Ser grande dói a vida inteira. As dores de crescimento de quem não se acaba, de quem vai até ao fim do mundo, são arrasadoras, mas misturam também muita alegria, e dão de volta ao mundo esse alimento para a alma, o das canções, dos ritmos que mexem o caldo às vezes morno, muitas vezes estagnado que levamos dentro. Elza Soares tinha uma infinita ânsia, e se a sua voz a fez chegar aos quatro cantos do mundo, tinha do outro lado também o rigor da sua mudez, um silêncio que fazia respeitar, vendo as sombras que deslizam em fundo, entre o que a vida lhe deixou e o muito que lhe tirou. A rainha do samba, a voz do milénio, assim a coroava em 1999 a BBC, foi um símbolo de emancipação e liberdade, um dos maiores ícones da música brasileira, uma mulher negra que animou um confronto épico entre a sorte e o azar, entre momentos de glória e esses outros trágicos que se colam mais fundo que os ossos. Nasceu pobre, negra, mulher, como ela fazia questão de frisar, e morreu, na quinta-feira, aos 91 anos, no mesmo dia em que desapareceu o ex-marido, Garrincha, 39 anos antes, contrariando uma estatística que ela nunca esqueceu, fazendo parte de uma ínfima minoria, sendo uma mulher negra que morre de causas naturais na velhice, o que no Brasil, o país do genocídio negro, é de uma raridade chocante.
Em 2015, saía o álbum A Mulher do Fim do Mundo, que além de ser o 34º trabalho de estúdio, foi mais outro renascimento de uma carreira com mais de sete décadas, era o primeiro disco de canções inéditas, e valeu-lhe o primeiro Grammy da sua carreira. Na altura, deu uma entrevista a este jornal, e quando lhe foi perguntado o que é uma mulher do fim do mundo, ela que é uma mulher que não aceita já o fim de nada: “Uma mulher que está num novo mundo, num novo ciclo. Acaba uma coisa e vem outra, sempre para melhor.” O comunicado enviado pela assessoria da cantora à imprensa brasileira que dava a notícia da sua morte, realçava a “vida apoteótica, intensa” da cantora “que emocionou o mundo com sua voz, sua força e sua determinação”.
Nunca se cansava de sublinhar o muito que gostava de visitar Portugal, e o carinho que tinha pelo público português. A última vez que pisou os nossos palcos foi em 2019, tendo apresentado o seu penúltimo álbum, Deus é Mulher, editado no ano anterior, participando ainda no lançamento da sua biografia, Elza. A sua voz era então um longo caminho, bastante castigada, mas cheia de vida, condensando nela a dor e as conquistas, sem deixar assentar de vez a poeira de uma vida que começou na favela da Moça Bonita, no Rio de Janeiro. Ali nascera a 23 de junho de 1930. Mas até essa data está sujeita a debate, pois ela mesma fazia mistério sobre a sua verdadeira idade. “Nunca parei para contar”, dizia numa publicação no Instagram, em 2020. “Ia dar uma trabalheira danada. Há dias em que nem nasci ainda, estou no ventre, em outros acabei de nascer, sei lá. Sou menina, filha do século 21 e mulher feita, tenho a idade de Nefertiti. Vou vivendo, me reinventando e vivendo nos últimos anos os melhores dias da minha vida.”
O que é certo é que a mãe era lavadeira e o pai operário e músico amador. Foi já noutro bairro, Água Santa, que este a obrigou a casar, aos 12 anos, com um homem de 22. Teve um primeiro filho aos 13, seguindo-se mais quatro – um deles não resistiu à fome e outro foi entregue para a adoção. Aos 21 anos Elza ficaria viúva, depois de o marido morrer de tuberculose. Pelo meio da sua carreira na música, que começou com a participação num programa de rádio, em 1953, e lhe valeu trabalho com várias orquestras brasileiras, há mais histórias de amor, nomeadamente com o famoso “anjo das pernas tortas”, o futebolista brasileiro Mané Garrincha, com quem esteve casada 11 anos, período em que perdeu a sua mãe – num acidente de viação num carro conduzido por Garrincha. Em 1986, perderia outro filho, com nove anos, num outro acidente de automóvel. Ao todo, perdeu cinco dos sete filhos. Mas há uma frase que fica por cima da entrada para o inferno para onde tantas vezes a vida a empurrou. "Eu venho do Planeta Fome.” Foi esta a resposta que deu naquele programa da rádio quando o apresentador Ary Barroso, autor de Aquarela do Brasil, olhando para o seu visual, que aos indisfarçáveis sinais de pobreza misturava a nota de um atrevimento e exuberância invulgaríssimo, lhe perguntou com um claro acento de troça: "De que planeta você vem, minha filha?"
Ao longo de toda a vida, nunca deixou de declarar guerra à mísera perspetiva que o destino parecia reservar-lhe. Nasceu já no fundo do poço, era uma nativa, e, por isso, sabia que só lhe restava trepar fosse como fosse. Trabalhava numa fábrica de sabão na altura em que se apresentou àquela que era uma das rubricas radiofónicas mais famosas do país, segundo ela mesma contou, pesava uns 32 quilos, e o vestido, que era da mãe, parecia pesar o dobro. Ajustou-o com uma série de alfinetes, e, no pé, “coloquei uma sandália que a gente chamava de ‘mamãe tô na merda’, e fui!” Foi lá, e quando o apresentador e o público faziam mofa dela, calou-os com aquela frase, e depois conquistou-os com a sua voz. Quando deixou o palco, a Ary Barroso restava-lhe anunciar: “Nasceu uma estrela”.
O que distingue uma estrela é estar lá, naquele limite isolado, brilhando a vida toda. E, se parece fácil, na verdade, o que faz é espancar toda a escuridão que a cerca e tenta consumi-la. Caetano Veloso, um dos artistas que teria um papel decisivo ajudá-la no momento mais duro da sua carreira, quando a convida para um dueto em Língua, uma das canções do álbum Velô (1984), homenageou-a após a notícia da morte, lembrando que “Elza Soares foi uma concentração extraordinária de energia e talento no organismo da cultura brasileira”. A intervenção deste mostrou-se necessária, quando no início da década de 1980, ela parecia prestes a ser esquecida. Tinha-se casado com Garrincha, e depois da casa dos dois ser apedrejada numa madrugada, viu-se obrigada a fugir, tendo passado os anos 1970 entre Itália e França, dava concertos pela Europa, aguardando que o Brasil amadurecesse, e a ditadura militar caísse de podre, depois desse regime ter acicatado os seus cães contra o casal de uma mulher negra e um nordestino, um dos futebolistas mais populares entre a mitologia que segura o orgulho naquela nação que nunca se livrou inteiramente do complexo do “vira-lata”, como notava Nelson Rodrigues. Era a moral que, então, se mostrava ofendida, e sendo Garrincha casado na altura em que se envolveu com Elza, a horda dos puritanos queria dar cabo daquela união. Mas se ela diz que amou Garrincha como mais nenhum outro homem, viu-se obrigada a separar-se dele que, tomado pela cólera que vinha de virar um copo depois de outro, a humilhou devolvendo-a às estatísticas que dão como normal uma mulher negra ser vítima de violência doméstica.
Tendo sido uma das primeiras artistas brasileiras a adotar a estética afro-urbana ainda na década de 1960, e a associar-se às referências da luta pelos direitos civis nos EUA, Elza lutou pela libertação do seu corpo, da sua vida, e pela dignidade de tantas outras mulheres que sofrem todas as formas de abuso numa sociedade que, em muitos aspetos, continua ainda a ser complacente com a imagem da mulher como alguém que deve ser submisso, ao ponto de muitas vezes ser “depósito de lixo de alguns homens”, como ela disse numa entrevista à Rolling Stone Brasil. No fim, Elza foi um ícone por ter sofrido tudo isso na pele, por ter engolido na sua negritude todas as manchas, todas as humilhações, e, sem se tolher, ter brilhado mais forte e inspirado gerações.