Antes de se despedir deste mundo, na sequência de uma longa batalha contra uma forma rara de cancro no pâncreas, Steve Jobs deixou instruções precisas para a sua cerimónia fúnebre. Determinou quem estaria presente, quem faria os discursos e até que música tocariam Bono, o vocalista dos U2, e o violoncelista Yo-Yo Ma. No final da cerimónia, a pedido do fundador da Apple, cada um dos 500 convidados recebeu uma caixa castanha.
Embora tenha fundado a marca mais valiosa do mundo e beneficiasse de todas as mordomias ao alcance de um milionário de Silicon Valley, Jobs não era de modo algum um materialista puro e duro. Tinha uma faceta espiritual bem vincada e a sua última mensagem aos familiares e amigos dava conta disso. No interior de cada caixa castanha encontrava-se um exemplar de uma das obras espirituais mais importantes do século XX: Autobiografia de um Iogue, de Paramhansa Yogananda (1893-1952), o homem que levou o ioga para os Estados Unidos da América. Jobs ficou impressionado ao lê-la quando era adolescente, ao ponto de embarcar numa viagem à Índia. Na sua biografia de 2011, Walter Isaacson conta que muito mais tarde o CEO da Apple descarregaria o livro no seu iPad e lia-o uma vez por ano.
Não foi o único a fazer da Autobiografia de um Iogue o seu livro de cabeceira: entre os milhões de admiradores do guru indiano contava-se também George Harrison. O guitarrista dos Beatles considerava a influência de Yogananda tão determinante que o incluiu entre as cerca de 60 personalidades representadas na famosa capa do álbum Sgt. Pepper. A figura de cabelos longos e olhar tranquilo surge rodeada por H.G. Wells, James Joyce, Bob Dylan e Lawrence da Arábia.
Publicada pela primeira vez em 1946 e recentemente editada em Portugal pela Albatroz, Autobiografia de um Iogue conta na primeira pessoa a trajetória espiritual do iogue indiano.
«Nasci na última década do século XIX, em Gorakhpur, nas Províncias Unidas do Nordeste da Índia, onde vivi até aos oito anos», começa o autor. «Os meus pais tiveram oito filhos: quatro meninos e quatro meninas. Eu, Mukunda Lal Ghosh, fui o segundo rapaz e o quarto filho a nascer».
O pai, um «matemático notável e um lógico extraordinário» que trabalhava para a companhia de caminhos-de-ferro, era sério, honesto e exigente. A mãe era uma mulher doce e generosa. Uma disciplina severa regia a educação dos filhos. «A instrução e os castigos andavam sempre de mãos dadas».
Talvez ainda mais importante, ambos os progenitores eram devotos de Lahiry Mahasaya, um homem santo que através do seu exemplo tinha demonstrado que a via espiritual do kriya yoga não era incompatível com o casamento e a vida familiar.
Uma sede invulgar
Paramhansa Yogananda acreditava que fora a intervenção deste guru que o salvara aos oito anos, quando esteve às portas da morte por causa de um ataque de cólera-asiática. «Sentada à minha cabeceira, a minha mãe rogou-me que olhasse para a foto de Lahiri Mahasaya, que estava na parede, por cima da minha cabeça. Olhei para a fotografia e vi uma luz ofuscante a envolver o meu corpo e todo o quarto. A náusea e os outros sintomas desapareceram. De repente, senti-me bem».
A autobiografia está cheia de relatos de curas miraculosas, profecias infalíveis e prodígios que a ciência não pode explicar. Na verdade, o pequeno Mukunda (só adotou o nome de Yogananda em 1914, quando entrou para ordem monástica dos swamis, e recebeu o título religioso de Paramhansa em 1935) sempre se sentiu um pouco especial. O que ele desejava acontecia aparentemente sem esforço e mais tarde o pai viria a revelar-lhe que mesmo antes de nascer já estava predestinado a tornar-se um mestre espiritual.
Aos 11 anos teve de certo modo a confirmação disso, quando durante a noite teve uma visão da mãe, que se encontrava a grande distância, a instruí-lo para convencer o pai a apanharem um comboio se queriam ainda vê-la com vida. O pai achou que se tratara apenas de um pesadelo, mas na manhã seguinte recebia um telegrama a chamá-los com urgência. A mãe morreria de facto na sequência desse episódio.
Desde muito cedo Mukunda tinha uma sede invulgar dentro dele. E acreditava que iria saciá-la nos Himalaias, onde havia mestres que lideravam comunidades dedicadas a uma vida de oração, devoção e meditação.
Por volta dos doze anos, fugiu de casa com dois amigos em direção às montanhas. Mas um dos seus jovens companheiros acabou por voltar para trás e denunciá-los. Três dias depois o irmão de Mukunda localizou-o e levou-o de regresso à casa paterna.
O jovem inquieto continuou à procura de orientação espiritual. Conheceu figuras pitorescas, como o ‘santo dos perfumes’, que do nada produzia as mais requintadas fragrâncias; o ‘swami dos tigres’, um homem capaz de subjugar os tigres mais ferozes com as mãos nuas, que depois se converteu a uma existência pacífica; e Bhaduri Mahasaya, o santo que renunciou à fortuna familiar e que era capaz de levitar. Nenhum deles se revelou o mestre por que ansiava.
‘Há anos que espero por ti’
Depois de concluir – como o pai lhe exigia – o ensino secundário, Mukunda ingressou num eremitério em Benares, no Uttar Pradesh, a capital espiritual da Índia, banhada pelo Ganges, onde havia qualquer coisa como dois mil templos.
A relação com os outros discípulos não era fácil. E Mukunda orava para que lhe fosse revelado o caminho. Finalmente, julgou receber a resposta. «De repente, tive a sensação de ter sido elevado a uma esfera infinita», relatou. Mas a experiência de imediato foi interrompida pela entrada de um jovem sacerdote que o incumbiu de fazer um recado: «Chega de meditação!».
Mukunda, contrariado, obedeceu. Mas seria precisamente ao fazer esse recado que que encontraria o mestre por que tantas vezes suplicara, ao deparar-se com «um homem de aparência crística, imóvel, com as tradicionais vestes ocres dos swamis». Ainda teve dúvidas. Afinal, poderia tratar-se apenas de uma impressão errada, de uma intuição enganosa. E seguiu o seu caminho.
«Como se o vento me levasse, rumei à rua estreita, onde imediatamente descobri a figura tranquila, a olhar fixamente na minha direção. Mais uns passos ansiosos e estaria a seus pés.
– Gurudeva! – O seu rosto divino era o mesmo das minhas milhares de visões. Os mesmos olhos de alcião que brilhavam numa cabeça leonina rodeada por uma barba pontiaguda e uma farta cabeleira encaracolada, que me tinham surgido muitas vezes na escuridão dos meus devaneios noturnos, contendo uma promessa que eu não compreendera totalmente.
– Vieste ao meu encontro! – O meu guru pronunciou as palavras repetidamente em bengali, com a voz trémula de alegria. – Há tantos anos que espero por ti!
Houve imediatamente entre nós uma comunhão silenciosa; as palavras pareciam supérfluas e grosseiras. A eloquência fluiu num cântico mudo do coração do mestre para o coração do discípulo. Com uma espécie de antena de introspeção irrefutável, senti que o meu guru conhecia Deus e me levaria até Ele. A obscuridade desta vida desapareceu numa frágil aurora de memórias pré-natais».
Mukunda parecia ter finalmente encontrado em Sri Yukteswar o seu destino. Mas, curiosamente, o fascínio do jovem discípulo pelos Himalaias ainda não se tinha desvanecido. E quando um dia o mestre lhe fez uma reprimenda, voltou a ver nas montanhas o caminho da salvação. Até que se cruzou com um homem que parecia ler-lhe os pensamentos.
«- Jovem iogue, vejo que estás a fugir do teu mestre. Ele tem tudo aquilo de que precisas, por isso deves voltar para junto dele», aconselhou-o o velho. Com as palavras seguintes, convenceu-o de vez: «Nem os Himalaias da Índia nem os do Tibete detêm o monopólio dos santos. O que não nos dermos ao trabalho de procurar dentro de nós não será descoberto por transportarmos o corpo para cá e para lá. […] Por acaso tens algum quarto onde possas fechar a porta e ficar sozinho? – perguntou-me. […] Essa é a tua gruta. – O iogue lançou-me um olhar de iluminação que nunca esqueci. – Essa é a tua montanha sagrada. É aí que vais encontrar o reino de Deus. – Aquelas palavras tão simples puseram instantaneamente fim à obsessão que eu tinha pelos Himalaias, e que carregara comigo a vida toda. Foi num campo de arroz abrasador que despertei dos sonhos feitos de montanhas e neve».
De então em diante não mais se desviou do seu caminho – caminho esse que o levaria, de acordo com a vontade e a profecia do seu mestre, a cruzar os oceanos para levar a sabedoria milenar da Índia à jovem nação americana.
O palácio, o arranha-céus e a gruta
Paramhansa chegou a Boston em setembro 1920 para participar no Congresso Internacional de Religiosos Liberais. A sua estadia estendeu-se muito para lá do evento. Fez um tour pelos EUA, dando palestras e aulas de ioga que juntavam centenas de pessoas curiosas e carentes de orientação espiritual. Para difundir a sua mensagem, ali fundou também a Associação para a Realização do Self, que hoje tem sucursais em quase todas as principais cidades americanas.
No regresso da América, uns cinco anos depois, passou pela Europa – onde se encontrou com Therese Neumann, uma alemã que nunca comia nem bebia e exibia os estigmas de Cristo. Um dos muitos aspetos interessantes do seu livro é o conhecimento profundo que o iogue revela do Cristianismo, e como o concilia os seus ensinamentos com os preceitos do hinduísmo.
Certas páginas – por exemplo, aquelas em que Babaji, o mestre de Lahiry Mahasaya, ergue num golpe de magia um palácio nos Himalaias – desafiam a nossa credulidade. «’Esta noite, este magnifico palácio será o cenário da tua iniciação no Kriya Yoga […]’ Um enorme e deslumbrante palácio de ouro surgiu diante de nós com inúmeras joias incrustadas e rodeado de jardins maravilhosos, num espetáculo de grandiosidade incomparável. […] Diamantes, pérolas, safiras e esmeraldas enormes e reluzentes adornavam as arcadas».
Demonstrações deste tipo parecem não só desnecessárias como, no mínimo, contraditórias com a apologia do desprendimento. Ou frases como esta, que o ressuscitado Sri Yukteswar diz ao seu amado discípulo: «- Nos solos astrais crescem em abundância legumes semelhantes a raios luminosos».
É inevitável que mesmo o leitor mais predisposto a aceitar as palavras do iogue se questione acerca destas passagens. Mas nada disso invalida o proveito que se retira da leitura. «A Índia, apesar de materialmente pobre nos últimos dois séculos, continua a ter uma reserva inesgotável de riqueza divina. É possível encontrar verdadeiros ‘arranha-céus’ espirituais numa berma da estrada», diz-nos Yogananda no início da narrativa. Encare-se a Autobiografia de um Iogue como um guia espiritual ou como o relato de uma vida excecional (a que o autor juntou pequenas biografias de outros gurus e episódios deliciosos, como o do faquir muçulmano ou do swami dos tigres), a sua leitura revela-se sempre proveitosa. Para uns, será a resposta que procuravam; para outros, a busca continua, sendo certo que talvez não precisem de ir muito longe. Como disse o sábio a Mukunda: «Tens um quarto onde possas fechar a porta e ficar sozinho? […] Essa é a tua gruta. […] Essa é a tua montanha sagrada». Ou como diz o autor acerca de uma mulher santa a quem chamavam ‘Mãe Cheia de Alegria’ de Bengala: cada um carrega dentro de si «o seu paraíso portátil».