António Costa anunciou ontem que está a contar com o parecer de especialistas até ao final da semana, início da próxima, sobre o alívio de restrições da covid-19 e a intenção de realizar uma nova reunião do Infarmed. Um pedido levado a Marcelo Rebelo de Sousa e que, ao que o i apurou, não encontrou obstáculos em Belém. A reunião deverá acontecer na próxima semana, possivelmente na quarta-feira.
Até aqui não estava marcada, mas ficou no ar a ideia de poderem vir a ser tomadas as primeiras decisões ainda antes da tomada de posse do Governo, marcada para 23 de fevereiro. O i já tinha questionado o Ministério da Saúde sobre se as decisões seriam tomadas antes ou depois da tomada de posse, até aqui sem resposta, com vários peritos, inclusive os que dão apoio técnico ao Governo, a ter expressado entretanto publicamente a sua visão, com ideias em comum: alívio progressivo de restrições, máscaras não deverão cair de vez mas o regresso a uma vida mais normal está no horizonte.
Na última sexta-feira, em entrevista ao i, o intensivista José Artur Paiva, da Coordenação da Resposta Nacional à Covid-19 em Medicina Intensiva, um dos médicos ouvidos regularmente pelas ministras Mariana Vieira da Silva e Marta Temido que fazem a ponte com os especialistas mesmo quando não há reuniões no Infarmed, já tinha defendido haver condições para daqui a três, quatro semanas, preparar o regresso a uma vida social normal. “Do meu ponto de vista, as máscaras deverá ser algo que tiramos mais devagar. Em termos de evolução para uma vida social e económica normal sou completamente a favor”, afirmou o médico. “No nadir desta onda – e esta descida vai ser rápida porque a subida também foi – portanto daqui a três, quatro semanas imaginemos, penso que podemos preparar uma vida social normal em que nos focamos na doença e não no vírus. E depois usar máscara em determinados ambientes, que é quando lidamos com população frágil e vulnerável: lares, hospitais, cuidados continuados e quando vamos visitar familiares ou amigos nossos com patologias que os tornam mais vulneráveis.”
Aliviar com prudência Aliviar sim, mas mantendo prudência quer na vigilância de variantes quer com o impacto nos mais vulneráveis foi também a ideia deixada publicamente por Raquel Duarte, a médica que lidera a equipa do Norte que ao longo da pandemia apresentou ao Governo as propostas de desconfinamento.
“Estamos na fase em que podemos aliviar medidas. E devemos fazê-lo, mas com prudência”, disse esta semana numa entrevista ao Diário de Notícias, levantando um pouco o véu do que defende: à medida que o tempo avança, o país deverá avançar de uma testagem massiva para uma testagem mais seletiva, nomeadamente de quem tem sintomas, mas também com rastreios oportunísticos seja em meio laboral, escolar ou zonas de maior risco. As máscaras poderão deixar de ser obrigatórias em espaços exteriores, mas ainda “nos vai acompanhar nos próximos tempos”, sobretudo quando tivermos sintomas, disse Raquel Duarte. “Este tipo de comportamento vai ter de ficar para o futuro.” E lares e unidades que recebam uma população mais vulnerável devem manter níveis de proteção mais elevados, sendo a preocupação com a ventilação de espaços interiores, por que se tem batido Raquel Duarte, defendendo “investimento” antes do próximo inverno.
Gustavo Tato Borges, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, os médicos que trabalham nas unidades que têm lidado com a covid-19 na comunidade, com as determinações de isolamento e rastreios epidemiológicos, corrobora a preocupação: “A ventilação dos espaços fechados tem sido um falhanço total em Portugal, temos de investir na qualidade do ar interior”, diz ao i, concordando com a ideia de um alívio progressivo das restrições, rumo a uma primavera que tudo se espera que será mais normal.
No imediato, tal como deixou de ser já obrigatório teste para entrar em Portugal, o médico acredita que fará sentido estender essa regra ao resto das atividades a nível nacional, deixando por exemplo de obrigar à apresentação de teste para ir a um jogo de futebol ou mesmo deixando cair o certificado digital em restaurantes, hotéis e espetáculos. Na sua visão, deve ser mantida nas visitas a lares e hospitais, na lógica de proteger os mais vulneráveis. E é essa lógica que Gustavo Tato Borges insiste que é preciso explicar à população, para que se compreendam as medidas e com isso se consiga adesão ao que pode fazer a diferença na prevenção de doença.
À medida que a circulação do vírus diminui, a máscara no exterior pode só fazer sentido quando não é mesmo possível manter a distância e em espaços fechados, mesmo se se mantiver numa fase inicial, poderá vir a ser aliviada na primavera mesmo em lojas ou supermercados, admite. Nos lares e hospitais, no entanto, deve ser uma preocupação. E Gustavo Tato Borges defende que não devem desaparecer de todo: “No próximo inverno deverá ser normal irmos trabalhar e vermos um colega de máscara, porque está com sintomas. Dantes as pessoas iam trabalhar doentes, com gripe, e isso favorecia a transmissão, quando os países asiáticos sempre tiveram esse cuidado”. Da mesma forma, acredita que em alguns contextos algumas empresas podem optar por teletrabalho ou trabalho em espelho, numa adaptação a cada momento à situação.
“Não devemos seguir cegamente ninguém” Para já, o médico salienta no entanto que, numa altura em que se vê outros países levantar todas as restrições, ou mesmo o Reino Unido anunciar o fim de isolamento para infetados, é preciso perceber o contexto de cada país: “Não devemos seguir cegamente ninguém”. E faz a comparação com os países nórdicos, que já aliviaram todas as restrições, mas têm uma vida social diferente com menos contactos intergeracionais ou habitações com excelente qualidade de ventilação. “Cada país tem a sua realidade e temos de encontrar medidas adaptadas a cada realidade e que a população compreenda. Na China continua-se a confinar cidades diante de algumas dezenas de casos, na Holanda qualquer jogo de futebol tem de acabar às 22h. Não podemos olhar só para uns exemplos”, diz Tato Borges, considerando precipitada a decisão do Reino Unido, que noutras alturas recuou. “Parece que é desistir de enfrentar a pandemia, quando há incertezas e variantes que podem surgir. Vejo alguns teóricos dizer que é para aí que caminhamos, mas deve haver prudência”.
Certo é que o vírus não vai desaparecer. O Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge está a preparar a adaptação da vigilância da covid-19 para o modelo da gripe, em que há uma rede sentinela de médicos de família que reportam casos de doentes com sintoma gripal, os cuidados intensivos reportam semanalmente doentes internados com gripe e se avalia com base numa amostragem de casos se as infeções sobem ou descem e a relação com alterações no padrão da mortalidade.
Uma mudança sem data para entrar em vigor, mas que deverá já estar em prática no próximo inverno, sem casos diários de covid-19 mas com uma avaliação mais focada na doença e não no vírus.