bola não tem lá uma pilinha escrito. Tenho esta idade mas gosto de jogar à bola. Nós temos menos força muscular. Ok, que bom: pedimos para tirar a mala da prateleira e outras coisas que exijam força, que hoje são menos. Marco a diferença de gostos. Elas passam a vida a maquilhar-se… Somos mamíferos e as mães têm tendência a pôr os bebés ao colo, ao pé das mamas. Meninas brincarem como fazem as mães é uma coisa biológica. Também há rapazes que fazem isto, claro, mas as raparigas fazem mais. Da mesma forma que os rapazes têm mais força, fazem outras coisas, às vezes abusam da força e por isso é também preciso ter essa atenção e moderá-los.

Estamos há quase dois anos em pandemia. Como andam as nossas hormonas?
A nível mundial o que se tem notado é um certo adormecimento hormonal. Por exemplo os jovens casais têm menos relações sexuais. Não sei se é uma questão hormonal, se é da vida cansada que as pessoas levam. A verdade é que vejo muita gente de classe média que dorme quatro, cinco, seis horas por noite – deita-se tarde e levanta-se cedo. Uma pessoa que tem este ritmo de horário, chegar à cama e ainda lhe apetecer ter relações sexuais é um bocado difícil. Quando as pessoas se queixam que têm pouco sexo ou não têm vontade pergunto sempre: e então ao fim de semana como é? Sente prazer depois?Mas de facto esta vida não dá para grande atividade sexual e vejo jovens casais com uma grande diminuição de relações.

Com que impacto?
O desejo faz parte da nossa vida, o desejo de comida, o desejo de coisas boas, o desejo de sexo. Temos o desejo exagerado de coisas que são tóxicas mas estas não são, não fazem mal nem se paga nada. O desejo não cumprido deve fazer mal psicologicamente e o que vejo muitas vezes é que o desejo da parte masculina é realizado rapidamente. É mais fácil. Da parte feminina às vezes não existe, por causa exatamente do cansaço, mas o prazer existe. E isso significa que apesar de tudo as pessoas estão a funcionar.

Não têm iniciativa mas gostam.
Sim e acho que se deve falar destas coisas sem se ser exibicionista e pornográfico, mas falar para as pessoas pelo menos se sentirem acompanhadas umas pelas outras. As mulheres são mais sinceras nisso. Sou endocrinologista, vejo muitas coisas que não têm nada a ver com isto: tiroide, peso a mais… E no fim a doente lá diz: ‘ainda há outro problema: é que deixei de ter desejo sexual’. E aí pergunto isso que lhe estava a dizer: mas depois tem prazer? E faço-o para restabelecer na pessoa alguma naturalidade, para descomplicar. E depois vamos analisar como é o dia a dia daquela pessoa e percebe-se.

Estamos mais gordos por causa das hormonas ou porque comemos de mais?
Estamos mais gordos, porque comemos comida hipercalórica, estamos sempre a exagerar nas calorias. Vivemos rodeados de estímulos apetecíveis. E o aumento da obesidade pode diminuir a esperança de vida.

Que efeito colateral da pandemia na saúde a preocupa mais neste momento?
Os efeitos na saúde mental, que são já visíveis. Antes da pandemia 30% da sociedade portuguesa tinha problemas de ordem psíquica, é muitíssimo, sobretudo comparado com outros países da Europa. E aumentou imenso, tanto nos adultos como nos jovens.

Quando morreu, em julho, Otelo Saraiva de Carvalho escreveu que acabava uma época e uma utopia. Houve uma forte discussão sobre o papel de Otelo nas FP25. Guarda algum arrependimento do seu tempo de utopia, do tempo das brigadas?
Não. E no período revolucionário nem eu nem o PRP estivemos envolvidos em ações armadas e acho que incorreto se as fizéssemos. Ocupações sim, fizemos e deixam-me uma memória ótima: eram pessoas que não tinham nada e passavam a ter um teto. Mas foram ocupações de casas vazias, não expulsámos ninguém. A minha época de maior convívio com o Otelo foi a época dos pobres, dos deserdados, dos que iam ao COPCON bater à porta para resolver problemas e foi uma época extraordinária. O que se passou depois do 25 de Novembro foram outras coisas. E desde o primeiro momento fui contra a existência das FP25, com custos importantes para mim, porque estava presa e foi me retirado todo o apoio dessa área. A mim e outros. Ficámos sem essa solidariedade, mas tivemos outras. Ainda agora com frequência me lembro de que quando fui libertada o poeta Manuel Pina ia buscar-me à prisão, teve uma cólica renal fortíssima mas manteve-se ali. Houve muita gente muito solidária mas não desse grupo de pessoas que constituiu o FP25, e para o qual o Otelo poderá ter sido atraído de forma ingénua. A partir dai só sei o que vem nos jornais e o que sei foi mau. E essa foi a polémica na morte dele e mais uma vez misturaram-se várias coisas e momentos.

Com 81 anos, e tendo vivido todos esses tempos, também sente que são várias vidas?
Às vezes penso que é outra pessoa. Quando vejo aquelas minhas fotografias muito séria… Não tinha televisão em casa e quando mais tarde vi retrospetivamente a minha imagem pensei ‘que horror’. Com aquela cara toda a gente tinha medo de mim. Nunca sorria. Para mim, o assunto era muito sério, mas podia ter sorrido um bocadinho.

Tem o mesmo olhar. O que guarda mais dessa rapariga das Brigadas Revolucionárias?
Ainda hoje tenho bastante capacidade de ação, de fazer coisas. Não são só os quatro dias de consultório, são as sessões, as reuniões de trabalho, escrever. Naquela altura esta capacidade que acho que ainda hoje tenho era muito maior. Tenho saudades de ter um jornal diário, de ter uma filha pequena que andava ao meu colo. Tenho saudades dessa rapariga. Mas o traço que se mantém é aquele de que falávamos: não suportar desigualdades. Não sei como é que as pessoas suportam que pessoas iguais a si tenham condições tão desiguais. É o que me liga a essa rapariga.

Não tem planos para se reformar?
Por enquanto não. Mesmo para viajar agora dá menos, gosto de viajar de comboio. Vou este fim de semana à Galiza numa excursão organizada pelo Museu do Aljube a propósito das trocas de fronteira com os resistentes espanhóis e os resistentes portugueses. Também fiz o salto na Galiza e volto lá.

Vai ser um fim de semana de memórias.
Sim, vai ser um fim de semana agitado.