Diz-se que a língua chinesa é tão rica e complexa que nem mesmo os grandes eruditos, ao fim de uma existência dedicada ao estudo, a dominam na totalidade. Para conhecer os 50 ou 60 mil caracteres chineses (ninguém sabe ao certo quantos existem) uma vida não basta.
O mesmo se poderia aplicar a uma grande metrópole como Lisboa. Por muito bem que julguemos conhecê-la, reserva-nos sempre mistérios e surpresas. No coração da Cidade Universitária encontra-se um desses recantos pouco frequentados, o Arquivo Histórico da Faculdade de Direito.
«Temos mais de 90 mil documentos metidos aqui», apresenta o professor Gonçalo Sampaio e Mello, curador deste tesouro incógnito, enquanto nos abre as portas. «A sala está sempre fechada», lamenta. «Não temos recursos. Tem um funcionário, que sou eu».
Lá dentro, cheira a papéis antigos e madeira – um aroma em vias de extinção num mundo cada vez mais digital. Não há máquinas à vista: só documentos e móveis com muitas gavetas.
«Este é o Afonso Costa, o fundador da Faculdade», exemplifica o anfitrião, apontando para a capa de um exemplar de 1913 do semanário humorístico O Thalassa que mostra o líder republicano vestido de Napoleão. Foi precisamente em dezembro desse ano, nos alvores da República, que a Faculdade de Direito abriu as portas, nas instalações da antiga Escola Politécnica. Ainda passaria pelo Palácio Valmor, donde sairia em 1958 para assentar definitivamente arraiais no edifício desenhado por Porfírio Pardal Monteiro, o grande arquiteto modernista do Estado Novo.
Antes da nossa chegada, Sampaio e Mello preparou uma pequena amostra do que se pode encontrar no Arquivo. Mas é apenas a ponta do icebergue. Entre os papéis, vemos cadernetas escolares de personalidades que marcaram e continuam a marcar a vida política do país: Álvaro Cunhal, Francisco Sá Carneiro, Diogo Freitas do Amaral, Francisco Pinto Balsemão, Jorge Sampaio, Leonor Beleza, Durão Barroso, Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa…
«Álvaro Cunhal formou-se com 16 na prisão. Passados dois ou três anos quis-se doutorar. Então escreve ao diretor da Faculdade. ‘Como antigo aluno tenho acesso ao doutoramento ou não tenho?’. E o diretor diz: ‘Tem. Venha doutorar-se’». A fuga de Peniche e a ida para Moscovo acabariam no entanto por ditar outro percurso.
Outro opositor do Regime aqui formado, ainda antes de Cunhal, foi Adelino da Palma Carlos. «Doutorou-se com muita pressão contra do Estado Novo. Fizeram tudo para não o doutorar». O primeiro primeiro-ministro da democracia viria a revelar mais tarde que um professor chegou a perguntar-lhe: «O senhor é processualista? Então qual é o direito processual da China?». «Isto aconteceu», diz Sampaio e Melo. «Depois doou à faculdade os telegramas e cartas de felicitações que recebeu quando se doutorou».
Melhor aluno que Marcelo
Alguns dos melhores alunos viriam a fazer carreiras a condizer. O atual Presidente da República – de quem se conta que era tão brilhante que vinham pessoas de fora para assistir às suas orais – é talvez o mais perfeito exemplo disso. Outros, apesar das notas pouco impressionantes, conseguiram vingar na vida pública. «Olhe estas notas», sugere o coordenador do Arquivo Histórico. «Mas não divulgue…», graceja.
As histórias variam muito. «O melhor aluno da faculdade foi o Manuel Cortes Rosa. Formou-se com 19. Depois foi estudar Filosofia do Direito para a Alemanha. Mas era inteligente de mais. Começou a ter derrames e ficou com o braço paralisado», conta o anfitrião. «Outro caso, o de Taborda Ferreira: 19 valores – melhor do que Marcelo. Foi a doutoramento, insultou o júri e foi chumbado».
A nota vinte nunca foi atribuída. «A nota de 20 valores nunca se deu em 110 anos», garante Sampaio e Mello. «É o que nós chamamos o direito consuetudinário não escrito. Nesta Faculdade nunca houve uma nota de 20. Não existe… só teoricamente». A caderneta de José Pacheco Pereira ostenta no entanto um número composto por um 2 e um 0. Parece-se muito com um 20. O guardião deste acervo desfaz o equívoco: «Isso… são faltas», esclarece.
Também despertam a nossa curiosidade registos da passagem de personalidades que não associamos ao Direito. Helena Sacadura Cabral, o General Ramalho Eanes – que abandonou o curso mas não saiu de mãos vazias, pois foi aqui que conheceu Manuela Eanes – ou o Cardeal Patriarca, D. Manuel Clemente, são só alguns exemplos.
Guardam-se aqui 36 mil registos relativos a correspondência expedida e recebida (entre 1913 e 1986), e 15 mil cadernetas curriculares de alunos (entre 1957 e meados da década de 1990). «Os funcionários antigos nunca falharam», diz o anfitrião. O Arquivo orgulha-se de possuir no seu acervo documentos escritos pela mão de cinco prémios Nobel, oito chefes de Estado, nove chefes do Governo, sete presidentes do Supremo Tribunal de Justiça, etc., etc.
Além da correspondência e das cadernetas, contam-se ofícios, manuscritos de personalidades eminentes nacionais e estrangeiras, convites – juntos, ajudam a escrever a história da instituição e do Direito em Portugal. Num tom mais ligeiro, há fotografias e divertidas caricaturas, como a de Martim de Albuquerque «já careca e com a Torre do Tombo na mão».
‘Entrei por qual das portas?’
Nem sempre a harmonia e boa disposição reinaram nos corredores da Faculdade. As convulsões e os conflitos entre alunos e docentes começaram ainda antes do 25 de Abril. Sampaio e Mello recorda um episódio ocorrido em 1972, em que um ilustre professor foi avisado por um contínuo – «o Sr. Charneca» – de que corria risco. «Sr. Professor, a faculdade está cercada, os alunos tomaram conta disto, querem-lhe bater», disse-lhe, aconselhando o professor a sair discretamente por uma porta que dava para o jardim. «Ó Charneca, eu entrei por qual das portas?». «Pela principal».
«Então tenho que sair pela principal», concluiu. «E então rompe na multidão estudantil, uma situação muito complicada, com dignidade tal que não lhe bateram. Foi o Prof. Pedro Soares Martínez», revela o anfitrião.
Outros professores houve que não conseguiram escapar à fúria dos estudantes mais encarniçados, chegando a ser cuspidos, agredidos, humilhados. Já depois da revolução, Cavaleiro de Ferreira foi alvo de um «julgamento popular» no anfiteatro, onde estavam «uns 500 ou 600 alunos». «Houve duas pessoas que acompanharam o Prof. Cavaleiro de Ferreira. Só duas: o Prof. Oliveira Ascensão, que era assistente, e está vivo, e a Dr.ª Isabel Magalhães Colaço, que lhe agarrou na mão e não a largou. Como havia uma senhora, eles não bateram no Prof. Cavaleiro de Ferreira». Dessa vez – pois noutra ocasião o jurisconsulto foi agredido nas escadas.
Se o corpo docente foi saneado a 100% (segundo João Castro Mendes, tio do ministro e discípulo de Guilherme Braga da Cruz, «quem dava aulas nesse período era o MRPP»), a taxa de aprovações foi superior a isso: 108%. Como? Havia alunos que estavam matriculados sem o saber…
E aqui distingue-se outra figura do nosso panorama político, Pedro Santana Lopes. «Era muito elegante quando passou por cá como aluno e fez um curso notável, porque as passagens administrativas começaram no ano dele. Os alunos classificavam-se a si próprios». Porém, inconformado com a passagem administrativa, Santana Lopes decidiu «refazer o curso» a partir do 3.º ano. «Em todas as cadeiras que tinha ‘apto’, quis ter nota aritmética. Teve caráter».
Rapaz brilhante, professor exigente
Passamos agora à Sala Professor Marcello Caetano, criada por proposta de Jorge Miranda em 2006, ano do centenário do nascimento do professor catedrático, reitor da Universidade de Lisboa e presidente do Conselho de Ministros. Encontram-se aqui expostos manuscritos autógrafos, trajes académicos, condecorações e objetos pessoais.
Curiosamente, existe uma longa ligação da família do nosso anfitrião à do homenageado. «O meu bisavô [João Teotónio Pereira, a quem Salazar, quando partiu uma perna e estava a recuperar numa clínica ao lado da casa deste, pedia que pusesse ópera a tocar na grafonola] foi administrador da Companhia de Seguros Fidelidade entre 1940 e 1947. E um dia o meu tio Pedro Teotónio Pereira apresentou-lhe um rapaz, que era o Marcello Caetano: ‘Pai, está aqui um rapaz brilhante, um recém-licenciado de Direito, para trabalhar na Fidelidade’. E o meu bisavô disse: ‘Meta-o’. É assim que ele começa a trabalhar na Fidelidade».
Foi também pela mão de Pedro Teotónio Pereira que Marcello conheceu Salazar, a quem viria a suceder, muitos anos mais tarde, na liderança do Governo. «Quando se envolve na política e começa a ter muito que fazer, começa a deixar de ir à Fidelidade, porque não tem tempo. Passado aí um ano, o meu bisavô volta-se para o filho e pergunta: ‘Pedro, o que é feito do rapaz?’. ‘O Marcello está com muito que fazer. Até está a fazer cerimónia porque gostaria de sair…’».
A saída da Tranquilidade não beliscou a relação de enorme amizade com Pedro Teotónio Pereira. O ministro e diplomata acabaria por vir a ser padrinho dos filhos de Marcello. Dois deles, Miguel e Ana Maria Caetano, reuniram o espólio guardado nesta sala. «É um trabalho extraordinário dos dois irmãos», elogia Sampaio e Mello. «A Sr.ª D. Maria Caetano esteve aqui para aí 30 vezes», confidencia.
«Marcello era a pessoa, diz a minha família, mais desapegada do mundo», continua. «Não tinha nada, vivia do salário dele, e nos pareceres jurídicos não cobrava. Só conheço outra pessoa que fazia isso: o Prof. Guilherme Braga da Cruz, em Coimbra, que está a ser beatificado».
Aqui vemos uma vitrina dedicada às condecorações brasileiras, ali uma com manuscritos, adiante outra com as publicações. Entre estas, encontra-se um segredo bem guardado: um livro intitulado Barroco Mineiro, que o antigo presidente do Conselho escreveu no Brasil, mas não assinou.
A opinião de que Marcello Caetano foi um grande professor é unânime. Mas a fasquia da exigência era elevada. O cenário das notas dadas aos alunos não é animador: ‘11, 12, 10, reprovado, 10, reprovado, reprovado’… «Olhe ele a classificar o próprio filho, que era afilhado do meu tio Pedro», nota Sampaio e Mello. «José Maria de Barros Alves Caetano: 11 valores».
De resto, não havia benesses para os descendentes de famílias ilustres do Regime. «Falei com dois professores de Direito», recorda o coordenador do Arquivo Histórico. «Recebiam cunhas por escrito. Não abriam as cartas, davam a nota e depois respondiam: ‘O seu sobrinho teve a nota tal… Com os melhores cumprimentos’.
A pérola e a ostra
Terminamos a nossa visita pela Sala Professor Paulo Cunha, «orador fulgurante, que seduzia e subjugava o auditório desde a primeira frase», na qual somos recebidos por um soberbo retrato saído do pincel de Henrique Medina, pintado em 1967. Licenciado com a classificação final de 19, Paulo Cunha foi especialista em Direito Privado, ministro dos Negócios Estrangeiros (1956-1958) e reitor da Universidade de Lisboa – tendo, curiosamente, sucedido a Marcello Caetano em ambos os cargos.
«Condecorações são 23», elenca Sampaio e Mello. «As três mais importantes do mundo são a Carlos III de Espanha, que nunca se dá; a Pio IX, da Santa Sé, também não se dá; e St. Michael e St. George, uma raridade. O Prof. Paulo Cunha tem as três».
Além de todos os altos cargos que desempenhou, Paulo Cunha era pintor, poeta e violinista amador. E um grande melómano. «Um sobredotado», resume o anfitrião.
Uma vitrina mostra, ao lado do instrumento em que costumava tocar – «todos os dias tocava violino, para descontrair» – cartões autografados por alguns dos grandes nomes da música do século XX: Maria Callas, Arthur Rubinstein, Willehlm Kempff, Paul Hindemith…
Outra assinatura histórica aqui conservada é a de Hans Kelsen, que Sampaio e Mello descreve como «o maior filósofo do Direito do século XX». «Paulo Cunha, menino e moço, vai à Suíça. Telefona ao Hans Kelsen, que está refugiado de guerra – teve problemas com os nazis e passou para a Suíça. E O Kelsen diz: ‘Tenho o maior gosto em conhecê-lo’. Os génios são assim. Vão jantar e o Kelsen faz-lhe esta dedicatória». ‘Hommage de l’auteur…’, lê-se na folha de rosto da edição portuguesa de Teoria Pura do Direito, um clássico do Direito.
Anos depois, Paulo Cunha teria outro encontro célebre, este menos auspicioso, num congresso «com representantes de todo o mundo» que decorreu numa altura em que Portugal estava debaixo de fogo devido às colónias em África. «Nixon, no meio de 300 pessoas, identifica o Paulo Cunha, e diz: ‘O senhor foi a pérola desta conferência!’. E o Paulo Cunha olha nos olhos de Nixon e diz: ‘E o senhor foi a ostra’».
A par das condecorações, vemos cartões de algumas das maiores personalidades do século: a Rainha Isabel II, Winston Churchill, Reza Pahlevi, xá da Pérsia. O mais impressionante e raro, porém, será um documento assinado por Hirohito, «o último imperador de direito divino» do Japão. Vale uma pequena fortuna.
Nem todos os episódios recordados nesta sala são tão espirituosos como a resposta a Nixon ou têm o brilho dos requintados convites da realeza. «Aqui temos a demissão do Prof. Paulo Cunha. É das páginas mais negras da história da Faculdade», considera Sampaio e Mello. Aquele que foi um dos grandes professores de Direito, e reitor da universidade, «é expulso em maio de 1974, pelo Partido Comunista e pelo MRPP. O ministro era o Dr. Vitorino Magalhães Godinho – é lamentável que tenha consentido». Paulo Cunha «caiu numa depressão profunda e nunca mais voltou, nunca mais conseguiu dar aulas», conclui Sampaio e Mello.
A homenagem tem pois um certo sabor a reparação de uma injustiça cometida no próprio coração do sistema jurídico. «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades», escreveu Camões. «Do mal ficam as mágoas na lembrança/, e do bem (se algum houve), as saudades».