Américo Aguiar tem 48 anos e foi ordenado há 21, depois de uma caminhada que começou com a vivência da fé no escutismo, onde entrou com 14 anos, em busca de aventuras como as dos escuteiros-mirins. Ainda tem essa lembrança dos heróis de banda desenhada que lhe traçaram o rumo no gabinete, agora instalado na antiga manutenção militar do Beato, onde está a sede das Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ). É um homem do Norte, de Leça do Balio, há três anos a viver na capital depois de ser ordenado bispo auxiliar de Lisboa em 2019 pelo Papa Francisco. Preside à fundação responsável pela organização das Jornadas em Portugal em 2023, um «designío nacional», diz – mote de uma conferência que dará na próxima semana, organizada pela associação Civicus. Pouco depois de chegar a Lisboa, foi um dos responsáveis pela criação da comissão para a investigação de abusos sexuais na diocese, a primeira que começou a trabalhar há três anos seguindo as diretivas de Francisco, antes da pressão aumentar e dos bispos portugueses decidirem dar luz verde a uma investigação histórica independente. É neste momento de clarificação do passado e de olhar para o presente e futuro que a Igreja portuguesa acolherá, no verão do próximo ano, o encontro criado por João Paulo II para jovens de todo o mundo. Focado nesses preparativos, fala da Igreja e da sociedade que quer ajudar a construir nos próximos anos.
Não fosse o adiamento para 2023 por causa da pandemia e Portugal estava a meses de acolher as suas primeiras Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ). Vão ser mais especiais por serem as primeiras depois destes anos tão diferentes?
Tudo tem sido muito especial. Desde o anúncio do Papa em janeiro de 2019 no Panamá, nenhum de nós pensaria viver o que vivemos individualmente, como povo, como humanidade. Prolongar a data foi agridoce, porque nos deu mais tempo para organizar, mas o que vivemos não foi bem assim. Acho que o mais importante é chegarmos aqui com a consciência de que fizemos o certo, que foi desmobilizar as pessoas e os encargos para que a prioridade nos últimos anos fosse a resposta à pandemia. Quando as coisas voltaram a permitir voltámos a colocar o foco na preparação das Jornadas e desde então tudo tem corrido com alguma normalidade, com estes sustos das variantes que nos vão abalando, mas agora creio muito…
Que nenhuma variante virá estragar os planos 2023?
Sim, que nada nos deterá. E precisamos disso como país, e de um modo especial os jovens. A juventude precisa de sair disto. Há aqui uma fatia de jovens que nasceram e viveram até à data em crises. Num ciclo de crise económica que devastou as famílias e as possibilidades de concretizar tantos sonhos e depois, quando parecia que as coisas estavam a melhorar, levamos com uma pandemia em cima. Há uma faixa de juventude, nossa e do mundo inteiro, para a qual é preciso fazer um esforço suplementar de lhes proporcionar normalidade. As Jornadas acabam por ser o primeiro grande evento planetário no qual os jovens poderão participar sem qualquer constrangimento e isso é uma responsabilidade para Portugal e acho que pode ser também marcante. Estamos num tempo em que urge dar novos mundos ao mundo e as JMJ em Portugal podem ter esse papel.
Estamos na antiga manutenção militar do Beato, que estão a preparar para ser o quartel-general das Jornadas. Só lhe falta o camuflado?
É verdade, vou ver se arranjo algum camuflado que tenha ficado esquecido por aí. Desde 2019 foram sendo faladas várias possibilidades com o então presidente Fernando Medina e a sua equipa.
É um espaço cedido pela Câmara?
Sim, a câmara tem um projeto que envolve este espaço junto com o outro edifício do outro lado da rua onde está o Hub do Beato.
Antes de ser uma extensão da fábrica de unicórnios, vai ser a sede das Jornadas.
Penso que é esse o projeto. Mas quando surgiu esta possibilidade, o nosso coração palpitou e as coisas acabaram por se concretizar. Estamos em fase de instalação e mudança e é particularmente simbólico que um evento de juventude do mundo inteiro, de alegria, de paz e de fraternidade, acabe por ter o seu quartel-general alicerçado em antigas instalações de serviços militares.
O Papa Francisco vai estando a par destes preparativos?
A última vez que tivemos contacto direto com ele foi em maio do ano passado. Está animado e com a consciência do lema da jornada, que foi ele que escolheu: «Maria levantou-se e partiu apressadamente». Acrescenta sempre: «mas não ansiosamente». Também estamos aqui neste sentimento duplo de pressa e de ter de controlar um pouco essa ansiedade de tudo o que temos para fazer. Vamos partilhando com o dicastério e as coisas por agora estão dentro dos timings.
Há uma task-force encarregue pelo Governo de gerir os preparativos do lado do Estado, sendo os maiores os recintos que vão receber as JMJ. Em que ponto está essa intervenção?
Depois dos nossos primeiros contactos, o Governo entendeu criar um grupo de projeto que ajudasse ao trabalho inter-ministerial e inter-sectorial em vez de andarmos a bater porta a porta. Estamos muito gratos a esse grupo, que é liderado por José Sá Fernandes. Da parte da intervenção no Parque Tejo, aterro da Bobadela e toda aquela infraestrutura ferrovirária e de contentores já da parte de Loures, o que está já no terreno é a construção de uma ponte pedonal que vai ligar o Parque Tejo ao parque do outro lado do Trancão, num parque intermunicipal que será o grande legado das Jornadas para esta zona.
Costuma dizer que as Jornadas são um desígnio nacional. Também por isso?
Sim, quando andámos a ver possibilidades, sentimos que havia da parte de todos a intenção de concretizar este projeto. A ponta oriental de Lisboa tinha tido a intervenção da Expo 98 e esta era uma promessa muito antiga, já tinha sido um projeto falado por António Costa quando foi candidato a Loures nos anos 90 e havia a vontade da população de ultrapassar os contentores e conquistar a marginal do Tejo. É algo que eu que sou do Porto sinto que é muito particular aqui em Lisboa. A nossa relação com o Douro é muito direta e nestes 48 anos de vida não tenho memória de ter sido diferente.
Aqui temos redescoberto o Tejo aos poucos.
Sim, uma conquista devagarinho. Portanto acredito que será uma mais-valia para Lisboa, para Loures e para o país em geral depois da Jornada termos não sei quantos hectares de zona verde que passarão a estar disponíveis para fruição pública. Isso não tem preço.
A Igreja contribui para essa obra?
A organização da Jornada implica um conjunto de infraestruturas que normalmente a Igreja local dos países que organizam não é capaz de providenciar. O que tem sido o entendimento ao longo dos anos é que, da parte do Estado, há uma participação nas infraestruturas, enquanto a Igreja garante tudo o que é necessário no decorrer das Jornada, o alojamento, a alimentação, os transportes, o seguro, essa logística para acolher as pessoas. Foi também esse o entendimento cá. O Parque Tejo, digo assim mas não sou padrinho e não sei como se vai chamar no final, é um investimento significativo quer da parte de Lisboa, quer de Loures, mas creio que é daquelas coisas que alguns cidadãos poderão ter dúvidas quanto ao retorno imediato desse esforço mas penso que quando passarem os anos e as gerações vindouras usufruírem desse espaço poderá ter outra leitura.
Esperam um milhão de jovens, como na Jornada de Madrid em 2011?
Não temos falado de números. Temos cenários em baixa, cenários realistas e otimistas dependendo do que forem efetivamente as condições no mundo no verão de 2023 dentro do que são todas as condicionantes que acho que já nos convencemos que ninguém domina. Se nada existir de limitativo, pode ser uma Jornada particularmente concorrida.
Tem memórias de Jornadas?
Participei no Panamá. Comecei por ir lá em novembro de 2018 como agente infiltrado nos bastidores da construção, o que foi muito útil. Na altura apresentavam-me como assessor e olhavam para mim com um ar muito estranho a pensar o que é que este português anda aqui a fazer.
Mas na altura Portugal já estava escolhido?
Não, mas tínhamos essa expectativa. Depois, em janeiro de 2019, quando o Papa fez o anúncio, lá perceberam. Quando se vive os bastidores percebemos que vai haver muitas dificuldades e que nos vamos sentir pequeninos. É uma logística inimaginável.
Na hora da decisão, houve muita concorrência com outros países, foi preciso meter umas cunhas?
Acredito que não, houve foi trabalho e responsabilidade em perceber o que implicava. Estamos a falar de um evento que pode ser uma coisa parecida com os Jogos Olímpicos e que não tem nem a estrutura nem as dinâmicas financeiras de um evento desses.
Patrocinadores desde logo?
Sim. Às vezes digo que não temos muito ideia daquilo em que nos metemos mas acredito que Deus vai providenciar e isso aprendi no Panamá. O arcebispo do Panamá dizia sempre isso: humanamente cada um vai dar-se na totalidade, vai querer desistir porque não consegue mais e a partir daí Deus providencia.
Em jovem nunca foi a uma Jornada?
Participei nas Jornadas de Cracóvia e Sydney. Todas as Jornadas têm uma cenourinha, às vezes é a geografia. Era padre há pouco tempo e pensei que nunca iria à Austrália. Por estes motivos acabam sempre por ser experiências diferentes. Mas em jovem nunca fui, tenho esse pecado.
Ia perguntar-lhe sobre o lado de convívio meio de festival: estive na Alemanha e em Madrid e vê-se muito essa animação e euforia nas vigílias ao relento com milhares de jovens.
No Panamá, em que estava de certa forma como observador, achei engraçado que começavam a chegar os miúdos, cada um na sua língua, e a certa altura há uma espécie de milagre e estão a falar uma língua estranha, meio inglês, meio espanhol, uma mescla, o que se torna particularmente divertido. Mais do que isso, temos ali uma experiência viva daquilo que o Papa Francisco fala na encíclica Fratelli tutti, uma fraternidade humana. Não interessa o país, nem a raça, nem a cor. Às vezes nem o credo porque há miúdos que participam de diferentes confissões religiosas. Ninguém está contra ninguém, ninguém vai jogar para ganhar ou perder, ninguém vai levar os louros de uma vitória ou a tristeza de uma derrota para casa. É pura e simplesmente um encontro, que o Papa pede que sejamos capazes de proporcionar aos jovens, uma experiência de encontro com Cristo vivo. E a figura do Papa presente provoca uma reação que não sei explicar mesmo tendo participado como padre nas Jornadas. É sempre um momento mágico. Quando falamos com pessoas que participaram, esse momento em que veem o Papa é muito marcante. É uma experiência que não podemos explicar a não ser vivendo. É estar com centenas de milhares senão milhões de jovens ao mesmo tempo e no mesmo sítio com esse fim. E por isso digo aos jovens: tendo oportunidade, e a da Lisboa obviamente, não percam.
Antes da pandemia já se falava de um afastamento dos jovens da Igreja. Que marcas ficam e até que ponto a Igreja vê aqui uma oportunidade para dinamizar as paróquias?
A experiência que tenho é que às vezes não estamos no mesmo cumprimento de onda, há dificuldades de comunicação de expectativas, de dificuldades, de sonho. Isso acontece em casa: os avós, os pais, os filhos e os netos. Acontece na Igreja e na sociedade e temos de ter a consciência de que os jovens não têm tido uma vida fácil nos últimos anos. Sinto muito isso não só nos jovens mas naqueles já mais maduros que pensam em constituir família, em casar, e a matemática financeira é fatal. Ou o emprego é precário ou o ordenado é diminuto. Como se pode dizer a um casal que assuma a responsabilidade de um arrendamento, de ter filhos ou de um projeto de vida quando as condições à volta são muito frágeis? É óbvio que, quando falamos com os nossos pais e avós, naquele tempo avançava-se com menos certeza, mas estamos neste tempo.
Tem seis irmãos.
Sim, sou o sétimo. Os meus irmãos tiveram todos um filho, só não tiveram meio porque não há meio (risos). A minha mãe costumava dizer que, naquele tempo, eram educados para dividir. Para a família, o que há, divide-se por todos – fossem cinco, seis, sete, 20. E ela dizia: «agora estão formatados para multiplicar». Se são 10, cada um vale x e é preciso multiplicar. E isto muda a perspetiva das pessoas. Mas é urgente ajudar os jovens a fazer caminho e até nesta altura em que o Papa nos pede uma reflexão rumo ao sínodo que vai acontecer em 2023, que é no fundo termos noção de que o caminho da Igreja é para fazermos juntos. O que temos procurado com as paróquias é, nesta preparação para as Jornadas, priorizar o protagonismo dos jovens. Sermos capazes de os fazer entender que queremos ser parte nos problemas, dificuldades e situações que diariamente encontram. Por exemplo, quando saem as listas de colocação no ensino universitário, gostava de dizer a cada jovem que vai sair da sua cidade, que a família tem aquele problema extra de ter pagar alojamento além de todos os outros custos, que o tecido da comunidade cristã está lá, que as paróquias podem ser um porto seguro.
Mas está a falar de terem mais residências para estudantes?
Termos um papel proativo nas necessidades dos jovens e há experiências disso no terreno, mas no fundo tornar isto mais percetível. Que um jovem do Porto que está em Lisboa, um jovem de Lisboa que está em Bragança, que um jovem de Bragança que está em Évora, saiba que as paróquias podem ser porto de abrigo em coisas práticas da vida.
Mas há algum projeto na calha?
No coração.
As Jornadas vão acontecer numa altura em que se espera que seja já conhecido o relatório da comissão independente que está a investigar abusos sexuais de menores cometidos em Portugal no seio da Igreja nos últimos 70 anos. As conclusões poderão ensombrar o encontro e os próximos anos da vida da Igreja?
Quando a comissão independente começou o seu trabalho respondi que não falaria mais da questão até que termine, para que não se sinta ou faça leitura de que um bispo daqui ou dali diz. O que é importante agora é dar voz ao silêncio com esta equipa de trabalho, num caminho que não é fácil. Nós, na comissão de Lisboa que existe desde 2019, continuamos a fazer o nosso caminho. Tivemos há dias, aliás, um encontro em Fátima de todas as comissões diocesanas. O que temos de acreditar e rezar é que este caminho é algo que faremos juntos e que o mais importante são as pessoas e consertar algo que não é possível consertar na totalidade, um acontecimento na vida de alguém que marcou, que feriu. Podemos ter cuidados paliativos, mas não é possível consertar na totalidade. Acompanhamos com oração e com disponibilidade o trabalho na comissão de Lisboa, que é mais da minha responsabilidade diretamente, e o que digo às pessoas e às comunidades onde tenho estado é que isto magoa, faz sofrer, mas não magoa nem faz sofrer mais do que foi o sofrimento e a dor do que os que viveram na sua vida estes acontecimentos hediondos.
Batendo-se Francisco pela tolerância zero contra os abusos na Igreja, termos as Jornadas em breve no país pesou na decisão dos bispos de avançar com a criação desta comissão independente?
Acredito que as coisas acontecem devido ao caminho que se foi fazendo. Em fevereiro de 2019, o Papa Francisco convoca todos os presidentes das conferências episcopais do mundo para irem a Roma falarem deste assunto. O senhor patriarca de Lisboa chega e decide criar imediatamente a comissão, em abril de 2019.
Em Lisboa isso foi pacífico?
Se calhar fez a diferença o Patriarca (D. Manuel Clemente) ter estado nesse encontro e ter ouvido pessoalmente o Papa. Entretanto as comissões foram criadas, veio a pandemia, tivemos um encontro em maio de 2020 em Fátima e as coisas ficaram um bocadinho… todas a funcionar mas com alguma dificuldade, umas mais e outras menos, em ir para o terreno.
O relatório da comissão francesa, com o choque que causou e até a pressão de muitos católicos para que se fizesse mais, acabou por ser determinante?
Era o que dizia: se olharmos para trás, vamos vendo que foi uma sensibilização que foi alastrando e há um óbvio sentimento que foi ganhando lugar no coração das pessoas que têm a obrigação de decidir. Quando as comissões se reúnem no ano passado e se fala da urgência em criar uma comissão nacional, é um passo que se dá e essa comissão foi criada agora neste encontro de 5 de fevereiro em Fátima. E depois havia o elefante na sala: de hoje para a frente ou para o que aconteceu há pouco tempo temos as comissões, estava resolvido. E lá para trás? Era a questão em cima da mesa: como nos debruçamos lá para trás? Aí tivemos vários exemplos: França, Irlanda, Austrália e mais dois ou três países que o fizeram de maneira diferente para chegar às mesmas conclusões. Da parte do conselho permanente da conferência episcopal surgiu este modelo que nos primeiros dias de janeiro arrancou e que agora fará o seu caminho.
Foi consensual entre os bispos?
Acredito que foi.
Foi dos primeiros bispos a admitir publicamente uma investigação histórica dos abusos na Igreja mas defendeu que devia estender-se a outros setores como escolas e classes profissionais. Foi acusado na altura nas redes sociais pelo secretário de Estado da Educação João Costa de enfiar a cabeça na areia, crítica repetida por Ana Catarina Mendes. Disse que a «Igreja é a única instituição que, apesar de todos os arrastamentos e dificuldades, está a levar isto a sério». Mantém o que disse?
Não e não queria, nem nesse dia nem agora, ter qualquer tipo de sobranceria de resposta em relação seja a quem for. O que queria dizer é o seguinte: tendo acompanhado desde 2019 com muita proximidade aquilo que é a realidade do fenómeno no nosso país e até noutros países – e particularmente cá o trabalho feito pelas autoridades, pela APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima), entre outros – tenho noção, infelizmente, do que é esta realidade. Sei que isto tem de ser dito com bisturi, que sempre que eu disser ‘aqueles também fazem’, a sensação que pode dar é que eu estou a sacudir a água do capote, mas nunca foi esse o objetivo. Aquilo que tentei dizer é que a Igreja tem de fazer a sua parte e tem de ser exemplar. Um crime de pedofilia cometido por qualquer pessoa é muitíssimo grave e já disse e repito que cometido por um clérigo é muitíssimo mais grave. Pus no top, um clérigo, um pai, um avô. É óbvio que temos de fazer e tomar iniciativa, não há dúvida quanto a isso, mas se queremos verdadeiramente como sociedade, com tolerância zero e transparência total, conquistar os corações de todos e dizer que isto é inadmissível e não pode acontecer, tem de ser transversal.
Continua a achar que devia haver um estudo transversal?
É ver os números. Não queria dizer que as escolas não fazem, que as classes profissionais não fazem, o que queria dizer é que era importante que todos caminhássemos juntos.
Mas o que disse foi que só a Igreja estava a levar a sério.
Mas colocando a conversa toda, o que quis transmitir foi que temos de o fazer juntos, porque se vemos que é algo que acontece transversalmente, no contexto familiar, no contexto escolar, no contexto eclesial, só juntos podemos ter uma frente de luta intransponível para esmagar o que for a tentação, a doença, o desvio, a criminalidade deste fenómeno.
Mas devia de ser feito esse estudo transversal? Em França foi feito um inquérito à população.
Não sei se é um estudo e sabemos que em muitas áreas, nas escolas, nas IPSS, foi feito um caminho maravilhoso de prevenção. Toda a gente que tem um palmo de testa e é responsável tem feito tudo ao seu alcance para mudar as coisas e para que os seus espaços, sejam civis, sejam eclesiásticos, sejam seguros e de confiança. Mas, como sociedade, continuo convencido de que temos de ter uma linha forte comum, transversal, para que quem está do lado de lá entenda que nós, sociedade, não permitiremos.
Ficou surpreendido com a reação de João Costa e Ana Catarina Mendes?
Não, estou convencido de que se tivéssemos conversado não existia essa reação. Fiquei magoado porque não era o que queria dizer. E acho que estamos num tempo, nas redes sociais ainda mais, em que não é fácil eu pronunciar-me sobre um assunto em que discordo ou concordo. Só isto pode ser motivo dos maiores insultos e desrespeito. Perdemos alguma capacidade de estarmos à volta de uma mesa em que cada um acha e fala e no fim continuamos amigos e temos consciência de que isso é uma riqueza para resolver um problema. Não sei se os media ajudam a pôr sal e pimenta, mas é isto: ‘ele disse isto, o que achava, é contra ou a favor?’ Acredito profundamente que o sr. secretário de Estado, a Ana Catarina Mendes, e outras pessoas que se pronunciaram de uma maneira diferente daquilo que entenderam que eu tinha dito, querem tanto ou mais que eu dar uma outra resposta a este problema. Acho que todos queremos o mesmo e podemos todos defender o caminho que acha o mais certo e, mais do que isso, partilhar informação, conhecimento, aquilo que são as melhores práticas. Não tenho feito outra coisa nestes três anos. Não sou um especialista, mas considero-me minimamente informado para saber que há uma coisa que temos de evitar a todo o custo, que é que qualquer vítima se sinta vítima outra vez.
Há para já uma grande diferença entre o que vinha sendo a postura das comissões das dioceses e desta comissão independente. Houve sempre um secretismo ou reserva de dizerem quantos casos investigaram enquanto que esta equipa tem sido proativa nos balanços. Como vê esta mudança?
É o mesmo que dizia há bocadinho, há um caminho que nos trouxe aqui. O Papa pediu transparência total e tolerância zero e é natural que isso nos leve a seguir um caminho diferente.
Nestes três anos da comissão de Lisboa, o que tem sido mais difícil de gerir?
A nossa comissão tem um bispo, tem um padre, um antigo procurador, um antigo PJ, tem uma pedopsiquiatra, um psicólogo. Num caso que recebemos recentemente, e que foi publicitado, quando a pessoa nos contactou, respondemos que tínhamos muito gosto em recebê-la e que a primeira conversa poderia ser com um homem ou com uma mulher, um civil ou um eclesiástico. A pessoa não fez questão de escolher e fui eu que recebi. E da parte da vítima o que ouvimos por vezes esbarra nessa ideia de publicitação, porque pedem-nos o máximo de reserva possível. Não querem ser conhecidos nem mediatizados. Não é fácil fazer coincidir transparência total com o desejo de reserva absoluta. E temos de o respeitar, porque é preciso uma coragem férrea para vir partilhar um acontecimento tão doloroso da vida, principalmente quando é alguém que tem família constituída, e como é que eu consigo gerir estas duas expectativas é um desafio.
Os relatos deixam-no chocado?
Como nestes anos tenho tido o cuidado de me enfarinhar nessa podridão, como já li muito, não me surpreende muito um caso real. O que choca sempre é o rosto, o nome, a vida daquela pessoa concreta.
Muitas pessoas questionam a cumplicidade com estes abusos. Sendo padre há 20 anos, nunca houve uma suspeita que o fizesse levantar as antenas?
Não, já o disse. Daquilo que é a minha realidade como padre do Porto, e fui vigário geral da diocese durante 13 anos, nunca um contexto de pedofilia, de abuso de menores, me passou pelo nariz, pelos olhos, pelos ouvidos. Nunca. Se me perguntar casos da área moral sexual de outra secção, de outras idades, de outros contextos, sim. Situações de outros contextos, mas deste nunca. Um dia até me perguntaram e quando era miúdo, de ouvir dizer. Nunca ouvi.
Nem nos seminários?
Nunca. De adultos, não digo que não, deste quadro etário nunca, absolutamente.
Terem sido recebidos 214 testemunhos num mês surpreendeu-o?
Não, mas surpreende-me uma coisa. O Observador teve durante meses aqui há um ano ou dois uma investigação e uma provocação para que as pessoas pudessem apresentar denúncias. Recebeu mais um ou outro caso além dos que eram conhecidos. A comissão de Lisboa existe há três anos.
Quantos casos receberam em Lisboa em três anos?
Estamos agora a trabalhar em Lisboa num segundo caso. A APAV tem o programa CARE (Apoio a Crianças e Jovens Vítimas de Violência Sexual) e também não temos relato de ter este número de denúncias.
A nível nacional, quantas denúncias receberam todas as comissões, até pelo balanço que fizeram recentemente em Fátima?
A partilha que foi feita em Fátima não tem nada a ver [com esse número]. A maioria tem zero. As autoridades, o Ministério Público, tinham já a porta aberta. Portanto eu oiço o número e naturalmente tenho perguntas: o que mudou para que desde 5 de janeiro até agora as pessoas tenham aberto o seu coração para partilhar, o que fará 214 pessoas sentirem que têm agora condições para partilhar e porque é que porventura não o fizeram perante todas as oportunidades privadas, públicas, oficiais e oficiosas.
Isso leva-o a pensar que a Igreja falhou ao chegar a estas pessoas?
O Pedro Strecht (que está a liderar a comissão independente) foi membro da nossa comissão de Lisboa e desde o início diz uma coisa que nunca esqueci: para alguém abrir o seu coração sobre este assunto é preciso muita força, é preciso muita confiança, é preciso ser o momento certo. Só quando estão criadas x condições é que a pessoa dá o passo. Quero acreditar que as condições teóricas que o Pedro Strecht tantas vezes referiu foram criadas para estas 214 pessoas neste tempo, nesta circunstância, neste contexto.
Falou de um caminho gradual até a Igreja ter pelo menos uma abordagem mais clarificada em relação a este assunto. Antes tinha havido outras polémicas. Na diocese de Lisboa, houve o caso de Dr. Carlos Azevedo que foi para Roma e chegou a ser escrito que tinha sido afastado por ter uma orientação sexual homossexual. Situações destas teriam sido tratadas de outra maneira hoje?
Não sou testemunha geográfico nem funcional do que possa ter acontecido, se foi por isso, se não foi e quais foram as circunstâncias. O sr. D. Carlos Azevedo foi meu professor no Porto, é um sacerdote do Porto por quem temos todos muito respeito e muita admiração e foi para nós uma surpresa tudo o que aconteceu, como aconteceu e todo esse dossiê. Acho que não é justo fazer juízos sobre decisões do passado com informações do presente e às vezes temos essa tentação. Em cada tempo cada um tomou as decisões que considerou as corretas. Hoje há assuntos, matérias e contextos que são totalmente diferentes do que foram há 10, 20, 30, 40 e 50 anos.
Há uma Igreja diferente?
Porque é viva, é constituída por todos nós. Vai-se renovando. O Cristo vivo é o centro, a estrutura, e a partir daí vamos caminhando juntos.
Tem 48 anos. Que Igreja imagina para os próximos anos?
O nosso querido Papa Francisco, naquelas primeiras palavras aos jornalistas na sala Paulo VI após a eleição, contou o ‘drama’, durante as eleições do conclave, de escolher o nome. Faziam-se piadas que ele ia ser Clemente qualquer coisa porque o Papa que extinguiu os jesuítas era um Clemente e ele ia ser a seguir para acertar a história. Ele diz que quando a votação ultrapassou a maioria qualificada, o cardeal Hummes, do Brasil, lhe disse: ‘Não te esqueças dos pobres’. Não sei se isto demora segundos ou minutos, mas ele conta que a certa altura tinha à frente dele o cardeal que lhe pergunta ‘tu aceitas a eleição de Papa’, e que ele naquela fração de tempo em que diz sim ou não, teve o flash de, logo a seguir, quando lhe é perguntado o nome, responder Francisco, como Francisco de Assis. E quando lhe perguntam que projeto tem, que sonho tem, responde uma Igreja pobre para os pobres. Estou convencido que o caminho conjunto que temos para fazer é esse. E não é um foco exclusivo em ter ou não ter dinheiro. O ser pobre é sentir-se dependente. E há gente muito rica que se sente dependente. É sermos capazes de fazer um caminho que respeita o outro naquilo que são as suas fragilidades, sonhos e expectativas. Um caminho de olharmos para o planeta, como tem dito o Papa Francisco, e entendermos que assim não vai. Termos uma parte de um hemisfério a estoirar as possibilidades do planeta e desgraçados do outro hemisfério que morrem à fome e são os primeiros a levar com os efeitos das alterações climáticos. Assim não vai.
Aqui tem um ponto de ligação com Francisco: antes de ser padre já tinha a causa ambientalista.
É verdade, fui um perigoso ativista ambiental pelo meu rio Leça. E é esta Igreja que quero ajudar a construir. Uma Igreja que caminha com as pessoas, que prende pelo coração com este Cristo vivo que nos faz olhar para o outro como irmão.
Há mudanças que gostava de ver na Igreja?
Há uma coisa que me gerou sempre vontade de fazer algo, que é o mapa paroquial penta-secular ou milenar que temos e que não corresponde à realidade da vida das sociedades. Quando entramos numa cidade como Porto ou Lisboa, uma boa parte dos paroquianos não sabe o limite das suas paróquias e muito menos se considera paroquiano da paróquia da rua onde mora, embora a regra seja essa. E quando acolhemos jovens para casar, dizemos que vai ter de ir falar com o seu pároco, eles perguntam: onde é que é isso? Esta quadrícula romana.
Se calhar romana mesmo.
Sem dúvida, muito deste mapa deve vir lá de trás. Temos avenidas com quatro ou cinco paróquias e podemos resenhar-nos no terreno mais de acordo com a realidade das comunidades que queremos servir. Este mapa não teve em consideração os centros urbanos, as autoestradas, as linhas do metro. E depois às vezes vai-se a um sítio e diz-se: esta igreja tem muita gente. Às vezes não é por particular devoção pelo padre, é só o parque de estacionamento.
Está a falar do Campo Grande?
Por acaso estava a pensar na geografia do Porto. Em alguns sítios onde há uma grande afición é porque é fácil estacionar. Nunca nenhuma paróquia foi pensada em função disto, mas é esta a realidade que por vezes esbarra no desenho das paróquias que temos, em que umas acabam por ter mais pessoas do que outras. Na pandemia tivemos uma experiência que nos deve fazer refletir: em poucos dias mudámos o paradigma com transmissões online e não foi para os mais novos nem para os mais velhos, foi transversal. Penso que é uma oportunidade que podemos agarrar.
Está em Lisboa há três anos. Ainda sente muitas diferenças em relação ao Porto?
A piada mais atual é a vacina e a vácina, que é o que me tem traído mais. Gosto muito de Lisboa, a cidade é luminosa, é muito bonita. Cativam-me as avenidas, a grandeza e não tinha noção disso: Lisboa é enorme. O Porto cabe na palma da mão. Mas o que tenho sentido muito, até nas viagens que tenho feito agora por causa das Jornadas, é a riqueza do país que somos, como em poucos quilómetros temos tanta diversidade cultural, gastronómica, religiosa, de pronúncias, mas com o dom de nos sentirmos unos, o que é muito especial. Mandamos umas bocas, mas é da boca para fora. Agora diferenças… No Porto, no Norte, o que sinto é que aquela pessoa com quem nos damos no trabalho, na escola, rapidamente ao fim de uns dias estamos a ir a casa beber um café, beber uma cerveja, à festa de anos. Aqui demora uns aninhos porventura a que isso venha acontecer.
Com a pandemia se calhar tem tido uma má experiência.
(risos) Não sei, mas acho que no Porto a porta de nossa casa escancara-se muito mais rapidamente do que a sul.
Correndo o país, que sentimentos encontra?
Tive uma experiência muito emotiva na ilha das Flores. Fomos lá para içar uma bandeira no ponto mais ocidental da Europa e tivemos um encontro de jovens. Ao ver a beleza e grandeza daquela ilha e ao mesmo tempo a dureza, com as consequências visíveis de uma intempérie recente, fiquei emocionado e feliz ao ver a normalidade daqueles jovens. Para nós, continentais, gostamos, mas sabemos que na segunda-feira vimos embora. Para eles, a ilha, a montanha, a adversidade geográfica, não era um problema. Jogavam em casa. Aquilo que eu estava a avaliar como limitativo era errado, mas há coisas que são. E o que tenho dito em todos os sítios é que temos de fazer um esforço para que todos os jovens sonhem no nosso país, de norte a sul, do interior ao litoral. Temos de criar condições para que todos os jovens sonhem. E a seguir dizer-lhes e provar-lhes que nenhuma circunstância geográfica ou temporal será impedimento para que concretizem os seus sonhos. E que nenhum jovem vai ter em razão disso vai ter menos oportunidades. Isto não é fácil.
Daqui a ano meio, gostava de ter tempo de levar o Papa ao Porto para provar uma francezinha ou será o pastel de nata a levar a melhor?
Sei que gosta de beber aquela coisa do mate e há dias li que gosta de vinho da Madeira. Todos nós temos gosto e vontade de o acolher na nossa diocese. Sabemos que a visita e calendário será muito limitativo, a não ser aquilo que o Papa já partilhou com o Presidente da República, que é o seu desejo de ir a Fátima.