Antes de se tornar o realizador de obras-primas como Spartacus, Barry Lyndon, The Shining ou 2001: Odisseia no Espaço, Stanley Kubrick treinou o seu olhar e a sua sensibilidade para as histórias como fotojornalista. «Esta experiência foi preciosa para mim, não apenas por ter aprendido imenso sobre fotografia, mas também porque foi uma escola rápida de como as coisas se passam no mundo», viria a reconhecer mais tarde.
Tudo começou com uma máquina fotográfica, uma Graflex, que lhe foi oferecida pelo pai, o Dr. Jacques L. Kubrick, um dentista bem-sucedido estabelecido no Bronx. «A primeira máquina de Stanley Kubrick não era um brinquedo para crianças mas uma ferramenta profissional e um convite para o mundo das imagens», escreveu Vincent LoBrutto na biografia do cineasta. Na ideia do Dr. Kubrick, a máquina era também um estímulo para o rapaz tímido e pouco expansivo sair de casa e socializar.
A Graflex foi quase tudo para o jovem, que idolatrava Arthur Fellig, mais conhecido por Weegee, o fotojornalista cujas fotos cruas a preto e branco que ocupavam as primeiras páginas dos jornais captavam tanto a vida quotidiana dos anónimos bem como o lado mais sombrio de Nova Iorque.
Kubrick não era propriamente um aluno brilhante, pois «só lhe interessava aquilo que o interessava», como diria um amigo. As ciências, a matemática, a física não o interessavam, e trocava as salas de aula pelas escuras salas de cinema da cidade. Tal como Weegee, também andava pela rua à procura de temas, e a sua paixão pela fotografia levou-o rapidamente assumiu o papel de fotógrafo principal do jornal da escola.
Até que, no dia 12 de abril de 1945, o mundo acordou com a notícia da morte de Franklin D. Roosevelt. Kubrick, que andava sempre com a sua Graflex a tiracolo para o que desse e viesse, deparou-se com um quiosque cheio de jornais cujas capas anunciavam o triste acontecimento em letras garrafais. Tirou uma foto e foi a correr revelá-la. Depois dirigiu-se para a cidade para os escritórios do Daily News. Ofereceram-lhe dez dólares. Insatisfeito, seguiu caminho. Na revista Look, uma rival da Life, ofereceram-lhe 25 dólares e uma oportunidade como estagiário.
Through a Different Lens – Stanley Kubrick Photographs, a exposição que inaugurou no sábado e pode ser vista até 22 de maio no Centro Cultural de Cascais, mostra precisamente uma seleção das fotografias que Kubrick fez para a Look. As imagens, diz-nos Whitney Donhauser, diretora do Museu da Cidade de Nova Iorque, que organiza a exposição, permitem-nos «entrar na mente» do autor «e ver como desenvolveu um estilo próprio».
Nessa época, o jovem fotógrafo, que rapidamente passaria de estagiário a membro de pleno direito do quadro muito acarinhado pelos colegas mais velhos, fotografou Presidentes, gente da sociedade, e personalidades como o orador motivacional Dale Carnegie, o artista espanhol Salvador Dalí, o boxeur Rocky Graziano, o jovem Sinatra ou o maestro e compositor Leonard Bernstein. Donhauser chama também a atenção para a série intitulada ‘Life and Love in the New York City Subway’ – ‘Vida e Amor no metropolitano de Nova Iorque’.
Mas nem todas as reportagens seriam tão interessantes.
«O tema dos meus trabalhos para a Look era geralmente bastante pateta», revelaria anos mais tarde, com algum exagero. «Fazia histórias como ‘Um atleta é mais forte que um bebé?’. Mas de vez em quando tinha a oportunidade de fazer a história de uma personalidade interessante. Uma delas foi sobre Montgomery Clift, que estava no início de sua brilhante carreira». A fotografia do ator é uma das que podem ser vistas em Cascais.
Já na época Kubrick tinha os olhos postos no cinema. Os seus colegas da Look sabiam que a sua ambição era fazer filmes, e que ocupava os tempos livres a fazer experiências e ensaios com máquinas de filmar. «A fotografia permitiu-me certamente dar o primeiro passo para os filmes», reconheceria. «Para fazeres um filme por ti mesmo, como eu fiz, talvez não precises de saber muito sobre outra coisa qualquer, mas tens definitivamente de saber sobre fotografia».
Que idade tinha Stanley Kubrick quando fez as fotografias que vemos nesta exposição?
Tinha 17 anos. Ainda andava na escola secundária.
Era muito novo, portanto.
Era um adolescente.
Sabemos como ele começou a interessar-se por fotografia?
Sabemos. O pai dele era dentista e ofereceu-lhe uma máquina fotográfica – e ele ficou fascinado. E uma das coisas fantásticas desta exposição é que nos permite ver como ele, enquanto artista, já estava a pensar em composição, luz, estrutura. Isso é fantástico porque conseguimos entrar na mente dele e ver como desenvolveu um estilo próprio.
Ele também esteve em Portugal em 1948, a fotografar para a Look.
Sim? Não sabia. Isso é muito interessante.
Estas fotografias também foram feitas para a imprensa?
Sim, foram feitas para a revista Look. Ao princípio, quando ele ainda estudava, deram-lhe um lugar como estagiário, e em 1947 já estava no quadro da equipa de fotografia. O Museu da Cidade de Nova Iorque ficou com todos os arquivos da revista Look que dizem respeito a NY, e é por isso que temos estas imagens.
E era bom fotógrafo?
Penso que era um excelente fotógrafo. E estas imagens permitem-nos vê-lo a desenvolver as ferramentas que depois vai usar no cinema. Quando se vê esta exposição, muitas fotografias levam-nos a pensar nalguns dos seus filmes mais famosos. Há uma correlação muito forte na forma como estava a treinar o olhar, e como se preocupa não apenas em captar um momento, mas sobretudo com o enquadramento e a composição de cada imagem. Ou seja, já estava a pensar como um artista, e estas fotografias revelam precisamente essa qualidade artística.
Faz então sentido ver este período como uma aprendizagem para o cinema?
Sem dúvida, e qualquer pessoa que passeie pela exposição e se detenha por alguns momentos para lembrar os filmes de Kubrick perceberá isso. Estamos a presenciar o processo de um adolescente a desenvolver um estilo e um olhar único.
Ele era precoce, uma espécie de menino-prodígio?
Sim, e há testemunhos muito elogiosos do seu editor a dizer como o achava talentoso. Quando foi trabalhar para a Look era muito novo, e pode-se dizer que os seus colegas na revista ficaram impressionados e encantados com este jovem fotógrafo que já mostrava um enorme potencial.
Quais eram os seus temas favoritos?
Penso que as suas imagens são sempre um pouco peculiares. Uma das grandes imagens da exposição é de um automóvel cheio de cães mimados, mas também a forma como olha para as pessoas tem algo de especial. Há belíssimas fotografias de celebridades como Montgomery Cliff, Leonard Bernstein, Rocky Graziano. Cada imagem mostra sempre uma grande capacidade para contar histórias, independentemente do tema retratado. As fotografias parecem simples, mas na verdade são complexas e há sempre muita coisa a acontecer.
Ele tinha liberdade para escolher o que fotografava ou tinha de fazer o que lhe mandavam?
Penso que tinha alguma margem para propor ideias. Mas mesmo nos trabalhos ‘encomendados’ também se nota que consegue realçar nas fotos aquilo que lhe interessava. Até a retratar um cientista que colaborava com a Universidade de Columbia, percebemos que Kubrick consegue dar-lhe um twist muito pessoal. E é curioso que muitos dos temas vão aparecer nos seus filmes. Percebemos que mesmo quando ia fazer o que lhe mandavam ele tinha a sua abordagem própria e a capacidade de imprimir o seu cunho em qualquer que fosse o trabalho.
Isso resulta numa espécie de marca d’água, numa ‘assinatura’ Kubrick?
Isso mesmo. Quem vai à exposição percebe que o adolescente que faz estas fotografias e o grande realizador são a mesma pessoa. Há um estilo distintivo que deixa a sua marca em tudo.
A exposição também oferece uma janela para a vida em Nova Iorque na década de 1940?
Sim, isso é algo muito importante para o nosso museu. As fotografias mostram o glamour e a vibração da cidade no período pós-Segunda Guerra Mundial. Uma das primeiras fotorreportagens que lhe são pedidas é sobre a vida nos túneis do metropolitano e chama-se ‘Life and Love in the New York City Subway’. E há imagens belíssimas e muito poderosas de casais apaixonados a abraçar-se, das escadas rolantes e de pessoas a ler o jornal na carruagem. Por alguma razão ainda as usamos em várias iniciativas. São imagens universais.