Em 1962, a Etiópia era um Império. Nome talvez excessivamente empolado, mas que batia certo com a personalidade do homem que ocupava o cargo de imperador, um tal de Heilé Selassié (que significa literalmente Poder da Trindade), que fora batizado como Tafari Makonnen, em Julho de 1892, e depois ganhou o bem mais popular epíteto de Ras Tafari.
Por causa dele, e da sua aura divina que o dava como herdeiro da Rainha do Sabá e do Rei Salomão, nasceu do lado de lá do Atlântico, na Jamaica, um movimento religioso judaico-cristão, o rastafariano, entre negros camponeses descendentes de africanos escravizados que o via como uma reencarnação de Jesus Cristo. Um exagero, sem dúvidas, mas que trouxe para a comunidade jamaicana, e depois para muita gente de todo o mundo, a desaprovação das alterações do corpo e, sobretudo, o uso sacramental da canábis, tão bem difundidas pela música reggae e por Bob Marley.
Perdi-me aqui um pouco, mas regresso já a 1962 e ao mês de janeiro que cumpre agora 60 anos. No país do imperador Helé Selassié, no Estádio Heilé Selassié, em Adis Abeba (que quer dizer Nova Flor), disputaram-se os quatro jogos da fase final da terceira edição da Taça de África das Nações que, por causa do francesismo, ganhou o acrónimo de CAN (Coupe d’Afrique des Nations).
Na altura era assim, tal como já aconteceu com a fase final do Europeu: apuravam-se quatro seleções para um torneio decisivo, com meias-finais e final (e jogo para o terceiro e quarto lugares). E as quatro representavam a Etiópia, a República Árabe Unida (um esboço de grande confederação de países árabes que acabou por juntar apenas Egito e Síria – e durante um tempo o Iémen – que durou de 1958 a 1962), o Uganda e a Tunísia.
Embrulhada num fortíssimo ambiente nacionalista, a Etiópia tornou-se na grande figura do torneio, obtendo a sua única conquista da Taça de África até hoje. Comandada por um descendente de italianos (sobras da frustrada tentativa de Mussolini de transformar a Itália num império com colónias em África) Luciano Vassalo, um médio centro de inusitada capacidade competitiva para o futebol africano de então, a Etiópia começou por despachar a Tunísia nas meias-finais, com um resultado gordo de 4-2, e golos marcados por Vassalo, Tekle e Worku. A festa nas ruas de Adis Abeba entrou na loucura. Só faltava a presença de Robert Nesta Marley.
O triunfo. Entretanto, na outra meia final, o Egito travestido de RAU, campeão em título e grande favorito à vitória final, libertava-se do Uganda com uma vantagem curta: 2-1.
O próprio Deus Encarnado, Heilé Selassié, presidiu à final no estádio que levava o seu nome, se bem que por esses tempos muitas coisas, das ,mais complicadas às mais simples, levassem o seu nome. É preciso sublinhar que Selassié, apesar de apreciar, e bem, esse estatuto de divindade, nunca se vangloriou dele e até teve uma ação fundamental para a modernização do país, criando a sua primeira Constituição e abolindo a ainda existente escravatura. Mas, nesse dia 21 de janeiro de há 60 anos, mais de 40 mil pessoas rugiam em redor do relvado só com olhos para a bola e para os jogadores.
A refrega foi rija. Badawi fez 1-0 para a Rau aos 35 minutos e o empate só surgiu aos 74 por Tekle. Um minuto depois, Badawi fez 2-1 e Worku voltou a empatar aos 84. Os feiticeiros faziam as suas magias, cortavam-se pescoços a galinhas, e o prolongamento foi inevitável. Italo Vassalo, irmão de Luciano, aos 104 minutos, e Worku, aos 117, desataram o nó do resultado.
A Etiópia era campeã de África, todo o orgulho nacional inchou como um balão de ar quente sob o sorriso seráfico de Ras Tafari (significa chefe respeitado) que tinha por trás de si a bandeira amarela, vermelha e negra dos etíopes, seus súbditos. Foi ele que entregou a taça a Vassalo e, com esse gesto, atirou o povo para as ruas das cidades da Etiópia, o Império feliz…