Recentemente, uma dor aguda nas costas como não desejo sequer ao meu pior inimigo (seja lá ele quem for) atirou-me alguns dias para a cama. Poderia ter sido uma grande chatice – mas, com livros e música por perto, nunca me aborreci.
Aproveitei, por exemplo, para terminar Imagens de Pensamento, um volume de capa cinzenta, o segundo das obras escolhidas de Walter Benjamin que João Barrento traduziu e organizou para a Assírio & Alvim.
Entre os textos aí incluídos encontra-se um intitulado simplesmente ‘Moscovo’, que resultou de impressões que Benjamin recolheu numa viagem à capital soviética entre 6 de dezembro de 1926 e 1 de fevereiro de 1927.
Vivia-se então um misto de euforia e ingenuidade – o entusiasmo da embriaguez que antecede o dia da ressaca. A União Soviética fora fundada quatro anos antes. Lenine tinha morrido há cerca de três anos, deixando como legado não apenas a revolução e o regime dela nascido, mas também a Nova Política Económica (NEP), que se regia pelas leis do mercado, uma espécie de passo atrás necessário para repor as energias, antes de se abraçar plenamente o socialismo.
Os horrores da guerra civil (1917-1922) ainda estavam frescos, mas eram pintados em tons heroicos. E não se vislumbrava no horizonte nem sombra dos crimes do Estaline. O ditador vivia aquele que já foi descrito como o seu período ‘vegetariano’.
Seria impossível Benjamin, ainda por cima um marxista convicto, não ter ficado intoxicado por este ambiente onde tudo era novo e se acreditava que todos os sonhos estavam ao alcance da mão. «Cada pensamento, cada dia e cada vida se encontram aqui como sobre a mesa de um laboratório», resumiu, depois de descrever as artérias cheias de gente, os trenós, as mulheres a vender cigarros, frutas ou doces na rua, as crianças e até os mendigos.
Sabendo o que sabemos hoje, há aspetos perturbadores no retrato feito por Benjamin. «O bolchevismo acabou com a vida privada. A burocratização, a actividade política, a imprensa, são tão poderosas que não resta tempo para interesses que não coincidam com elas. Nem tempo, nem espaço», descreve. «As casas que antes acolhiam uma única família nas suas cinco a oito divisões alojam agora oito. Atravessando a porta do vestíbulo entra-se numa pequena cidade. Muitas vezes também num acampamento. Há camas logo no átrio. […] As pessoas suportam a existência dessas casas porque o seu modo de vida as afastou delas. O lugar onde vivem é a repartição, o clube, a rua».
Outro elemento central da vida na capital russa captado pelo autor alemão é o frio. «A embriaguez do calor que se apodera do frequentador destes estabelecimentos, com o chá quente e o gosto da sakuska picante [um aperitivo típico], é o prazer de inverno mais secreto de Moscovo», diz-nos a propósito das cervejarias e casas de chá. «É por isso que quem não conhecer a cidade na neve, não a conhece».
No conforto dos lençóis, com o volume cinzento nas mãos, esqueço por momentos a dor nas costas. Prendeu-me à cama por uns dias, mas não me impediu de viajar até à Moscovo de 1926-27, esse gigantesco laboratório onde tudo parecia possível. E de certo modo foi. Só que de uma maneira que nem Benjamin nem ninguém poderia ter imaginado.