Por Felícia Cabrita e José Miguel Pires
As alterações ao Código de Processo Penal concertadas entre PS e PSD nas vésperas de o Parlamento ser dissolvido determinam que todos os juízes que tenham tido uma qualquer intervenção durante a fase de inquérito de um processo-crime, por pequena que seja, não podem depois presidir às fases de instrução e julgamento.
Estas disposições não faziam parte da proposta inicial do Governo, mas vão entrar em vigor em março próximo. E integram o famoso pacote de leis anticorrupção, plasmado na Lei 94/21, publicada a 21 de dezembro do ano passado sob o título ‘Estratégia Nacional Anticorrupção’. Nela estão incluídas alterações a diversas leis, como o Código Penal, o Código de Processo Penal (CPP) e a Lei de Responsabilidade dos Titulares de Cargos Políticos. Foi aprovada por unanimidade dos deputados a 19 de novembro, sexta-feira, duas semanas antes de o Parlamento ficar dissolvido.
As novas regras são para aplicar também aos processos que estão em curso, o que vai obrigar à sua redistribuição por outros juízes – o que nalguns casos, como nas comarcas pequenas, pode levar a que seja necessário chamar magistrados de outras comarcas, que não tenham qualquer impedimento. E essas redistribuições, até se encontrar um juiz que não esteja impedido de intervir à luz da nova lei, podem fazer com que os crimes entretanto prescrevam. Além disso, tornam possível que os arguidos arranjem estratagemas (legais) para direcionar os processos para os juízes que mais lhes ‘convierem’.
«Se a alteração legislativa entrar em vigor será fácil afastar um juiz que não se queira da fase da instrução ou mesmo do julgamento», afirma ao Nascer do Sol Adão Carvalho, presidente do Sindicato dos Magistrados do MP, salientando: «As alterações em causa não faziam parte do pacote do Governo, nem da proposta legislativa deste e foram introduzidas na Assembleia da República [pelo Grupo Parlamentar do PSD] sem nunca terem sido colocadas em discussão pública ou solicitado parecer sobre as mesmas aos conselhos superiores e às associações». Caso tivessem sido, estes órgãos «logo teriam alertado para o problema».
Além de não ter sido objeto de parecer dos conselhos superiores das magistraturas (judicial e do MP), a lei também não foi à Ordem dos Advogados, como é habitual e como aconteceu com as outras leis do ‘pacote’.
«A última coisa de que neste momento precisamos é da criação de sucessivos impedimentos de juízes de instrução, levando a que os processos penais fiquem paralisados, e que aumentem exponencialmente os riscos de prescrição», alertou o bastonário dos Advogados, Luís Menezes Leitão, num artigo publicado no Inevitável em 28 de dezembro. «Uma vez que o número de juízes de instrução é reduzido, tal implicará uma multiplicação de impedimentos para a realização da fase da instrução, o que pode bloquear completamente a nossa justiça criminal», explicou o bastonário.
Ao coro de críticas juntou-se Manuel Soares, presidente da Associação Sindical de Juízes Portugueses (ASJP), que alertou para outros riscos. Nos processos em que estão em causa interesses mais relevantes ou pessoas mais notáveis, como na operação Marquês, que tendencialmente se estendem no tempo, isto significa introduzir no sistema mais um elemento de confusão que pode levar a afastamento de juizes e mesmo à anulação de processos, transformando-se assim num instrumento abusivo.
Desta vez, porém, o poder político não poderá queixar-se de falta de avisos: dois dias depois de a lei ter sido publicada em Diário da República, o Conselho Superior da Magistratura deu conta do problema e alertou logo, segundo o Jornal de Notícias, que estas alterações podem criar o «caos nos tribunais, por falta de recursos humanos, pedindo por isso uma revisão urgente da lei por parte do Parlamento que sair das eleições». Se nada for feito, salientou o CSM, estas situações «poderão pôr em causa o direito de acesso aos tribunais» garantido pelo artigo 20.º da Constituição, bem como «o direito a uma Justiça num prazo razoável».
Uma lei ‘anti-Carlos Alexandre’?
Para o presidente do SMMP, «a pressa decorrente da dissolução da AR e de se obter um acordo dos dois maiores partidos levou a que algumas das propostas não fossem suficientemente discutidas». Além disso, houve «um excesso de garantismo que levou a propor-se uma solução legislativa ignorando-se as implicações e a abrangência da norma, por pura ignorância e desconhecimento do Código de Processo Penal».
«Parece mais uma lei anti-Carlos Alexandre», desabafa, por seu turno, uma fonte judicial, referindo-se ao historial dos acontecimentos que têm marcado as várias fases dos processos Marquês, EDP e BES, com pedidos de afastamento do magistrado por parte dos arguidos.
Mónica Quintela e Cláudia Santos concertaram texto
O pacote nasceu de uma proposta da ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, que foi aprovada primeiro na generalidade na Assembleia, na condição de ser discutida e afinada na especialidade, em comissão parlamentar. Mas estas alterações que estão agora debaixo de fogo não faziam parte da proposta do Governo. Segundo foi assumido na altura, o pacote legislativo que acabou por ser aprovado resultou de uma versão concertada entre o PS e o PSD, pelas deputadas Cláudia Santos (PS) e Mónica Quintela (PSD), que eram as coordenadoras dos respetivos grupos parlamentares na comissão de Assuntos, Liberdades e Garantias.
Mónica Quintela é advogada, com escritório estabelecido em Coimbra, com o marido, e tornou-se conhecida nos últimos anos por ter assegurado a defesa de dois casos mediáticos: o da inspetora da PJ Ana Saltão, que foi julgada (inicialmente condenada e depois absolvida) pelo homicídio da avó do marido, em 2014, e o de Pedro Dias, condenado a 25 anos de cadeia pelos três homicídios que cometeu em 2016 em Aguiar da Beira, que esteve fugido. Foi agora cabeça de lista pelo PSD em Coimbra.
Cláudia Santos, além de deputada do PS, é presidente do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol desde 2020, uma acumulação que foi muito criticada na altura e desde então está envolta em polémica, mas que foi autorizada pela comissão parlamentar de Ética da AR. Nas eleições legislativas de há uma semana, foi a n.º 2 da lista socialista encabeçada por Pedro Nuno Santos no distrito de Aveiro.
O que está em causa
Entre as matérias aprovadas, está uma alteração ao artigo 40º do CPP, ‘Impedimento por participação em processo’. Neste artigo, pode ler-se que «nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver aplicado medidas de coação», «presidido a debate instrutório», «participado em julgamento anterior», «proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final, do objeto do processo, de decisão instrutória ou de decisão a que se refere a alínea a), ou proferido ou participado em decisão de pedido de revisão anterior»; «recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta».
A estes impedimentos, foram acrescentados outros, previstos para entrar em vigor em março e que são dirigidos essencialmente à intervenção de um juiz na instrução. Nomeadamente, explicita-se que nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver «praticado, ordenado ou autorizado ato previsto no n.º 1 do artigo 268.º ou no n.º 1 do artigo 269.º (uma série de atos processuais)» e ainda «nenhum juiz pode intervir em instrução relativa a processo em que tiver participado nos termos previstos nas alíneas a) ou e) do número anterior».
Caixa de Pandora que se abre
Uma fonte judicial ouvida pelo Inevitável exemplificou o que pode passar-se no futuro: «Um juiz que aprecie um simples requerimento de constituição de assistente durante um inquérito pode ficar impedido de intervir na instrução desse processo. Para isso, basta que o referido assistente o queira. O que significa que, em crimes de corrupção e afins, em que qualquer pessoa se pode constituir assistente, basta que essa pessoa diga que não quer esse juiz de instrução para ele ficar impedido. São normas de aplicação imediata, implicando uma redistribuição de processos completamente catastrófica, muito maior do que a questão que se colocou agora na reorganização do Tribunal Central de Instrução Criminal. Parece uma lei anti Carlos Alexandre».
E acrescenta: «Mas isto permite um efeito perverso: num tribunal pequeno, pode ser possível escolher um juiz. Basta pensar nas situações em que há dois juízes de instrução. Aquele que está no inquérito é um que não agrada ao arguido ou ao MP, ou seja a quem for, e é possível afastá-lo, fazendo um mero requerimento. Aparentemente, o que se pretende é aumentar as garantias de imparcialidade de um juiz, ou seja, que o juiz não vá com um pré-juízo para a instrução. Só que a instrução não é em si mesma uma fase do processo que implique uma decisão final que tenha efeitos sob as liberdades e garantias dos arguidos, porque não há em Portugal um direito ao não julgamento, isso não existe. Por isso, é desproporcional introduzir esta limitação».
Adão Carvalho concorda com esta perspetiva e dá outros exemplos: «Se a alteração legislativa entrar em vigor, será fácil afastar um juiz que não se queira da fase da instrução ou mesmo do julgamento. Basta simplesmente aproveitar que esse juiz esteja de turno e requerer a alteração da medida de coação a que um arguido esteja sujeito (uma simples caução ou apresentações periódicas). Se o juiz despachar o processo, fica imediatamente impedido de realizar o julgamento. Uma simples intervenção para determinar uma perícia, uma busca, tomar conhecimento de correspondência apreendida, declarar um bem perdido a favor do Estado ou qualquer outro ato que pratique no inquérito, implica que fique imediatamente impedido de intervir na instrução e no julgamento».
O presidente do SMMP explica como funcionavam os impedimentos dos juízes até agora: «Nos termos do atual artigo 40º, apenas era causa de impedimento para um juiz intervir em julgamento que tivesse anteriormente aplicado medida de coação de proibição ou imposição de condutas, obrigação de permanência na habitação ou prisão preventiva ou presidido ao debate instrutório. E isso compreendia-se, na medida em que tais decisões pressupunham que o juiz tivesse um conhecimento exaustivo da prova constante do inquérito para tomar tais decisões, e por esse facto não teria em julgamento o necessário distanciamento em relação à prova e já estava condicionado pelas decisões que tinha tomado no inquérito».
Na redação aprovada e que vai entrar em vigor em finais de março, «passou a constar do artigo 40º que qualquer ato praticado pelo juiz no inquérito – como admissão de um assistente; determinação de uma busca; determinar uma perícia; autorizar interceções ou renovar a autorização; qualquer decisão quanto a medidas de coação; declarar perdidos bens a favor do Estado — não só é causa de impedimento para fazer o julgamento, como a própria instrução. Só que, nestes atos, não se verificam de todo as razões subjacentes ao impedimento acima referidas».
E aponta os riscos: «Em comarcas mais pequenas, vai determinar que o juiz de instrução vai ficar sempre impedido; para o substituir na instrução vai ser chamado o juiz que iria fazer o julgamento; e depois para o julgamento terão que socorrer-se de um juiz de uma comarca diferente ou de outra área. Mas poderá acontecer, por exemplo num processo com escutas (que estão sempre a ser presentes para validação ou renovação da autorização durante o turno de verão, aos juízes de turno), que todos os juízes de uma determinada comarca fiquem impedidos de realizar a instrução ou julgamento».
«A facilidade com que vai ocorrer o impedimento vai implicar que os juízes andem a substituir-se uns aos outros, com prejuízo para o serviço que lhes está atribuído e criando constantes imbróglios e atrasos nos processos», acrescenta Adão Carvalho.
Outro exemplo: «Num coletivo de julgamento, um dos juízes adjuntos que, dois anos antes, por exemplo, num turno, tenha despachado o processo para admitir uma constituição como assistente, mas já não se recorda disso e inicia o julgamento sem se aperceber do impedimento. Ora, isso vai servir de fundamento para se suscitar a anulação de todo o julgamento. Ou então, se se aperceberem a tempo, mas já em plena audiência, tem que ser adiado o julgamento para ser substituído esse juiz».