“Às vezes, ao ver as fotografias dos meus agricultores, correm-me as lágrimas”

Já expôs nalguns dos maiores museus do país e venceu importantes prémios internacionais, mas o médico veterinário Jorge Bacelar só começou a fotografar há cerca de oito anos. As suas imagens do mundo rural são uma homenagem aos agricultores. ‘Quem trabalha como eles trabalham só merece o nosso respeito’, defende.

Veterinário de animais de grande porte com mais de duas décadas de experiência, do que Jorge Bacelar gosta mesmo é do contacto com as pessoas. «O ato médico não é só tratar, ver e ir embora», esclarece. «Também devemos estar com as pessoas, conviver com elas. Sinto-me como em família». Por isso, aos fins de semana vai visitar os seus amigos agricultores da zona da Murtosa e Estarreja, para poderem conversar sem pressas.

Há cerca de oito anos, essa relação de afeto mútuo começou a traduzir-se primeiro em vídeos e depois em retratos dos agricultores, alguns de grandes dimensões. Com ou sem animais, estas fotografias oferecem uma janela para um mundo rural que muitos julgariam existir já só na aldeia mais remota. E já valeram ao seu autor prémios sem conta, além de comentários que o deixam com «um nó na garganta». Alguns dos funcionários mais antigos do Museu Nacional Machado de Castro, por exemplo, onde encheu três salas, disseram-lhe que a sua tinha sido a exposição mais bonita que alguma vez haviam visto ali.

Agora, as imagens do fotógrafo-veterinário vão ocupar as paredes do Ateneu do Porto: Ruralidades inaugura às 18h deste sábado e estará patente durante um mês. «Será a minha maior exposição», promete o autor.

Como veterinário nunca teve um consultório clássico onde as pessoas levam os cães, os gatos e os periquitos?
Já fui diretor clínico de uma clínica de animais, mas fiz sempre clínica de campo, de grandes animais. Tirei Medicina Veterinária em Vila Real, entrei logo no primeiro ano de abertura do curso. Estagiei fora, na Universidade de Saragoça, e mal voltei para Portugal vim logo aqui para a Murtosa, e trabalhei sempre em grandes animais. Os pequenos animais eram um complemento, ao final do dia, ou após o horário. A clínica de campo é que foi sempre o meu principal foco. E conversar com as pessoas e com os agricultores.

Foi estudar Veterinária já com esse objetivo?
Para ser sincero ainda não sabia bem, até porque, excetuando o meu avô paterno, que quase não conheci, não tenho ninguém na família que fosse agricultor. Mas tirei o curso e depois do que gostei mais quando comecei a trabalhar foi essencialmente o contacto e poder ajudar as pessoas, que é o que me motiva e me move na minha profissão. Estes agricultores trabalham imenso, não têm férias nem dias de descanso, trabalham do nascer ao pôr do sol. Admiro imenso a sua entrega, a sua dedicação. E no fundo não veem o seu trabalho devidamente recompensado. E isso tudo mexe comigo. Trabalho com eles há vinte e pouco anos e já os sinto como família, são muito meus amigos.

Tem pessoas que acompanha já há esse tempo todo?
Até mais. Daqui a pouco estou há 30 anos a fazer clínica. Sinto-me como em família, eles são meus amigos, como eu sou amigo deles, porque quando estamos a trabalhar passamos muitas, muitas horas juntos, e isto tudo cria laços fortes.

E como aparece a fotografia?
Isso é muito mais recente. Nem sequer fazia bem ideia de como a máquina funcionava. Apesar dos prémios e de ter atingido o que atingi, não fotografo há muito tempo. Hoje vejo em cada fotografia quase um retrato da minha vida. Olho para elas e sinto o que senti quando fotografei, o que vivi: os corpos cansados, o olhar amigo… Julgo que um retratista tem de ter esta cumplicidade com as pessoas retratadas, tem de estar muito bem entrosado no meio. Isso tudo facilitou, e talvez o facto de fazer clínica há muitos anos, mesmo não me apercebendo, deu-me uma noção dos espaços, dos locais e da luz. Vi na fotografia um modo de os perpetuar e de estar com eles ao fim de semana e nas horas vagas, que é a altura que utilizo para os fotografar.

É um prolongamento da sua atividade?
É o prolongamento da amizade. O ato médico não é só tratar, ver e ir embora. Acho que também devemos estar com eles, conviver com eles, sentir, como com a família, que eles estão bem, desabafarem coisas que só desabafam comigo. Gosto muito deles e sinto que é recíproco.

Cresceu também em contexto rural ou este mundo foi uma descoberta para si?
Foi uma descoberta. O meu pai é juiz, a minha mãe é advogada e na família há muitas pessoas na área de Direito. Agricultores com vaquinhas e tudo não havia na família. Foi uma descoberta e um fascínio e um gosto de poder ter estes amigos. São pessoas que trabalham de manhã à noite, o prazer da vida passa-lhes praticamente todo ao lado.
Mas não retiram o prazer de outras coisas? Da relação com os animais ou dos alimentos que comem, por exemplo?
Pois, o mundo deles acaba muito restringido ao carinho que têm pelos animais, ou tratar das culturas, ir para o campo. E é por isso que na fotografia tento retratar não apenas os rostos, mas também as mãos, que são mãos de trabalho, os animais, o campo. E tenho por norma não colocar legendas, tento que a fotografia por si conte uma história. E depois há ambientes que fotografo que é quase como um recuar no tempo, e sinto que se calhar muitas pessoas acabam por se identificar muito com isto porque têm familiares ou amigos ou viveram na infância um pouco aquilo que eu vivo.

As fotografias são muito bonitas, algumas parecem pinturas. Mas depois este mundo não tem um lado mais sombrio, mais duro?
Tem. O trabalho é extremamente duro. Por isso é que não ponho legendas. Mas tenho cuidado em que se note os rostos, as mãos de trabalho, as unhas… A mão do agricultor é uma mão suja do trabalho, de mexer na terra; o pescador tem a mão limpinha, branca, de mexer na água… O agricultor não, tem as mãos cansadas, com artroses, muito castigadas do trabalho. Mas têm uma forma muito afável de receber e de tratar as pessoas. Sinto que os que menos têm são os que mais dão. E sinto que a amizade que eles têm comigo é sincera. Para mim, mais importante que se reconheça o autor das fotografias, é reconhecerem as pessoas retratadas, e que estes meus amigos, estes meus agricultores fiquem eternamente registados. E claro, vê-los expostos em grandes museus ou em grandes espaços como o Ateneu do Porto, os jardins do Museu de Arte Antiga ou o Museu Nacional Machado de Castro, a encher três salas enormes, é um gosto. Sinto a felicidade deles quando lhes mostro e sinto que também ficam contentes com a forma como eu os vejo através da fotografia.

Eles depois também chegam a visitar as exposições?
Quando é possível levo-os. Mas nem sempre é. Muitas vezes, lá está, o trabalho prende-os de tal maneira que não o permite. Mas sempre que posso tento levá-los às exposições.

Como reagem?
É muito bom, é quase mágico. É quase como se as pessoas saltassem das fotografias e caminhassem pela galeria. É muito, muito bonito eles sentirem que são importantes, que naquele momento as figuras principais são eles.

Algumas destas pessoas que retrata têm um rosto muito marcado, muitas rugas – e falou também das artroses. Quais são as principais dificuldades que passam? Frio, excesso de trabalho?
Se calhar em casa delas nem tanto, mas às vezes chego a casa e quando estou a olhar para as imagens fico a pensar como é que pessoas às vezes com mais de oitenta anos ainda têm de trabalhar de manhã à noite. Mas que mundo é este? Porque é que pessoas com esta idade, que já trabalharam tanto, ainda trabalham?

E eles sentem-se de alguma maneira abandonados?
Não. Já estão habituados a trabalhar e gostam. E a maior parte deles não se veem a fazer outra coisa. Gostam do trabalho no campo, estão felizes assim. Retirá-los do campo também não seria bom. Para muitos, parar seria morrer. Gostam de sentir o animal dentro do curral, as galinhas a cantar, tudo isso faz parte da vida deles desde pequeninos. Parar de trabalhar para eles seria quase certamente como certas pessoas que atingem a idade da reforma e se vão muito abaixo. Mas dá para interrogar porque são mãos muito castigadas pelo trabalho e são rostos também marcados… Alguns destes agricultores ninguém dá por eles, se calhar no dia-a-dia muita gente passa por eles e nem sequer se apercebe o quanto eles trabalham e o respeito que merecem. Quem trabalha da forma como eles trabalham só merece o nosso respeito. Às vezes olham para as minhas fotografias e dizem: ‘Epá, isto tem de ser na aldeia mais remota’. Não é bem assim. Em muitos sítios por aí fora ainda tem de se pôr a lenha para acender o fogo para preparar a refeição.

Disse que fala muito com eles e faz até o papel de confidente. Contam-lhe histórias sobre como era a vida no campo antigamente?
Contam-me tudo. Há sempre histórias por trás das fotografias mas que guardo para mim, para não induzir em ninguém aquilo que sinto. Mas claro que sim. Sempre que posso vou ter com elas, ficamos horas a falar, da vida, da infância, tudo. Este fascínio da fotografia começa com o vídeo. Em vídeo tenho registada muita da história da vida deles. E alguns têm histórias fascinantes… São pessoas que não têm o hábito de se queixar, só em situações muito extremas. Já viu? Um quilo de pedras está às vezes ao mesmo preço que um quilo de batatas, não é? O setor primário – a agricultura, a pesca – é a base da alimentação, devemos-lhes tudo. Se não houvesse agricultores nem sequer tínhamos uma refeição na mesa. E o agricultor está sujeito às adversidades do tempo, à seca, à chuva, as colheitas irem à vida. Podem perder tudo. É muito triste.

Pensava que isso só acontecia antigamente, que hoje já havia maneira de não estar tão dependente dos ‘caprichos’ da meteorologia.
Há adversidades que são imprevisíveis. Imagine que plantam milho e na altura da colheita a chuva é tanta que se torna impossível entrar nos terrenos, e torna-se muito difícil fazer a silagem para dar de comer aos animais… É um desastre para eles. Estas situações são muito difíceis de controlar – e por isso é que as seguradoras nem sequer querem assumir nada disso. Tudo o que tenha risco alto, não assumem, é o desgraçado do agricultor que tem de assumir, para depois vender o produto ao preço que encontramos no supermercado.

Ou nos mercados. Encontramos maçãs, tangerinas, batatas… às vezes nem chega a um euro o quilo.
É porque nem paga a mão-de-obra. Quando vamos comer lá fora, a Espanha, França ou a um sítio qualquer, e se vamos comer ao restaurante a refeição foi cara. Porquê? Porque ali foi valorizada a mão de obra. Temos de nos habituar a valorizar o esforço das pessoas. E mais: estes pequenos agricultores têm que fazer frente a explorações de hectares e hectares de terrenos a perder de vista. Nem têm hipótese de competir. Por isso alguns fazem agricultura de subsistência, produzem só para eles. O leite já não é bem assim, mas as batatas, as cebolas, as couves, as galinhas, é para eles. É impossível um agricultor criar uma galinha de campo para a vender a três ou quatro euros, que é o preço a que se vende no supermercado. Por isso acaba por ser para auto consumo. Acho que as pessoas deviam habituar-se a comprar localmente, irem aos agricultores. Saberem comprar produtos frescos, servidos na hora, produzidos de forma que as pessoas saibam. Tudo isso devia ser valorizado. Mas nem toda a gente tem tempo ou tem essa sensibilidade. Se calhar nem sequer pensa nisso. Chega ali, apanha no supermercado e já está. Tudo isto deixa a pensar… Não é justo.

Já ouvi falar de pessoas que conseguem estabelecer uma relação tão próxima e tão profunda com os animais que conseguem mesmo comunicar com eles. Alguma vez testemunhou um caso desses?
Os animais tratados com afeto e com carinho retribuem o afeto e o carinho. O pequeno agricultor muitas vezes chama os animais pelo nome, trata-os com afeto e carinho. Ou às vezes, ao contrário, quando morre o animal sentimo-los a chorar de tristeza. Nestes pequenos agricultores toca-lhes muito mais. E é por isso que fotografo. Também trabalho com grandes agricultores, com grandes explorações, algumas com mais de mil vacas. Mas esses pequenos agricultores mexem mais comigo.

Vê-se que muitos destes seus clientes e amigos são pessoas já de muita idade – aliás esse é um dos problemas do país, e especialmente do mundo rural. Sente que é um mundo em vias de extinção?
A exploração de subsistência corre esse risco. É muito difícil sobreviver não vendo o seu produto recompensado. Ou se cria um mercado em que este tipo de produto seja devidamente valorizado ou torna-se difícil.

Penso que em França, por exemplo, já conseguem isso.
Vou contar uma história engraçada. Eu trabalho principalmente na Murtosa e em Estarreja. Mas nasci em Figueira de Castelo Rodrigo. E em Figueira de Castelo Rodrigo pediram-me há tempos uma exposição. Pensei que seria engraçado, já que foi lá que nasci – foi a primeira comarca em que o meu pai, como juiz, foi colocado, depois saí com sete meses –, fotografar as pessoas de lá. Fotografei uma senhora, Emília Reigado, que tudo o que produz é biológico. E certificado. E eu digo-lhe: ‘Então Emília, consegues vender isto?’. E ela: ‘Eu vendo tudo, doutor’. O que não consegue vender, vem um veleiro, julgo que da Holanda, aqui ao Porto de Matosinhos, carrega tudo o que ela tem, depois vai à vela e é distribuído lá por bicicletas. Zero dióxido de carbono. O produto dela é todo vendido e todo pago de forma justa. Falta muitos agricultores encontrarem este caminho e sentirem que vale a pena trabalhar desta forma. Embora esse tipo de produto seja mais caro, é justo que seja mais caro. Por isso é que eu digo que muitas vezes as pessoas até vivem no campo, têm o agricultor perto e tudo, mas se calhar vão ao supermercado e podiam comprar ao vizinho e criar ali uma forma de sobrevivência dos próprios agricultores e deste mundo rural.

Imagino que algumas destas pessoas são analfabetas…
Sim… Nas pessoas de mais idade há uma ou outra que não sabe escrever. Alguns depois aprenderam mas ainda tenho pessoas que não sabem escrever.

Sente que há uma sabedoria ligada à natureza que está em risco de se perder?
Todos os dias aprendo com eles. Tenho uma agricultora – já não vou lá há algum tempo, que ela neste momento não tem animais – mas passava lá horas a falar com ela. E ela dizia-me: ‘Cada velhinho que morre é uma biblioteca que arde’. E é verdade. Como vê, a sabedoria deles é enorme. E há muitas coisas que eles sabem que eu não sei. Têm a faculdade da vida. E têm o ensinamento da experiência, que é importantíssimo. Nós também saímos da faculdade e depois com o trabalho e a experiência é que vamos sabendo mais e desenvolvendo mais. Não é a faculdade que nos dá tudo.

Pode dar-me um exemplo concreto de uma coisa que tenha aprendido com essas pessoas?
Quando comecei a fazer clínica, havia poucos médicos veterinários. Agora há mais. E havia agricultores que ajudavam nos partos. Lembro-me de um agricultor de aqui perto que muitas vezes vinha-me ajudar nos partos. ‘Dr., faça assim, faça assado’. E hoje em dia já não há nenhuma cria que eu não tire, mas aprendi muito com ele. Aprendemos todos uns com os outros.

Hoje vamos ao médico e a primeira coisa que ele nos diz é para fazermos exames. Suponho que a sua abordagem na medicina veterinária tenha de ser bastante diferente, que não haja essas máquinas e meios de diagnóstico. Como é que sabe se o animal está bem ou está doente, e se está doente do coração ou do estômago?
Ao contrário do que muita gente pensa, o animal é muito fiel nos sintomas que nos dá. Muitas vezes as pessoas dizem que lhes dói a cabeça, isto ou aquilo, e se calhar nem dói, é psicológico. Os animais não. Por exemplo, se tem uma dor abdominal, tem tendência para olhar para onde lhe dói. Depois, claro, auscultamos, observamos, vemos as mucosas, a temperatura, fazemos o exame geral do animal, e também temos alguns meios complementares de diagnóstico. Tiramos sangue… Não é muito complicado.

Os animais quando têm dor não podem reagir mal?
Não… Também depende da nossa abordagem. Talvez o facto de ser médico veterinário também me ajude na forma como fotografo as pessoas com os animais, porque sei mais ou menos como é que eles vão reagir, como é que se comportam. Muitas vezes as pessoas dizem-me das minhas fotografias: ‘Parece que o animal fez pose para a foto! Como é que fazes isso?’. Julgo que o facto de ser médico veterinário ajuda um bocadinho. Mas não reagem mal. Ainda hoje de madrugada tive uma vaca com hipocalcemia, lá lhe dei o cálcio, levantou-se, foi à vida dela. Mas não é muito complicado. Porque os sintomas que eles dão são…

Fiáveis?
São fiáveis, enquanto o ser humano diz que dói aqui e dói ali, e muitas vezes até pode baralhar a cabeça do médico. [risos]

Dizem que os porcos são muito inteligentes. Já teve demonstrações disso?
Sim, há animais mais inteligentes que outros. O porco é um animal extremamente inteligente. Há pessoas que têm até porquinhos domesticados em casa, sabem estar, não fazem as necessidades dentro de casa, aprendem facilmente, isso é verdade.

Nas suas fotos que metem pessoas e animais transpira sempre uma relação de grande ternura. Mas eu tinha a ideia de que no campo havia pessoas com uma relação mais desprendida com animais e que até não tratavam tão bem os animais. Isso não acontece?
Pode haver de tudo, é como a nossa sociedade. Mas vamos ver uma coisa: os animais são o ganha-pão deles, e se tratar mal o animal nunca será um agricultor com sucesso. Não é muito comum. Acredito que possa haver num ou noutro sítio, até porque o maior dos predadores que existem é o ser humano. Há de tudo. A grande maior parte das vezes são tratados com carinho e com afeto. Veja: uma vaca de leite tem de estar muito bem tratada para dar aquela produção, tem de ser bem alimentada, para não haver stresse, se não facilmente as doenças metabólicas disparavam, por isso têm de ser tratadas com afeto e com todo o cuidado.

Tive um familiar que ficou muito impressionado há 30 anos quando foi ao Japão e visitou uma pecuária onde as vacas bebiam cerveja e ouviam música clássica para ficarem relaxadas!
[risos] A cerveja tem cereais, mal não fazia. Ao contrário de nós, que só temos um estômago, o trato digestivo dos bovinos é compartimentado, tem uma fermentação… e a digestão é bacteriana, cai no rúmen [o primeiro compartimento], e as bactérias ajudam a fazer a digestão. Elas digeriam bem [risos]. O álcool em si é que podia não ser tão bom, mas num animal daquele peso, se fosse só uma cerveja, não lhe fazia grande efeito.

Nestes anos todos de prática clínica há alguma história que gostasse de partilhar?
Há muitas histórias engraçadas. Mesmo, mesmo engraçadas. Fui hoje tratar uma hipocalcémia. O que é? Para haver contração muscular é necessário cálcio. Não havendo cálcio, os animais caem por falta de contração. Uma vez, há mais de 20 anos, chamaram-me a uma exploração muito pequenininha, que era de umas velhinhas. Chamaram-me de madrugada porque tinham lá a vaca caída no estábulo, que também era muito pequenininho, para ela ficar lá quentinha, guardada. Mal passava na porta. E o animal estava muito prostrado, a hipocalcemia muitas vezes deixa os animais completamente prostrados. Parece que vão morrer. Mas respondem muito bem ao tratamento. Nós damos-lhe o cálcio…

E arrebitam?
Essas agricultoras já davam o caso como perdido. Ouvi-as dizer: ‘Como é que vamos tirar o animal? Se ela morrer se calhar vamos ter de partir a porta’. E eu a ver que não ia morrer nada. E no fim de eu dar o cálcio o animal – pumba – a vaquinha pôs-se de pé. Elas nem queriam acreditar. Ficaram com uma cara: ‘como é que isto foi possível?!’ Mas acho que a situação mais engraçada que tive não é essa. Havia aqui um padre da terra que era o Padre António. Uma pessoa amorosa, faleceu já há muitos anos. Uma das irmãs do Padre António tinha uma porquinha que pariu e não dava leite aos leitões. E a senhora estava preocupada e telefonou-me para eu ir tratar a porquinha. Eu chego lá e dei-lhe ocitocina.

Às vezes também se dá às mulheres grávidas, não é?
Sim, também se dá. A ocitocina faz logo a descida do leite. Nós picamos e é quase automático. Aquela porquinha não fazia a descida do leite, apertava-se a teta e não saía leite nenhum. Eu virei-me para a senhora e disse: ‘Aperte lá, veja se não tem mesmo leite’. Não tinha. Eu dou a pica, e passado meio minuto digo à senhora. ‘Aperte lá agora a ver se sai leite’. Bom, aquilo saiu com uma força… O Padre António nessa altura já não era vivo. E a senhora: ‘Milagre, milagre! Ai, meu Irmão, graças a Deus o milagre que tu me fizeste!’. Eu nem tive coragem de dizer que a ocitocina provocava aquilo [risos].

Então a senhora ficou sempre convencida de que foi graças ao irmão que a porca deu leite, não ao veterinário!
Pois, deixei-a estar na sua alegria e na sua fé. Se calhar foi das coisas mais engraçada que me aconteceram. Não foi veterinário, foi o irmão! [risos] Acho que qualquer médico veterinário que faz clínica de campo tem histórias destas que dariam para escrever um livro.

E vai escrever esse livro ou não?
Há desabafos que são tão nossos, não sei… Não posso dizer que nunca irei fazer. Mas para já, não. Encontrei na fotografia na fotografia esta forma de os enaltecer. Escrever… não sei. Nas minhas fotos aparecem muitas vezes vaquinhas. Se são aquelas amarelas, tento explicar que é a raça marinhoa, uma raça autóctone portuguesa. Há muitas pessoas que não fazem ideia de que nós temos muitas espécies animais, galinhas de raça amarela, e outras, que são nossas, fazem parte da nossa cultura, da nossa identidade. Geneticamente são espécies portuguesas, que só existem em determinadas regiões. Acho isso muito importante, valorizar o que é nosso. E depois aparecem muitos porquinhos nas minhas fotos, subentende-se que nesta região há muitos porquinhos. Ou se aparecem as abóboras… Porque só utilizo frutos que são da terra e da época. As vestes que as pessoas têm naquele momento vestidas, isso tudo faz parte do retrato do mundo rural como eu o vejo e o sinto. Posso procurar o sítio onde a luz seja melhor, onde eu veja que em termos de composição a foto funciona melhor, e pedir ao agricultor para ir para aí. Mas sempre na sua exploração, na sua cozinha antiga, no estábulo, dentro de sua casa, e aproveitando sempre a luz natural que entra por uma porta ou por uma janela. É dessa forma que tento registar esses meus amigos.

Sem Photoshop e sem artifícios?
A foto tem que me sair exatamente como eu a quero, porque se não, cada coisa que eu fosse fazer estava a estragar, por isso é que consigo as dimensões que consigo, e vão ver no Ateneu [Comercial], vão estar fotos de muito grande dimensão. Para ter este rigor fotográfico e esta nitidez, se eu me pusesse a brincar, um entendido notava logo. Qualquer imperfeição se notaria. Para mim é uma responsabilidade: se as pessoas me dão esse privilégio de as poder fotografar, também sinto que as devo colocar da melhor forma que ficam melhor. Acho que também se vê um pouco da dignidade do próprio fotógrafo.

Acho que se nota uma grande autenticidade e um grande respeito pelas pessoas.
Gosto mesmo delas. Dá-me vontade de abraçar as pessoas e estar com elas. Fazer tudo por elas. Só assim é que a vida faz sentido. Muitas vezes chego a casa e quando vejo as minhas fotos, dos meus agricultores, correm-me as lágrimas. Sinto um afeto muito grande por eles. Acho que não podemos fotografar só por fotografar, temos de sentir muito. Vou-lhe dar um exemplo. Sou muito amigo dos pescadores da arte xávega, mesmo muito amigo. E muitas vezes estou com eles e falo com eles e até sou capaz de tirar uma ou outra foto ao barco a vir. Há tempos pensei que os ia fotografar também. Não consegui. Não senti a mesma emoção. Só fotografo porque sou veterinário, porque gosto muito do que faço, porque tenho um enorme respeito por aquelas pessoas e sei a emoção que sinto a fotografar. E as pessoas sentem esse mesmo carinho a ver as fotos. Quando fiz a exposição no Museu Nacional Machado de Castro, os funcionários, alguns há mais de 40 anos, vieram dizer-me: ‘É a exposição mais bonita que já vimos aqui’. Fica-se com um nó na garganta, no peito, em tudo. Mexe imenso connosco. É indescritível.

Se calhar já ouviu uma célebre frase – creio que é de um filósofo: ‘Quanto mais conheço os homens, mais gosto do meu cão’. Partilha dessa opinião?
Não, eu gosto mesmo muito das pessoas. Julgo que era Gandhi que dizia que a grandeza de um povo se mede na forma como trata os seus animais. Isso considero que é verdade. Não consigo compreender como é que se abandona um animal. Não consigo porque eles devolvem todo o carinho que nós lhes damos. Agora, gosto muito, muito das pessoas. Já ouvi pessoas dizerem que para eles estão os animais primeiro. Para mim não. O ser humano aparece sempre nas minhas fotos, o animal pode aparecer ou não. Trabalho para as pessoas, com todo o carinho e afeto. É a eles que devo tudo o que sou, o que faço, a profissão que tenho, a alimentação. 

Também tem algum animal de estimação ou só trata dos animais dos outros?
Tenho duas gatinhas e um gatinho. [risos] Também me fazem muita companhia e são uns grandes amigos.