O Tribunal de Santarém absolveu na semana passada o ex-ministro da Defesa Azeredo Lopes de todos os crimes pelos quais estava pronunciado por entender, por um lado, que ele não tinha poder legal para punir disciplinarmente o diretor da Polícia Judiciária Militar (PJM) no esquema da ficcionada recuperação das armas de Tancos, e, por outro, por não ter tido noção das implicações de um memorando e de uma ‘fita do tempo’ que lhe foram entregues por Luís Vieira, o ex-diretor da PJM.
Estes documentos, em que era assumida a existência de uma operação paralela à da Polícia Judiciária e do Ministério Público, são classificados pelos juízes no seu acórdão como sendo de difícil entendimento para um «cidadão médio normal».
Apesar de este entendimento ser controverso, o Ministério Público já não tem qualquer possibilidade de recorrer, pois, nas alegações finais do julgamento, numa reviravolta surpreendente, pediu a absolvição do ex-governante, abandonando todas as acusações que deduzira contra Azeredo Lopes relativamente aos crimes de que fora indiciado no processo de Tancos e que levaram à sua demissão, em outubro de 2018.
MP dá o dito por não dito
Azeredo começou por ser acusado pelo Ministério Público (e depois pronunciado pelo juiz de instrução criminal Carlos Alexandre) de favorecimento pessoal, abuso de poder, denegação de Justiça e prevaricação, por ter tido conhecimento da operação clandestina montada pela PJM para recuperar o material de guerra roubado do complexo militar de Tancos, negociando com o principal assaltante e garantindo-lhe sigilo para escapar à ação da PJ e do MP.
No acórdão do passado dia 7 de janeiro, o Tribunal de Santarém deu como provada a maioria dos factos da acusação deduzida pelo MP, tendo condenado 11 dos 23 arguidos pelos crimes relativos ao assalto a Tancos – entre os quais o de terrorismo – e à recuperação encenada das armas. Dos crimes mais graves, os juízes apenas não validaram o de associação criminosa. Azeredo Lopes, no entanto, foi ilibado de todos os crimes.
Em relação ao crime de denegação de Justiça, o ex-ministro foi absolvido por os juízes considerarem que a lei não lhe conferia poderes para dar ordens e atuar disciplinarmente em relação ao então diretor da PJM, Luís Vieira. «Para preenchimento do tipo objetivo da presente incriminação o sujeito ativo/agente, para além de titular de cargo político, terá de atuar no exercício das suas funções, o que significa que terá de estar investido de poderes, decorrentes do cargo que ocupa, que lhe confiram competência para decidir (seja administrando a Justiça, seja aplicando o Direito) a matéria ou assunto que lhe forem requeridos. Ora, como o próprio Ministério Público reconheceu em alegações, o arguido enquanto ministro da Defesa não possuía competência disciplinar sobre o diretor da PJM ou sobre os militares da PJM».
Este entendimento, porém, é considerado «muito estranho» por fontes judiciais e militares contactadas pelo Nascer do SOL. Tal como até está descrito no site do Ministério da Defesa Nacional, citando a legislação, «a Polícia Judiciária Militar é um corpo superior de polícia criminal auxiliar da administração da justiça, organizado hierarquicamente na dependência do Ministro da Defesa Nacional e funcionalmente na dependência das Autoridades Judiciárias».
As coisas parecem claras.
«No seu acórdão, o Tribunal de Santarém parece querer distinguir tutela administrativa e tutela hierárquica/disciplinar, mas essa distinção não está na lei. Se o ministro tem a tutela administrativa, isto inclui o poder disciplinar», afirma uma fonte judicial, questionando: «Se Azeredo Lopes não tivesse a tutela ou a competência disciplinar sobre o diretor da PJM, apenas a administrativa, então a que título recebia informações dele? E, tendo tido conhecimento do que se estava a passar, por que não denunciou as informações que recebeu a quem teria então o tal poder hierárquico?».
A confusão do acórdão
Uma fonte militar explica, por seu turno, que aquilo que o Governo e o ministro da Defesa não têm é poder ou tutela disciplinar sobre as Forças Armadas. E recorda o caso ocorrido em 2016, quando Constança Urbano de Sousa era ministra da Administração Interna e remeteu ao chefe do Estado-Maior do Exército (CEME) uma participação disciplinar contra um general que estava na Proteção Civil e que era suspeito de violação dos seus deveres na forma como gerira o processo de transferência dos helicópteros Kamov do Estado para uma empresa. «Era um cargo administrativo, também, e ele foi demitido. Depois, a ministra participou ao CEME, para efeitos disciplinares, além do Ministério Público», recorda ao Nascer do SOL. «Neste caso de Tancos», acrescenta a mesma fonte, «Luís Vieira é coronel do Exército, mas era diretor da PJM e este lugar está sob a tutela administrativa do ministro da Defesa. Não era como coronel que ele estava sob a tutela do ministro, mas como diretor da PJM. E pode-se aplicar aos titulares dos cargos administrativos o regime disciplinar da Função Pública, mesmo sendo militar. Sobre a questão criminal, mesmo que o ministro achasse que não tinha competências disciplinares para lhe abrir um processo, solicitava ao CEME que o fizesse».
Já em relação ao crime de abuso de poder, o ex-ministro da Defesa – que é licenciado, mestre e doutorado em Direito, tendo como atividade principal o ensino universitário – foi absolvido porque os juízes consideraram que não compreendeu bem nem anteviu as implicações dos documentos que recebeu, em que os principais arguidos descreviam com pormenores a operação clandestina que estavam a levar a cabo. E isto apesar de toda uma série de factos que o Tribunal deu como provados e que reproduz no acórdão: «Apurou-se, é certo, que os arguidos Luís Vieira e Vasco Brazão entregaram ao chefe de gabinete, tenente-general Martins Pereira, um memorando e uma fita do tempo, que por seu turno tirou fotografias aos dois documentos e esclareceu o conteúdo dos mesmos ao telemóvel com o arguido Azeredo Lopes, pelo que o mesmo tomou conhecimento do seu conteúdo».
«Mais se provou que, ao telemóvel, Luís Vieira disse a Azeredo Lopes que os factos relativos à recuperação do material não tinham ocorrido nos termos descritos no comunicado oficial da PJM. O chefe do gabinete do ministro, não registou oficialmente a entrada no Ministério dos dois documentos, que lhe haviam sido entregues por Luís Vieira e Vasco Brazão».
«Azeredo Lopes não deu conhecimento do teor de tais documentos para a PGR ou para o DCIAP, nem ao Diretor Nacional da PJ, ou ao Diretor da Unidade Nacional Contra Terrorismo da PJ, nem remeteu cópia dos mesmos para esta instituição». Porém, conclui-se no acórdão, «tais circunstâncias não implicam o preenchimento do tipo objetivo do crime em análise, na medida em que, a mera leitura do teor dos documentos (o memorando e a fita do tempo) não era suficiente, por si só, e na ausência de um maior conhecimento quanto à investigação criminal realizada no âmbito do inquérito, para que um cidadão médio normal (ainda que jurista) concluísse pela existência de um crime que carecesse de ser denunciado ao Ministério Público. Deste modo, entendemos como não verificado o elemento objetivo ‘Violar os deveres inerentes às suas funções’».
A montagem da encenação
Recorde-se que os dois documentos em causa – o memorando e a fita do tempo – tiveram objetivos distintos. O memorando, além de relatar as desavenças com a polícia civil (que retirara à PJM o protagonismo na investigação, colocando-a à parte das suas diligências), criava um clima propício a desculpabilizar o comportamento posterior do diretor da PJM, que arranjara um informador conhecedor do paradeiro do material roubado e que se dizia disposto a entregá-lo desde que a Judiciária e o MP não fossem avisados: «O informador da PJM vai dar a localização de umas granadas, como prova de que fala a verdade, mas a PJM tem de guardar essas granadas dois dias e nunca chamar a PJ, que depois ele dará a localização do resto do material como condição do não envolvimento da PJ. Se o acordo for quebrado o material de Tancos desaparece e a família do major Brazão não terá descanso».
Ou seja, a PJM estava na mão de perigosos delinquentes, mas não desistia das armas. O informador era muito exigente e pedia que no dia do encontro fosse feita uma chamada anónima para não o denunciar.
Já a ‘fita do tempo’ reproduzia na íntegra a encenação da recuperação das armas que Luís Vieira tornaria pública nesse mesmo dia: tudo começa com um telefonema anónimo, quatro meses depois de um vasto material militar se ter eclipsado dos paióis de Tancos, que avisava aquela polícia de que, na ponte da Chamusca, na estrada em direção a Abrantes, tinha sido colocado, à espera de que o fossem buscar, o material bélico. Uma série de diligências foram desencadeadas. Foi chamado o laboratório de perícias da PJM e contactado o chefe do Estado-Maior do Exército, Rovisco Duarte, para que este ativasse a equipa de inativação de agentes explosivos (EOD) que foram à Chamusca atestar se o material estava armadilhado antes de procederem ao transporte para a base de Santa Margarida.
Isso aconteceu de véspera, quando ainda nem a as armas tinham sido ‘encontradas’. E o ministro da Defesa, conforme consta no seu testemunho, confirmou que afinal já antecipava a recuperação das armas: «Não se recorda bem da data em que o arguido Luís Vieira pediu ao tenente-general Martins Pereira, seu chefe de gabinete, o eventual apoio de equipas de EOD do Exército, caso viessem a encontrar as armas, porém, lembra-se do seu chefe de gabinete lhe transmitir que podia haver avanços na investigação no que respeita à recuperação das armas, pelo que podia ser necessário a utilização de tais equipas, sendo que, nessa conformidade, e dado o seu desconhecimento dos normais procedimentos militares a esse respeito, disse ao seu chefe de gabinete para fazer o que ‘tivesse de fazer’».
Azeredo confessa que não pode dizer a verdade
Também mensagens que Azeredo trocou no dia da recuperação das armas com o deputado socialista Tiago Barbosa sugerem que o achado não era grande novidade para ele: «Parabéns pela recuperação do armamento, grande alívio…! Não te quis chatear hoje)», disse o deputado; «Foi bom: pela primeira vez se recuperou armamento furtado. Eu sabia, mas tive que aguentar calado a porrada que levei. Mas, como é claro, não sabia que ia ser hoje», respondeu Azeredo. Meia hora depois desta mensagem o deputado voltou à conversa: «Vens à AR explicar?» E recebe como resposta: «Vou, mas não poderei dizer o que te estou a contar. Ainda assim, foi uma bomba».
Quando ao memorando e à fita do tempo que foram entregues ao seu gabinete a 20 de outubro de 2017, o ex-ministro disse no tribunal que nesse dia estava no Porto, «não tendo memória se o seu chefe de gabinete lhe enviou os documentos entregues pelos arguidos Luís Vieira e Vasco Brazão pelo WhatsApp, na medida em que não se recorda de os ter recebido e lido, mas recorda-se que este lhe deu conhecimento do essencial dos referidos documentos, oralmente».
Azeredo acrescentou ainda que, «basicamente, aquilo que lhe foi transmitido é que o material não foi recuperado com base numa chamada anónima, mas antes através de um informador (o ‘Fechaduras’) e que esse informador estava com medo da Polícia Judiciária, pelo que tinham transmitido que existiu uma chamada anónima para proteger o informador».
Na altura, «entendeu que lhe fazia sentido a explicação apresentada, pois nos filmes policiais a que assiste os polícias costumam proteger os informadores». Mas, claro, «desconhecia em absoluto que se tratasse de uma investigação paralela desencadeada pela PJM, pensando tratar-se de uma atuação coadjuvante de colaboração institucional com a investigação».
Apesar disso, o ex-ministro reconheceu: «Aquilo que o seu chefe de gabinete lhe transmitiu é que os arguidos Luís Vieira e Vasco Brazão estavam com receio, referindo-se às consequências deste conflito com a PJ, recordando-se que o seu chefe de gabinete lhe transmitiu que falou com Luís Vieira e Vasco Brazão, no sentido de, através do oficial de ligação da PJM, procurarem um entendimento com a PJ, por forma a ultrapassar o mal-estar existente». Apesar desta tranquilidade, a verdade é que estes documentos não deram entrada nos arquivos oficiais, nem foram enviados ao diretor nacional da PJ ou para a PGR, Joana Marques Vidal, com quem Azeredo Lopes falara dois dias antes e que mostrara de forma veemente o seu descontentamento com tudo o que se estava a passar.