Quatro histórias de quem foi vítima de assédio e não esquece

No Reino Unido, um grupo de voluntários criou uma linha telefónica para a qual as mulheres podem ligar para se sentirem mais seguras no caminho até casa. O assédio continua a ser um problema global: damos-lhe a conhecer quatro histórias de quem o experienciou e não o esquece.

Desengane-se quem pensa que os filmes de terror só acontecem dentro das telas. Na vida real existem muitos e, ao que parece, as protagonistas continuam a ser, na maior parte das vezes, as mulheres. Imaginemos a seguinte imagem: a noite iluminada com a ténue luz dos candeeiros públicos, não se ouve ninguém e as ruas parecem abandonadas. Uma mulher, a passo apressado, de cabeça baixa mas que olha obsessivamente por cima do ombro, evita becos e o único pensamento é o de chegar a casa.

Este continua a ser o ritual diário de muitas mulheres em todas as partes do mundo. Em Londres, um estudo recente mostrou que quase metade das mulheres diz que parou de passear ou circular em determinadas alturas do dia devido a preocupações com a sua segurança.

Foi para responder a esses receios que um grupo de voluntários criou a Strut Safe, uma linha de apoio telefónico que garante que mulheres regressem a casa sãs e salvas no Reino Unido. Fundado por Rachel Chung e Alice Jackson após o assassinato de Sarah Everard – jovem de 33 anos que foi raptada violada e morta por Wayne Couzen, um polícia de 48 anos – em março de 2021, o Strut Safe conta agora com mais de cinquenta voluntários em todo o país, oferece companhia para casa em Edimburgo, além de um serviço de telefone gratuito para todo o Reino Unido. “Ficámos devastados e zangados”, disse Alice Jackson à BBC, em janeiro. “Por isso, comprámos telemóveis – descartáveis e baratos – e pedimos às pessoas que se oferecessem para atender, publicando o número em grupos comunitários”. O grupo já acumula mais de 75 mil seguidores no Instagram e tem uma equipa de voluntários treinados e verificados em todo o país. Estes, além de atenderem centenas de ligações todas as noites, oferecem um serviço de companhia em Edimburgo. “Elas podem ter deixado os seus amigos no bar, o namorado pode não estar a atender, ou pode ser tarde demais para ligar para a mãe”, explicou a fundadora. Os voluntários como Alice estão prontos para alertar a polícia ou chamar uma ambulância, se necessário.

Inicialmente, as pessoas ouviram falar do Strut Safe através “do boca a boca”, agora a maioria das pessoas encontra e partilha o seu número nas redes sociais. Houve um aumento maciço após a morte de Sabina Nessa em setembro do ano passado e após o assassinato de Ashling Murphy na semana passada”, contou Alice, acrescentando que, quando estas coisas acontecem, as pessoas sentem-se mais inseguras. Segundo a responsável, atender as chamadas abriu-lhe os olhos para a “extensão do assédio e violência nas ruas contra as mulheres”. “Pessoas que negam que isto seja um problema, que dizem que as pessoas inventam isso para chamar atenção, que essas coisas não acontecem realmente, ou que as ruas não são assim, deviam atender estas chamadas para perceber que não há como negar esta realidade”, defende. Financiado por doações, o Strut Safe opera com pouco dinheiro e Alice reconhece que não é ainda a solução que se impunha. “Não podemos resolver os problemas, mas agora existe algo que não existia antes: estamos aqui para quem precisar de nós e mais mudanças virão”, sublinha. Cada vez que mais uma mulher chega a casa em segurança, é um alívio. “Elas dizem-nos que já estão a ver a sua casa, ou que falta um minuto para chegarem. Mas nós fazemos questão de que a chamada só termine quando elas realmente chegaram a casa”, explica. Alice contou ainda que chega a receber chamadas de 20 minutos, emocionalmente muito intensas e sérias. “A pessoa que ligou pode estar em pânico, a correr, a chorar”, adiantou. E, depois disso, o ciclo continua: “Olá! Estou a voltar para casa da minha noite de trabalho. Queria ligar para alguém e um amigo deu-me este número”. “Olá! Muito obrigado por ligar. Você está bem? A que distância está de casa?”, respondem os voluntários”.

O senhor da gabardine preta Alexa tem 27 anos e viveu até aos 21 em Rio Tinto, no Grande Porto. Os cafés noturnos com os amigos eram um ritual e a jovem nunca tinha tido muitos problemas na sua terra natal, apesar de a essa hora não haver normalmente estabelecimentos abertos. Até que numa noite, após o jantar, o que era habitual e conhecido, tornou-se num pesadelo.

“Nesse dia eu e a minha vizinha fomos tomar um café. Durante esse tempo senti-me observada e muito incomodada. Havia um senhor constantemente a olhar para nós, a forçar o contacto visual a um ponto de desconforto máximo”, contou. As duas amigas tentaram ignorar e desvalorizar e no pequeno momento em que os olhares efetivamente se cruzaram, Alexa tentou mostrar através da expressão facial a proporção do desconforto que ele estava a causar. “Preparámo-nos então para efetuar o pagamento e ele, apercebendo-se da situação, agiu em primeiro lugar. Apressou-se a pagar e a esperar-nos na porta do café”. Depois disso, foram abordadas pelo senhor. “Queria saber o nosso nome e dizia que nos podia dar um bom emprego. Rapidamente mandámos o senhor embora, dissemos para nos deixar ir à nossa vida e que não tínhamos interesse no que nos dizia. Assim o fez e seguiu numa direção que não era a nossa”, explicou Alexa. Mas assim que as duas começaram a caminhar em direção a casa, aperceberam-se que esse homem alto, na casa dos 50 anos, vestido com uma gabardine preta e chapéu preto, tinha mudado a sua direção, começando novamente a segui-las. Em frente a esse café havia uma rotunda bastante grande e central que, segundo a jovem, foi a ajuda para se livrar da “terrível sensação de perseguição”. “Usámos a rotunda como proteção, contornando-a de forma a retornar ao café, que apesar de já estar fechado, nos abriu as portas e deixou-nos contactar a polícia”. Alexa nunca mais voltou a ver o senhor, nem se recorda das feições do rosto dele. Contudo, a experiência deixou-a amedrontada cada vez que saía à noite na sua própria cidade.
 
Uma noite de medo no autocarro “Infelizmente este é um problema que, desde muito cedo – principalmente a partir da adolescência – faz parte do dia-a-dia da grande maioria das mulheres, incluindo eu”, afirma ao i Constança, de 23 anos, que atualmente vive em Espanha, mas cresceu em Lisboa. “Acredito que desde muito nova és obrigada a confrontar-te com estas situações e acabas por viver numa linha muito ténue, que te tentam impor, de que é normal, faz parte de ser mulher e tens de te habituar”. Desde que começou a namorar com o seu companheiro que a jovem se habituou a apanhar o autocarro em direção a Madrid. Fazia-o sobretudo à noite, para passar a viagem a dormir e não perder os dias. Numa dessas viagens, como sempre, sentou-se num lugar próximo ao do motorista – para se sentir mais segura – e o autocarro ia praticamente vazio. “Eu era a única rapariga na viagem. Tinha 19 anos e só estava acompanhada pelo próprio motorista, dois homens que pareciam amigos e que teriam 40 anos e um outro senhor que teria 50. Acontece que esses dois amigos, desde que eu entrei no autocarro, começaram a fazer comentários sobre mim, sem qualquer tipo de discrição”, recorda. E assim aconteceu durante toda a noite. Os dois homens iam sentados mesmo atrás do motorista e nunca foram chamados à atenção. “Posso dizer que eram comentários realmente abusivos e explícitos que começaram a gerar em mim algum medo”, admite. Constança recorda o momento em que ouviu um deles sugerir que o outro se levantasse e fosse ter consigo. Nesse instante, conta a jovem, o outro viajante de 50 anos, ao ouvir a conversa dos dois homens, levantou-se e foi sentar-se atrás de si. “Não houve qualquer tipo de troca de palavras com esse senhor nesse momento, mas posso dizer que me salvou de viver, muito provavelmente, uma situação mais traumática”, explica.
Mas não foi por isso que o tema de conversa ou comentários desses dois amigos mudaram. Estes continuaram a programar o que fariam consigo quando o autocarro chegasse a Lisboa às 5h00, à Estação do Oriente. “Felizmente, eu avisei o meu pai para que estivesse na estação assim que eu chegasse e não houve qualquer problema mais grave. Mas e se me tivesse cruzado com esses dois indivíduos na rua? Numa zona sem gente? Numa saída à noite com amigas? São coisas que me fizeram pensar que talvez as circunstâncias em que tudo isto aconteceu, me ‘protegeram’ de viver algo pior”, conclui.

Mais recentemente, Constança voltou a viver uma situação semelhante. Numa tarde, em plena luz do dia, foi com uma amiga visitar o Castelo de Sines. As duas jovens acabaram por sentar-se num local bastante procurado para ver o pôr do sol, com a baía como paisagem. “Estávamos ali, duas amigas, a viver um bom momento, com uma boa paisagem quando de repente nos giramos e nos apercebemos que tínhamos um senhor, talvez com 60 anos, a masturbar-se à nossa frente e a olhar para nós. Que sentido faz que estes tipos de comportamentos aconteçam? E se houvesse crianças? Obviamente que o que decidimos fazer foi ir embora e ‘fugir’ daquela situação que, além de embaraçosa, era sem dúvida promíscua”, revelou.

O pesadelo no metro Rita (nome fictício), tem 23 anos, vive em Torres Vedras e admite que raramente desconfia da maldade das pessoas. “Lembro-me de quando andava no secundário – com cerca de 13, 14 anos – de passear muitas vezes com as minhas amigas e de nos depararmos com apitadelas de carros, gestos desconfortáveis”, começa por contar ao i. Nessa altura, recorda que pensava: “Sou uma criança, porque é que isto acontece?”. “Acho que este pensamento também ficava a flutuar na minha cabeça porque maioritariamente os homens que tinham este tipo de comportamento tinham idade para ser pais também de crianças”, comenta.

Há quatro anos, Rita revela que viveu uma situação que ainda hoje a assombra, choca e revolta. “Eu e uma amiga tínhamos ido sair em Lisboa e como na altura nenhuma das duas tinha carta de condução, íamos e voltávamos sempre de autocarro para casa”, lembra. Nesse dia, ao contrário daquilo que tinham planeado, acabaram por dormir na casa de outra amiga na capital, mas como não contavam com isso, não levaram muda de roupa. “Estávamos as duas vestidas com uma saia, collants transparentes pretos e camisolas de malha preta. Acordámos e seguimos para o metro”, explica. Era perto da hora de almoço e o metro estava cheio, depois de passarem por duas ou três estações da linha amarela, a sua amiga começou a dizer que estava a sentir “algo na perna”. Rita desvalorizou, disse-lhe que devia ser o casaco ou a mochila de alguém. Contudo, esta continuou a insistir dizendo que possivelmente deveria ser o senhor que se encontrava atrás de si. Rita não quis acreditar, mas pouco tempo depois começou também a sentir algo suas pernas e foi aí que percebeu que as duas estavam efetivamente a ser tocadas por aquele homem. “Queríamos afastar-nos mas como o metro estava cheio era impossível. Começámos a olhar para ele, mas era como se não passasse nada. Parecia quase uma ilusão da nossa cabeça”, descreve. “Começámos a esmagar as pessoas à nossa volta porque queríamos muito afastarmo-nos, estávamos muito assustadas e incrédulas. Quando finalmente saímos do metro estávamos as duas tão enojadas, e sentimo-nos sujas de certa forma. Naquele momento, começámos a sentir raiva por aquilo que não fizemos”, acrescenta. Rita admite que deveria ter gritado e denunciado aquela pessoa, mas no momento em que aconteceu, estava tão desconfortável e com vergonha, que não pensou efetivamente na gravidade do problema. “Sou uma pessoa que geralmente tende a bloquear em momentos em que é preciso agir. Pensar que podia ter feito mais nesta situação deixa-me revoltada mas ao mesmo tempo é sempre um reminder de que é necessário agir, principalmente em situações de assédio”, frisa.

O medo da capital Mónica Ramos tem 21 anos e é natural da Madeira. Há uns anos, mudou-se para a capital com o objetivo de concretizar os seus sonhos, conhecer novas culturas, novas energias e abrir novos horizontes. Contudo, o cenário que encontrou não foi assim tão “cor de rosa”. Na Madeira foram poucas as vezes em que se sentiu assediada. Em Lisboa, esse cenário tornou-se “a rotina”. Mónica passou a viver “no medo”: “Quando cheguei a Lisboa, senti que ia entrar num ‘mundo diferente’, acreditando que as pessoas seriam mais ‘protetoras’ e sensíveis a este problema. Mas, logo na primeira semana, mesmo em confinamento, percebi que tinha uma ideia completamente errada do que é a vida de uma mulher na capital”, explica ao i

O primeiro episódio de assédio de que se recorda foi num dia em que decidiu sair de casa com um decote mais generoso para ir ao supermercado. Quando chegou à Alameda, passou pelo um grupo de homens e um deles colocou a cabeça entre os seus seios. “Quando me apercebi do que tinha acontecido comecei a chorar e entrei em pânico! Fui logo para casa de autocarro e quando me apercebi, estava a acontecer algo semelhante”, lembra. Ao seu lado estava sentado um homem que a olhava fixamente enquanto se masturbava. Mónica pegou no telemóvel e começou a gravar com o intuito de depois fazer queixa à polícia, mas quando o homem se apercebeu, assim que o autocarro parou, saiu. “Senti um vazio dentro de mim e questionava o porquê daquilo me estar a acontecer”. 

Uns dias após estes dois acontecimentos, a jovem estava a sair do trabalho à meia noite e, quando chegou à paragem para apanhar o autocarro para casa, deparou-se com um homem que olhava para si “de cima a baixo”: “Comecei a sentir-me desconfortável e liguei para a minha namorada para me sentir mais segura. Quando o autocarro chegou entrei e sentei-me no banco ao pé da porta de saída. Após ter saído na Avenida da Liberdade, esse mesmo homem saiu também. Era uma da manhã e a avenida estava vazia”, recorda. Mónica começou a andar a passo acelerado e o homem fez o mesmo. “Já tinha dito à minha namorada para me vir buscar, porque eu estava cheia de medo e quando a vi a correr em minha direção, para me socorrer, ele fugiu no sentido oposto. Foi aí que percebi que estava realmente a ser seguida”, acrescentou. A partir desse dia, a jovem sente sempre medo de andar sozinha na rua à noite: “Vivo num pesadelo todos os dias e a minha namorada, quando eu ainda fazia esse percurso, ia buscar-me sempre à paragem”. Mónica deixou de andar com decotes e, mesmo “toda tapada”, continua a ser assediada, com olhares, assobios, palavras que a fazem chorar. “Acabei por criar um código de alerta com a minha namorada para quando me sentir ameaçada. Ligo, digo apenas a palavra ‘vermelho’ e ela sai de casa e vem ao meu encontro”, explica.

A “normalização” do assédio As mulheres foram “socializadas a naturalizar o assédio, a tomar a rua como pertença masculina”, considera Maria João Faustino, especialista em temas sobre Violência Sexual e Feminismo. “Crescemos a ouvir que ‘mulher séria não tem ouvidos’ e a normalizar o assédio e o medo. É-nos ensinado desde cedo que temos de estar hiper-vigilantes. Adotamos estratégias de defesa e proteção: aprendemos a evitar percursos, evitar andar sozinhas, sobretudo à noite; andar com chaves na mão, a usar dispositivos de auto-defesa, a controlar o que vestimos”, explica ao i.
Aos homens, continua, nada disto é ensinado – o que não significa que os homens não corram riscos e não sintam medo na rua, por exemplo, de agressões físicas ou assaltos; mas o medo não é o de serem sexualmente agredidos por mulheres. De acordo com a especialista, o assédio é um exercício e uma manifestação de poder, que pode ser exercida por diversos meios (intimidação, comentários ou propostas de teor sexual num contexto de desigualdade e não reciprocidade, ameaça, entre outras). “A estas está subjacente uma desigualdade profunda entre homens e mulheres, particularmente manifesta na sexualidade”, acrescenta. “Há de facto uma diminuição da liberdade das mulheres no espaço público. O assédio é uma disciplina de controlo das mulheres, que nos limita enquanto grupo/coletividade. A naturalização do assédio é refletida numa perda de liberdade das mulheres: de circulação, de movimentos, de organização e autonomia. E ter expressões e episódios individuais geradores de profunda ansiedade e medo”.

Apesar de todas as resistências (lembremos a discussão pública em torno da importunação sexual e a ridicularização em torno do “piropo”), Maria João Faustino acredita que “temos vindo a ficar mais conscientes deste problema e já há algum caminho feito”: “A consciência social sobre o assédio e a violência contra as mulheres é maior hoje, apesar de tudo, e é reconhecida em instrumentos legais centrais, como a Convenção de Istambul, de que Portugal é signatário”, sublinha.
Sobre o papel da linha Strut Safe, diz que se trata de (mais) uma resposta da comunidade, criada por mulheres. “Mostra como estas estratégias e redes informais ainda são necessárias, porque o medo é comum no quotidiano e na vivência das mulheres. Contudo, devemos refletir sobre a sua necessidade, o seu papel e eficácia: estes recursos não são soluções de longo prazo, nem podem responder a todas as situações vividas diariamente pelas mulheres. Temos de exigir respostas estruturais e globais, porque tudo o resto terá um alcance limitado”, alerta. Do seu ponto de vista, há que combater, estruturalmente, “as dinâmicas de poder entre mulheres e homens”: “A objetificação das mulheres, a ideia culturalmente aceite de que a masculinidade é sexualmente agressiva e que cabe às mulheres evitar situações de perigo…”, frisa, acrescentando que “não se combate o assédio sem combater o machismo, uma vez que o assédio é um reflexo da assimetria de poder entre mulheres e homens”. Este esforço de mudança cultural, continua, tem de ser “continuado” e o investimento tem de ser feito a vários níveis: na educação, na implementação efetiva da educação sexual, que ensine o direito ao corpo, à liberdade e autonomia sexual (que vai muito além de ensinar sobre contraceção e reprodução).

Tal como Maria João Faustino, Constança acredita que a linha de apoio “não é solução”. Contudo, é um “reforço para a segurança da mulher”: “Eu como mulher não deveria ter de me preocupar se tenho, por exemplo, de sair mais tarde do trabalho, de como irei para casa, daquilo que devo vestir ou não para sair à rua ou que se calhar não é seguro ir sozinha. Realmente, sentir-me-ia mais segura se tivesse uma linha de apoio como essas – totalmente direcionada para este problema – se algum dia voltasse a viver uma situação de assédio”, sublinha.