Vladimir Putin dirigiu-se a Xi Jinping com um sorriso rasgado, esta sexta-feira, durante a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2022, em Pequim. Para o Presidente russo, este almoço, seguido de uma sessão fotográfica, altamente coreografada, com toda a pompa e circunstância, não se tratou apenas de um agradável reencontro entre «velhos amigos», como descreveu certa vez o seu homólogo chinês. Foi uma cimeira com um aliado crucial, do qual o Kremlin depende para enfrentar as sanções da NATO caso invada a Ucrânia.
Lado a lado, Putin e Xi mostraram uma frente unida, contrastando com a indecisão e disputas entre Estados membros da NATO. E que certamente fez muita gente em Washington questionar-se se – ao serem inflexíveis perante as exigências do Kremlin, que quer a garantia de que a NATO nunca aceitará a Ucrânia como Estado membro, bem como a retirada das suas tropas da Bulgária e Roménia – não estavam a atirar Moscovo para os braços de Pequim, cimentando os laços entre os seus dois grandes adversários.
«Abandonem as abordagens ideológicas da Guerra Fria», instaram Putin e Xi, numa declaração conjunta, onde se comparava a expansão da NATO na Europa de Leste, às portas da Rússia, com a formação do AUKUS, uma aliança militar entre Austrália, EUA e Reino Unido, que pretende servir para conter o crescente poder chinês no Pacífico. «A Rússia e a China estão contra tentativas de forças externas de minar a segurança e estabilidade nas suas regiões adjacentes», explicitava o comunicado.
Talvez mais importante, no que toca às tensões na Ucrânia, foi a lembrança de que a «amizade» entre a Rússia e China «não tem limites, não há áreas ‘proibidas’ de cooperação».
Na prática, isso traduz-se em parcerias cruciais, como o contrato assinado esta sexta-feira entre a Gazprom, que detém o monopólio da exportação de gás natural russo através de gasodutos, e a Corporação Nacional de Petróleo da China (CNPC), para a venda de mais 10 mil milhões de metros cúbicos de gás anualmente à China, avançou a Reuters. Estas venda soma-se aos 16,5 mil milhões de metros cúbicos de gás que a Rússia já exportou para a China em 2021, através do gasoduto Força da Sibéria. Estando projetado chegar-se aos 38 mil milhões até 2025, e estando em discussão a construção do Força da Sibéria 2.
Num sinal de unidade face ao poder dos Estados Unidos, estes acordos têm sido em euros, para diversificar em relação ao dólar, estando a ser discutido que a China e a Rússia façam comércio nas suas moedas nacionais. Em caso de sanções ao Kremlin, tem sido apontado que o seu impacto poderia ser diminuído se Pequim aumentasse a sua compra de matérias-primas aos russos, vendendo tecnologia como chips de computador e semicondutores.
Moscovo e Pequim de braço dado, Europa apertada
Para Putin, aumentar a exportação de gás natural para a China significa uma maior independência em relação aos seus habituais clientes europeus. Algo que dará muito jeito caso invada a Ucrânia, dado que os EUA ameaçam com a «mãe de todas as sanções», nas palavras de Bob Menendez, presidente do comité de relações externas do Senado americano, o que certamente incluiria as exportações de gás natural russo. A Casa Branca até traçou um plano para direcionar combustível de outros pontos do globo – por exemplo, transportando gás liquefeito do Qatar para a Europa – para que o continente aguente este inverno e primavera. Já Xi também pode ficar a ganhar, dado que provavelmente conseguirá negociar um desconto se o seu velho amigo Putin estiver apertado.
No que toca à Europa, que recebe da Rússia mais de um terço do seu gás natural importado e já enfrenta uma crise energética mesmo sem uma guerra na Ucrânia, há grande preocupação. Algo que é apontado como um dos muitos motivos para a cautela de Berlim quanto a provocar o Kremlin. Entretanto, o chanceler Olaf Scholz anunciou que em breve irá fazer uma visita a Moscovo, à semelhança do Presidente de França, Emmanuel Macron, que tem viagem marcada para a capital russa e para Kiev, a 7 e 8 de fevereiro.
Já o Governo português ainda está a preparar a sua resposta à exigência da Rússia de que cada Estado membro da NATO e da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) clarifique a sua posição relativamente à crise na Ucrânia. A carta do Kremlin «está a ser analisada e merecerá, naturalmente, resposta», garantiu uma fonte no Ministério dos Negócios Estrangeiros à Lusa, esta quinta-feira.
De Sochi a Pequim
Desde o início da década de 1950, quando Estaline e Mao Tsé-Tung estavam no poder, que a Rússia e a China não desfrutavam de uma relação tão forte. Desde a rutura sino-soviética, a relação entre estes dois países teve altos e baixos, mas os analistas traçam as origens da atual aproximação a 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia – na altura, a China reagiu às sanções ocidentais assinando um acordo comercial com a Rússia, que contemplava, entre outras coisas, a compra de 350 mil milhões de euros em gás natural, salvando a economia russa.
Se ver Putin e Xi juntos durante uma crise internacional, sorridentes, prometendo apoio mútuo lhe trás algo à memória, talvez sejam os Jogos Olímpicos de Inverno de 2014, em Sochi – na altura, após uma celebrada visita de Xi, o Kremlin esperou até aos últimos dias dos jogos para anexar a Crimeia, não fosse estragar a festa.
Agora é esperado que Putin tenha o mesmo cuidado com os Jogos Olímpicos de Inverno em Pequim, organizados por um velho amigo, cuja ajuda tanto precisa.
«Provavelmente o Presidente Xi Jinping não ficaria extático se Putin escolhesse esse momento para invadir a Ucrânia», explicou Wendy Sherman, vice-secretária de Estado americana, citada pela Reuters, a semana passada. «Portanto isso pode afetar o seu timing e o seu pensamento», concluiu.
Caso isso se verifique, teríamos uma janela de calma antes da tempestade durante os jogos, entre 4 e 20 de fevereiro. Mas aí o timing para uma invasão da Ucrânia começa a apertar. Primeiro, porque os exercícios militares russos na Bielorrússia – vistos como pretexto para o Kremlin ter unidades na fronteira bielorrussa, muito próximo de Kiev – têm final marcado para 20 de fevereiro. Segundo, porque vem aí a primavera, que, ao contrário do que se poderia imaginar, seria a pior altura para invadir a Ucrânia.
É que, ao avançar das estepes russas para a Ucrânia, a grande dificuldade são sobretudo os pântanos e rios, dificultando a mobilidade. No inverno o solo mais pantanoso congela, endurecendo, o que facilitaria o avanço de blindados russos, e na primavera «o degelo torna vales em riachos, e riachos em rios», salientou Kirill Mikhailov, do Conflict Intelligence Team, ao Washington Post. «Se tiveres de levar a cabo uma operação, deverá acontecer em janeiro ou em fevereiro».