N as livrarias low cost instaladas em estações de metro e outlets, onde se tenta escoar livros de fundo de catálogo que já muito dificilmente encontrarão leitor, repousam por vezes pequenas pepitas que mereciam melhor sorte. Aqui e ali, por exemplo, ainda é possível encontrar a preços muito convidativos os livros do contista norte-americano Raymond Carver (1938-1988) que a Teorema publicou em finais dos anos 80 e inícios dos 90. Um deles, uma coleção póstuma de sete contos, chama-se Três Rosas Amarelas. Era um dos poucos títulos do autor traduzidos para português que me faltava ler.
«A diferença entre a palavra quase certa e a palavra certa é de suma importância. É a diferença entre o relâmpago e o pirilampo», dizia Mark Twain. Carver punha um empenho extremo em encontrar as palavras certas para as suas descrições. Talvez por não ter tido grandes estudos – vinha de uma família modesta, com um pai alcoólico – não gostava de expressões caras, pomposas ou difíceis. Um professor, o mesmo que se revelaria decisivo ao emprestar-lhe o seu gabinete aos fins de semana para que ele encontrasse a tranquilidade necessária para escrever, aconselhara-o a usar os termos mais chãos.
Prosaicamente intitulado ‘Caixas’, o primeiro conto de Três Rosas Amarelas trata de uma senhora divorciada que está sempre insatisfeita. Nas vésperas de voltar a mudar-se de armas e bagagens para outro estado, convida o filho e a nora para irem jantar à casa que está prestes a abandonar. Há caixas por todo o lado, por causa das mudanças. A certa altura, o filho apercebe-se de que possivelmente está a ver a mãe pela última vez e sente uma espécie de vertigem.
No segundo conto do livro, ‘Quem esteve nesta cama’, há um telefone que toca a meio da noite. O marido levanta-se – aparentemente foi engano – e quando volta para a cama a mulher tem a luz acesa. Ela puxa de um cigarro, diz que lhe apetece um café e dali a nada está a falar de doenças, de hospitais e da possibilidade de ficar incapacitada e ligada a uma máquina. «Quero que me prometas que desligas a ficha», exige. Escusado será dizer que já ninguém consegue dormir. Até que ele olha para a cama, e tem uma sensação estranha. «Dá a impressão de que quem esteve deitado nesta cama fugiu à pressa».
Carver preferia as palavras simples às pseudo-poéticas, o que confere às suas histórias e situações um grande sentido do concreto. Os seus objetos são quase palpáveis. Mas ao mesmo tempo tinha uma enorme capacidade para evocar ausências, traumas, memórias dolorosas, e isso resulta numa densidade e seriedade que contrastam com os ambientes banais onde a ação decorre.
O último conto, o que dá o título ao livro, foge ao padrão. Trata-se de uma reconstituição da morte de Anton Tchékhov.
O grande escritor russo vai jantar com o amigo Alexei Suvorin, «riquíssimo editor de livros e jornais, reaccionário, self-made man», ao melhor restaurante de Moscovo, o Hermitage. «Tinha Tchekov acabado de se sentar à mesa em frente de Suvorin quando, de repente, sem aviso, começou a brotar sangue da sua boca».
Há aqui algumas coincidências curiosas – ou talvez mais do que isso. Primeiro, Tchékhov era o grande herói literário de Carver – e um crítico do The Times chegou a chamar a Carver «o Tchékhov americano». Segundo, o episódio relatado passa-se em 1897, e o conto foi publicado em 1987, na New Yorker. Fumador inveterado, ex-alcoólico, Carver já estava então gravemente doente. Quem sabe, ao reencenar os últimos dias do seu ídolo, estava a confrontar-se e a preparar-se para o seu próprio fim.