À semelhança daquilo que se verificou nos anos anteriores, a maioria dos episódios de violência (63%) – 66 e 57% em 2020 e 2019 respetivamente – disseram respeito a ameaças e injúrias, 23% a agressões físicas e 14% a assédio.
Esta foi a primeira conclusão referida pelo coordenador do Gabinete de Segurança do Ministério da Saúde, subintendente Sérgio Barata, durante um webinar de apresentação do Plano de Ação para a Prevenção da Violência no Setor da Saúde (PAPVSS) que teve lugar na manhã desta quinta-feira.
Segundo o dirigente, os enfermeiros foram as vítimas mais afetadas – correspondem a 33% dos casos de agressões -, os médicos experienciaram 31% destes episódios e os assistentes técnicos 30%. Na maioria dos casos, os agressores foram utentes – 64% -, familiares ou acompanhantes – 22% – e outros profissionais de saúde (13%).
Importa referir que o PAPVSS entrou em vigor no passado dia 6 de janeiro depois de ter sido aprovado em Conselho de Ministros, sendo que no âmbito de uma resolução aprovada a 16 de dezembro, a violência no setor da saúde engloba as situações em que um trabalhador a desempenhar funções numa instituição que presta cuidados ou serviços de saúde do Ministério da Saúde é submetido a qualquer tipo de violência em condições relacionadas com o seu trabalho, “incluindo as deslocações para e do trabalho, colocando em risco, de forma direta ou indireta, a sua segurança, bem-estar ou saúde ou de terceiros”.
"Foi um longo percurso", declarou a diretora-geral de Saúde no webinar, constatando que "não há instituições ou profissionais imunes à violência". Graça Freitas destacou igualmente a importância do trabalho de equipa dos serviços de saúde, de justiça e das forças de segurança. Neste sentido, André Biscaia clarificou que “este tipo de violência [contra os profissionais de saúde] não vai ser tolerado e, portanto, as coisas vão ter consequências”. “Os casos vão ser analisados e as responsabilidades vão ter que ser assumidas”, disse, esta quinta-feira, à agência Lusa o coordenador do plano para a prevenção da violência no setor da saúde.
No entanto, o dirigente avançou que o sistema tem de saber reabilitar os agressores e não somente responsabilizá-los. “Muitas vezes estas pessoas também precisam de reabilitação para não serem reincidentes neste tipo de episódios”, asseverou o médico de família, frisando ainda que, em caso de conflito, “a resposta é a reclamação, não é violência”.
Mais de 80% das instituições de saúde não têm um plano de segurança Ainda que o objetivo passe pela adoção deste plano – por meio de um observatório da violência no setor da saúde, uma cultura organizacional, comunicação, segurança e ética -, o penúltimo eixo parece ser aquele com mais lacunas. Isto porque o Gabinete de Segurança entendeu que, em 2020, 85% das instituições não tinham um plano de segurança nem uma avaliação de risco, mas 84% contavam com os serviços de um responsável institucional pela segurança.
Neste contexto, o estudo levado a cabo permitiu compreender que em 62% das instituições existiam barreiras como acrílicos nos serviços de atendimento, em 54% circuitos e espaços de espera delineados e só em 7% era possível encontrar mecanismos de alarme, tendo 292 instituições botões de pânico. Sabe-se que, em 2021, terá sido concretizado um novo inquérito para se aferir se "houve uma evolução positiva" e o mesmo deverá ser divulgado no ano corrente.
De acordo com dados apresentados por Sérgio Barata, até outubro do ano passado foram reportadas 752 situações de violência contra profissionais de saúde na plataforma Notifica da DGS, mais 4% face ao mesmo período de 2020 e menos cerca de 24% relativamente a 2019. “É um fenómeno com crescente visibilidade, cada vez mais sinalizado e muito frequente”, afirmou André Biscaia.
A seu lado, o secretário de Estado Adjunto da Saúde, António Lacerda Sales, afirmou que o combate à violência contra profissionais de Saúde constituía uma prioridade do Executivo antes da pandemia. A título de exemplo, um dos casos que fizeram correr mais tinta nos últimos meses foi o do pediatra Pedro Gomes da Costa, de 53 anos, que remonta a 2018. Este médico foi alvo de comentários racistas enquanto trabalhava. Volvidos três anos, ganhou o caso em tribunal no passado mês de julho de 2021. Em causa está o facto de uma mulher, mãe de uma criança de 20 meses – com aftas e febre alta -, o ter insultado durante a observação da mesma.
Segundo o jornal Público, a mulher, atualmente com 26 anos, foi condenada pelo Tribunal de Loures pelos crimes de injúria e difamação, na forma agravada, sendo igualmente obrigada a pagar uma multa de 1.300€ e uma indemnização de 1.500€. "A mãe pega-me no braço, puxa com uma violência e a partir daí começaram as ofensas", recordou o profissional de saúde em declarações ao órgão de informação anteriormente referido. "Preto de merda, seu macaco, pensa que está a observar um animal? Animal é você. Isso é que era bom, a minha filha ser observada por um preto. Exijo que seja observada por um médico branco", atirou a mãe quando esteve com a criança no serviço de urgência do Hospital Beatriz Ângelo, em Loures.
Recorde-se que, no passado dia 14 de abril, foi noticiado que o julgamento começara naquela quarta-feira, mas sem a presença da arguida. Na primeira sessão, foram ouvidas cinco testemunhas arroladas pela acusação, sendo que a maior parte confirmou ter presenciado e ouvido os insultos dirigidos ao pediatra. É de realçar que todas mencionaram que a arguida já estava exaltada antes de entrar no consultório.
A médica que acabou por examinar a filha da arguida narrou, em tribunal, que a progenitora pediu para ser atendida por um médico branco. Apesar de ter sido apoiado pelos colegas, pela administração hospitalar e pela família, o médico indicou que "esta senhora tem mãos livres” para ser racista “porque a sociedade é permissiva” e, deste modo, defendeu que a legislação devia ser mais dura em casos de racismo como aquele que viveu.
Infelizmente, este não foi um caso isolado e André Biscaia confirmou-o quando salientou que "cerca de 50% dos profissionais de Saúde já sofreram, pelo menos, um episódio de violência física ou psicológica em cada ano". Tal como Pedro Gomes da Costa, também outros profissionais de saúde passaram pelo mesmo, como, um ano depois, uma médica do Hospital São Bernardo, em Setúbal, que foi agredida por uma utente durante a madrugada do dia 27 de dezembro de 2019. A profissional encontrava-se a prestar serviço de urgência e foi alvo de agressões por volta das 00h45 quando a utente entrou no seu gabinete e causou-lhe um ferimento num olho que a obrigou a ser submetida a uma intervenção cirúrgica no Hospital de São José, em Lisboa.
Desde esse dia, são várias as demonstrações de solidariedade de colegas da médica que circulam pelas redes sociais. Por exemplo, nas contas de Instagram e Facebook Pérolas da Urgência, esta data não é esquecida e, com humor à mistura, Doc Pearls/Dr. Pérolas – que tem mais de 100 mil seguidores na primeira plataforma – evocou as declarações do conselho de administração do Hospital de São Bernardo aquando da confirmação do incidente.
Enquanto esta, em comunicado, esclareceu que "no exercício das funções da prestação de cuidados aos utentes os profissionais de saúde estão sujeitos a riscos que tentamos minimizar", este médico alertou, após dois anos, para o facto de que "uma brava utente de 25 anos decide fazer justiça pelas próprias mãos e castigar violentamente uma médica com idade para ser sua mãe", escrevendo, em tom jocoso, que "a população de Setúbal brinda os profissionais de saúde com um prato de choco frito", para "celebrar" esta efeméride, pois "o propósito é relembrar essa corja dos profissionais de saúde o que é que lhes acontece se não andarem na linha".
“Em 2019, tínhamos 16 situações de violência reportada por milhão de contactos. Em 2020, passou para as 13 e, em 2021, temos 11”, especificou André Biscaia, considerando que esta diminuição apenas se deveu à redução do número de contactos de atividade assistencial prestada desde o surgimento do novo coronavírus.