Eusébio será sempre um nome ímpar. Está no som, no E aberto. Um nome fascinante de uma figura fascinante que dobrou as esquinas do tempo e se tornou sinónimo de um país então muito a branco e preto. Eusébio elevou o Benfica (e com ele o futebol português) ao estatuto universal. E foi, durante anos a fio, a par daquela a quem ele chamava a D. Amália, um dos únicos símbolos nacionais que arrasaram a barreira das fronteiras.
Faria, na próxima terça-feira, 80 anos, o filho de Elisa Anissabeni e de Laurindo António da Silva Ferreira, natural de Malange, em Angola, funcionário dos Caminhos de Ferro de Lourenço Marques, jogador do Ferroviário. A vida fugiu-lhe cedo, aos 37 anos, vitimado pelo tétano. Eusébio aprendeu a viver sem pai. No bairro da Mafalala, onde vivia D.ª Elisa Anissabeni, era hábito as pessoas dormirem a sesta em redes estendidas entre dois coqueiros. Ou trazerem para fora das suas casas pequenas e abafadas, colchões de palha que estendiam no terreiro, à sombra de uma acácia de copa achatada e flores rubras. Colchões de palha forrada a serapilheira riscada a vermelho e branco.
A mãe de Eusébio já tivera três rapazes. Queria uma menina, agora. O dia 25 de janeiro de 1942 não lhe fez a vontade. Nasceu-lhe outro rapaz. Chamou-se Eusébio da Silva Ferreira. O mundo saberia, a devido tempo, decorar-lhe o nome. E pronunciá-lo de todas as formas. Euzibiú, Ózébio, Iuzibiô, Ouzébiou… O mundo não tardou a confundi-lo com Portugal.
«Chego a convencer-me de que, enquanto os outros bebés aprenderam a andar, eu aprendi a chutar», diria Eusébio, dezanove anos depois de ter chegado a Lisboa, numa entrevista concedida a Carlos Miranda, antigo diretor de A Bola, uma das prosas mais elegantes que passaram pelas páginas de jornais.
«Não me lembro de brinquedos, não me lembro de jogos ou de partidas. Lembro-me da bola. Sempre da bola. A trapeira, se coisa melhor não se conseguia arranjar, lá nos coqueiros, em desafios sem fim, sem prazos de tempo nem balizas medidas. Jogar à bola, fosse como fosse, era tudo quanto desejávamos». E continuava: «Eu já andava numa escola, claro, e algumas vezes, bom… houve umas gazetas, a minha mãe não gostava nada que eu andasse enfronhado no futebol, apertava comigo, que me importasse com a escola e me deixasse dos pontapés na bola, mas eu não sei explicar, havia qualquer coisa que me puxava, sentia um frenesim no corpo que só se satisfazia com bola e mais bola. O resultado de tudo isto era uns puxões de orelhas bem grandes e, uma vez por outra, umas sovas que não eram brincadeira nenhuma». De nada serviu. Os irmãos estudam, Eusébio não. Alguns chegam a completar o liceu, ele desiste no fim da 4.ª classe. Estava escrito: seria Doutor em futebol. Honoris causa!
11 minutos perfeitos
Tive a sorte de conhecer bem Eusébio, de ser seu amigo, de ouvir muitas e muitas das suas histórias, tanto durante a minha carreira de jornalista como no tempo em que trabalhei com a seleção nacional da qual foi sempre o grande embaixador.
Chegou ao aeroporto de Lisboa para mergulhar num processo burocrático entre o Benfica, que o contratou por 400.000$00, e o Sporting que queria tirar proveito de ele ter sido jogador da sua filial de Lourenço Marques. Um processo que o manteve inativo por longos meses e o impediram de participar da primeira conquista dos encarnados na Taça dos Campeões Europeus. Ele que marcava golos e golos atrás de golos lá na sua Lourenço Marques natal e, de repente, deixava de poder entrar em campo.
Eusébio desesperava. «Estava indiferente, desiludido. Já não acreditava em nada», diria mais tarde. Mas o caso resolveu-se. E a sua estreia com a camisola da águia ficou agendada: dia 23 de maio de 1961, num jogo frente ao Atlético inserido no Festival de Despedida Rumo a Berna, para defrontar o Barcelona. Desembarcara na Portela de Sacavém no dia 16 de dezembro do ano anterior. Tinha medo do frio da metrópole.
Bastos: ficou para a história como o primeiro guarda-redes a sofrer um golo de Eusébio fardado à Benfica. «É um rematador extraordinário! E tem o jeito e a calma de um consagrado», afirmaria no fim.
No dia 23 de maio, a festa começou cedo. Chuviscava em Lisboa pelas sete da tarde. Muitos milhares de pessoas acorreram em romaria ao Estádio da Luz: para verem os jogadores do Benfica receberem as faixas de campeões; para se despedirem da equipa que seguiria para Berna; para confirmarem tudo aquilo que se havia dito e escrito sobre Eusébio da Silva Ferreira. O festival começou com um jogo de juniores entre Benfica e Belenenses e venceram os encarnados por 5-0. Havia, de um lado e do outro, nomes que ficariam famosos: Godinho, Quaresma, Melo, Gervásio e, sobre todos, António Simões.
Eusébio começa o jogo como interior-esquerdo, passaria em seguida para interior-direito, jogando com Mendes na sua frente. O público, esfomeado, exige-lhe o impossível e ele dá-lhe o impossível: aos 11 minutos apenas, três remates fulminantes, um golo fantástico. O Benfica é um conjunto desgarrado, individualista, pouco firme. O Atlético empata por Pedro Silva (15 m) e chega à vantagem por Angeja (36 m). Mas Eusébio vai enchendo o campo com o seu estilo moderno, diferente.
Aos 76 minutos, tem novo remate que daria golo ou não, ficará por saber-se: Armando Ferreira estica o braço, desvia a bola como se fosse o guarda-redes que não é. O penálti é de Eusébio, foi ele que o criou, os adeptos ordenam-no, o futebol também: golo. Quatro minutos depois, Inácio, que entrara para o lugar de Peres, tira um centro da esquerda: Mendes toca a bola já dentro da área eEusébio desvia para a baliza. Três-golos-três. Mendes marcaria ainda noutro, a três minutos do final.
Eusébio da Silva Ferreira: uma nova estrela brilhava na Luz. «Sou um homem feliz!».