Covid-19. DGS revela como contabiliza mortes nos boletins diários

Boletins diários da Direção Geral da Saúde não refletem realidade nos hospitais. Peritos defendem mais informação, mesmo que mais espaçadamente. O apelo foi feito por José Artur Paiva. Manuel Carmo Gomes corrobora. Mortalidade atribuída à covid-19 não segue padrão nos hospitais. DGS explica ao Nascer do SOL como estão a ser analisadas causas de morte,…

Os boletins diários sobre a evolução da covid-19 em Portugal deixaram de refletir a realidade nacional em matéria de internamentos: desde o início da pandemia, reportam o número de camas nos hospitais ocupadas por doentes com ‘covid-19’, a doença provocada pela infeção com o SARS-COV-2, mas nesta vaga os hospitais têm vindo a verificar que uma parte significativa dos doentes internados têm o vírus mas não a doença. Algo notado publicamente desde o início de janeiro e que a Direção Geral da Saúde e o Ministério da Saúde já confirmaram em inquéritos pedido aos hospitais mas que se mantém sem qualquer diferenciação na avaliação diária da pandemia publicada pela autoridade de saúde. Já havia doentes internados por outros motivos com teste positivo noutras fases da pandemia, mas com menor proporção e a esta altura os peritos ouvidos pelo Nascer do SOL admitem que essa distinção é importante para ser avaliado o impacto da infeção e perceber em que perfis populacionais, incluindo vacinados e não vacinados, é mais significativo. E mesmo com a covid-19 a parecer caminhar para um cenário de controlo na Europa, essa informação continuará a ser importante para o futuro, a médio e longo prazo, em que o vírus (este e outros) não irá desaparecer. 

Atualmente, a forma como os dados são apresentados pode mesmo induzir em erro, admitiu em entrevista ao i esta semana José Artur Paiva, presidente do Colégio de Medicina Intensiva, que considera que seria preferível a informação ser publicada mais espaçadamente e refletindo esta realidade em vez de haver boletins diários em que tal não transparece. 

No Hospital de São João, onde o médico dirige o serviço de Medicina Intensiva, cerca de metade dos doentes infetados que entram aos dias de hoje na unidade de críticos não foram hospitalizados por causa da covid-19, mas por situações como AVC grave, doença cardíaca grave ou acidente.

Fazer esta distinção, afirma o médico, é importante por vários motivos: «Por um lado, ajuda-nos a definir a organização dos hospitais agora e para o futuro. E depois porque também nos mostra que há muitas pessoas que andam a fazer a sua vida normal, sem sintomas nenhumas, a conduzir ou a trabalhar, têm acidentes e que só aí, quando entram no hospital, é que testam positivo. Isto quer dizer que o número de infeções na comunidade é muito mais alto do que aquilo que nos é apresentado».

O impacto da informação incompleta 

O médico, que integra também Comissão de Acompanhamento da Resposta Nacional em Medicina Intensiva para a Covid-19, revela que atualmente nos cuidados intensivos acaba por se notar uma outra realidade, que não sendo avaliada nem comunicada à população pode dar a ideia de que a vacina não impediu um número de pessoas de ir parar aos cuidados intensivos.

Isto porque há doentes positivos para o vírus em unidades de cuidados intensivos que tinham feito a vacina, diz, mas isso é mais frequente entre quem está internado por outros motivos. E a tendência, com o vírus a circular na comunidade mas causando doença mais ligeira, quer pela cobertura vacinal e maior imunidade natural, quer pela menor severidade da atual variante, é que entre os doentes aumente o peso dos internados com “Sars-Cov-2” e não necessariamente com covid.  

Já as formas graves de covid-19 estão a verificar-se sobretudo entre a população não vacinada ou em pessoas que, estando vacinadas, têm défices graves de imunidade, seja por doença ou terapêutica, que não permitem uma imunização pela vacina adequado, explica ainda José Artur Paiva. «Os doentes que estamos a ter internados críticos por covid são estes dois grupos», continua o médico, considerando, por tudo isto, que a avaliação da situação hospitalar e clareza na informação prestada é importante quer para preparar a resposta dos hospitais para a situação de endemia, em que o vírus não desaparece, quer para avaliar (e comunicar) o impacto da vacinação. E o facto é que não há dados nacionais públicos sobre nenhuma destas realidades. 

Uma das preocupações levantada pelo médico é a forma com os hospitais estão organizados: atualmente todos os infetados vão para alas covid-19. José Artur Paiva considera que é preciso repensar esta resposta, para este vírus e para outras doenças infecciosas, garantindo que as áreas hospitalares mais diferenciadas têm zonas de isolamento para doentes  infetados. Atualmente, um doente com um AVC coronário positivo para o SARS-COV-2 fica internado numa ala covid e não na unidade coronária, com um acesso menos direto aos cuidados diferenciados nesta área.

Ao Nascer do SOL, o epidemiologista Manuel Carmo Gomes corrobora o apelo deixado por José Artur Paiva, salientando que a percepção deixado pelo médico já foi importante para quem monitoriza a epidemia e também não tem estes dados. «Seria desejável ter informação que pelo menos nos dissesse, mesmo que não fosse logo no dia a seguir, qual é a percentagem de pessoas que estão em cuidados intensivos porque têm SARS-COV-2 mas não têm covid-19 e aqueles que realmente têm clara associação. Não sei se é possível, mas era útil. E é útil porque se mudarmos de estratégia, e espero que o façamos à medida que nos aproximamos da primavera, é importante haver essa informação para tomar decisões em relação à covid-19», explica o investigador, considerando que ter informação sobre o movimento nos hospitais, quantos doentes entram e saem, mesmo que à semana, teria sido igualmente importante durante toda a pandemia. Considera-o um dos dados que fez e faz mais falta, até para medir o impacto de decisões de medidas temporalmente.

DGS explica como é apurada mortalidade

No caso da mortalidade atribuída à covid-19, o facto de não haver uma indicação de quantos doentes morreram infetados com o SARS-COV-2 ou com doença covid-19 é suscitado pelos especialistas ouvidos pelo Nascer do SOL como outra incógnita, não havendo informação disponível que separe estas as duas realidades.  

Questionada pelo Nascer do SOL para esclarecer como estão ser apuradas as mortes atribuídas à covid-19, a DGS explicou pela primeira vez que estão a ser analisados todos os certificados de óbito que incluem a indicação de que a vítima estava infetada, só sendo contabilizadas as mortes em que há a indicação de covid-19 como causa, pelo que há mais mortes entre pessoas infetadas que não surgem nos boletins. «Hoje foram analisados 74 certificados de óbito com registo de infeção por SARS-CoV-2, dos quais apenas 50 óbitos foram classificados conforme as regras da OMS como óbitos devido à COVID-19 e reportados no boletim diário», exemplifica a DGS ao SOL, reiterando que «todos os óbitos reportados no boletim diário correspondem a óbitos devido à COVID-19 (causa básica de morte).» 

Dados públicos sugerem ainda assim um padrão diferente na mortalidade este mês de janeiro face ao que se viveu em 2021. Na altura, segundo o sistema nacional de vigilância de mortalidade EVM, os hospitais registaram mais 5203 mortes do que em janeiro de 2020. Nesse mês, o mais negro da pandemia em Portugal, foram reportadas pela DGS 5785 mortes associadas à covid-19, com o aumento da mortalidade nos hospitais num ano sem gripe, que em 2020 também tinha sido ligeira, a acompanhar 90% da mortalidade associada à covid-19 ao longo daquele mês. Já este janeiro, foram registados 7443 óbitos em instituições de saúde, mais 140 mortes do que em janeiro de 2020, tendo sido reportadas 992 mortes por covid-19, não havendo assim o mesmo padrão de um aumento proporcional de mortes nos hospitais face ao pré-pandemia. Por outro lado, continua a registar-se um  número mais elevado de mortes no domicílio face a 2020. Ainda não foi feita uma análise detalhada sobre a mortalidade no país, que tem estado abaixo dos últimos invernos pré-pandemia. A covid-19 representou em janeiro 10% das mortes, continuando a ser uma das causas de morte mais comuns. Há um ano, no janeiro com maior mortalidade do último século, a doença foi associada a 30% das vítimas mortais no país.

Há ainda outros dados quue podem ficar "desfasados" da realidade nos boletins da DGS, nomeadamente a incidência a 14 dias e o RT, calculado com uma metodologia que implica o desfasamento de uma semana para haver dados mais consolidados, e que por isso demora a acusar subidas ou descidas de diagnósticos, parecendo às vezes que a incidência continua a subir quando a tendência é já de descida. Aconteceu durante toda a pandemia e agora, com os diagnósticos a descer, acontece mais uma vez.

Questionada sobre se está prevista a revisão do modelo de boletins diários, a DGS afirma que os boletins "​reportam de forma transparente e regular os dados da COVID-19, com a mesma metodologia desde há pelo menos um ano com a mudança para o BI SINAVE", salientando que "acompanham as necessidades das diferentes fases da pandemia, para permitir uma melhor gestão de risco pelos cidadãos e pelos decisores."