Glória, farsa e tragédia na festa do futebol africano

A 33.ª edição do Campeonato Africano das Nações ficou marcada por mortes, falhas de organização, peripécias e duras críticas dos participantes. Recordamos alguns dos momentos mais insólitos dentro e fora das quatro linhas.

A ntes do apito inicial para o jogo decisivo entre o Egipto e o Senegal, que iria definir o novo campeão africano, o Estádio Olembé assistiu a uma volta olímpica do casal presidencial do país anfitrião. A assomar pela abertura do tejadilho de um enorme SUV preto customizado, com a matrícula PRC (Presidente da República dos Camarões), Paul Biya e a primeira dama, Chantal Biya, iam acenando ao público, enquanto seis seguranças de fato e gravata acompanhavam o veículo literalmente a par e passo, num movimento sincronizado que fazia pensar numa centopeia.

As preocupações com a segurança dos Biya não eram exageradas: os Camarões atravessam um período de enorme turbulência, com uma guerra civil que se arrasta há mais de quatro anos. Em outubro do ano passado, numa deslocação à cidade de Bamenda, o coração da insurgência, o primeiro-ministro Joseph Dion Ngute estava a fazer um discurso de apelo à paz quando foi interrompido por rajadas de metralhadora. Os vídeos dos momentos de pânico tornaram-se virais.

Nesta 33.ª edição do Campeonato das Nações Africano, que decorreu nos Camarões de 9 de janeiro a 6 de fevereiro, houve lugar para de tudo um pouco: para a glória, para o fracasso, para a farsa e até para a tragédia.

Mesmo não se confirmando os piores receios de ataques terroristas, o torneio ficou marcado por acontecimentos dramáticos. Antes do jogo entre os Camarões, treinados pelo português António Conceição, e as Ilhas Comores, uma das surpresas do torneio, a multidão tentou forçar a entrada no recinto, por forma a contornar o controlo da covid-19. Só no final da partida, que terminou com a vitória suada dos Camarões por 2-1, a organização divulgou as consequências do incidente. Vários adeptos ficaram esmagados, vindo o saldo a fixar-se em oito mortos e dezenas de feridos.

No que diz respeito ao jogo propriamente dito, a seleção das Ilhas Comores (um arquipélago ao largo da costa moçambicana) entrou em campo sem guarda-redes, uma vez que o atleta que ocupa essa posição se encontrava infetado com covid-19. Para que o seu equipamento não se confundisse com o dos colegas, o substituto na baliza usou uma camisola com remendos…

Bolas vazias, microfones roubados

As peripécias sucederam-se em catadupa dentro e fora das quatro linhas. Logo no Egipto-Nigéria, um jogo grande, a organização mostrou as suas debilidades, ao pôr em campo duas bolas vazias, que tiveram de ser substituídas. No dia seguinte, no Tunísia-Mali, registou-se um dos momentos mais caricatos da competição. O árbitro Janny Sikazwe, da Zâmbia, fez soar o apito final quando ainda nem sequer tinham decorrido 86 minutos de jogo. Pior: tendo sido alertado para o erro, Sikazwe voltou a apitar aos 89 minutos, para desespero dos jogadores e equipa técnica da Tunísia, que estava a perder por 1-0.

Um detalhe: só na segunda parte houve nove substituições, duas paragens para recorrer ao VAR e uma paragem para reidratação. A organização alegou que o duplo lapso se deveu ao facto de o árbitro ter apanhado demasiado sol na cabeça, e propôs que fossem jogados os cinco minutos em falta. Mas a Tunísia, sob protesto, recusou voltar a entrar em campo. Curiosamente, também o Mali teve as suas razões de queixa: o último treino da equipa antes da partida tinha sido interrompido por um tiroteio entre as forças governamentais e os rebeldes que provocou a morte de dois civis e vários feridos.

Se já parecem demasiados casos para uma só competição, a verdade é que o reportório de peripécias não estava nem de perto nem de longe esgotado.

Por exemplo, quando o selecionador do Burkina Faso se preparava para responder às perguntas dos jornalistas na antevisão do embate com a Tunísia, um homem entrou na sala de imprensa e levou os microfones. Brincadeira? Sabotagem? Nada disso: o homem quis apenas fazer-se pagar pelos seus serviços, já que a organização tardava em saldar a dívida… E nem a segurança conseguiu travá-lo.

Já no jogo entre a Mauritânia e a Gâmbia, que começou com 45 minutos de atraso, o hino instrumental da Mauritânia tocou, por três vezes, erradamente nos altifalantes. Para evitar que tocasse uma quarta vez, o próprio speaker convidou os jogadores da Mauritânia a cantarem o seu hino nacional sem acompanhamento. A Gâmbia, que se estreava na competição, protagonizou uma surpresa: venceu por 1-0, e acabou por chegar aos quartos de final.
Intoxicações e roupa por lavar

Se as Comores foram assoladas por um surto de covid-19, a seleção de Cabo Verde foi atingida por uma intoxicação alimentar que afetou 18 dos seus membros nas vésperas do jogo com o Senegal. «Há atletas com gastroenterite, vómitos, diarreias e cólicas abdominais», descreveu o médico da seleção cabo-verdiana, Humberto Évora. Já o selecionador Pedro Leitão disse: «Ninguém sabe se foi da água, dos alimentos ou de outra situação». O certo é que a seleção de Cabo Verde acabou derrotada por 2-0 e ficou pelo caminho.

Esta intoxicação não foi caso único. O selecionador do Malawi, o romeno Mario Marinica, queixou-se das diferenças de tratamento entre as seleções favoritas e as menos mediáticas. Em particular, lamentou ter sido servida comida estragada ao seu grupo. Segundo Marinica, os jogadores do Malawi chegaram ao ponto de ter de lavar os seus próprios equipamentos. «Vocês nunca vão ver o Sadio Mané a lavar as próprias cuecas e a pendurá-las num arbusto para secar», disparou, em declarações à ESPN.

Fúria de Queiroz, apoteose em Dakar

Quem também não poupou nas críticas à organização foi o português Carlos Queiroz.Depois do desempate por grandes penalidades que deu à seleção egípcia o passaporte para a final, mas em que acabou expulso, o técnico foi duro: «Mais uma vez, infelizmente, mandam este tipo de árbitros para um jogo deste nível. Árbitros sem experiência, sem nível, a quererem dar espetáculo», disse, citado pel’A Bola.

«Dediquei toda a minha vida ao futebol, não admito estar nas mãos desta gente que não está preparada. FIFA e CAF têm que entender que entregamos o trabalho da nossa vida ao futebol e não podemos estar nas mãos de pessoas que são arrogantes», concluiu.

Nem a classe do ‘faraó’ Salah evitou que o Egipto, a seleção que mais vezes conquistou o troféu (sete), acabasse derrotado na final pelo Senegal, que nunca tinha vencido a CAN. O equilíbrio só foi desfeito nas grandes penalidades. Sadio Mané, avançado do Liverpool, converteu o penálti decisivo.

A receção aos heróis do Estádio Olembé não foi menos que apoteótica. Milhares de adeptos saíram às ruas de Dakar, onde um rio de gente engoliu o autocarro da seleção.

Na quarta-feira, já recuperados da festa, os jogadores vitoriosos foram condecorados pelo Presidente do país, Macky Sall. Mas a recompensa não se ficou pelas honrarias. Segundo A Bola, cada jogador senegalês recebeu o equivalente a «75.000 euros e terrenos na capital Dakar e na cidade futurista de Diamniadio».