Como os meus leitores sabem, tenho simpatia pelas opiniões que desafiam a ortodoxia e o mainstream.
É preciso coragem para pensar pela própria cabeça e não ir atrás do que ‘todos dizem’.
Sobre esta guerra da Ucrânia, vejo algumas pessoas defender a seguinte ideia:
– Os EUA, o Reino Unido e outros países do Ocidente incentivaram durante anos a Ucrânia a provocar a Rússia, venderam-lhe armas, e por isso Biden, Johnson e outros que hoje acusam Putin são tão bons como ele. Putin não é o ‘mau da fita’. Os que o desafiaram através do Governo ucraniano são tão culpados como ele pelo que está a acontecer.
Este raciocínio tem a virtude de ser contra a corrente.
Mas enferma de um erro básico: os líderes ocidentais venderam à Ucrânia armas ‘para se defender’ no caso de uma eventual invasão russa – e não ‘para invadir’ a Rússia. Ora, Putin ‘ordenou a invasão’ da Ucrânia. Não há pois simetria entre as duas atitudes, pelo que não são comparáveis.
Nesta guerra só há um agressor: a Rússia. A Ucrânia estava numa posição defensiva. Assim, não há aqui ‘ses’ ou ‘mas’, como justamente disse no Parlamento o nosso ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva.
Parece inacreditável como um país, sem ser atacado, com base numa hipotética ameaça futura, se permite entrar pelo território doutro país dentro, começar a disparar, arrasar prédios, matar pessoas, destruir-lhe o património.
Alguém que mata outro ser humano pode ser condenado a uma pesada pena, inclusive à morte. Um homem como Putin, que semeou a morte e a destruição noutro país, tem de ser severamente julgado como um criminoso em larga escala.
Os seus crimes não têm perdão.
Ele alega que a NATO tem vindo a alargar as suas fronteiras para Leste, e não podia permitir que se encostasse à Rússia.
O seu objetivo seria, pois, fazer da Ucrânia um país tampão, uma espécie de ‘terra de ninguém’, entre a Rússia e os países que integram a NATO.
Sucede que a ‘terra de ninguém’ é um conceito militar, que diz respeito ao território entre as trincheiras mais avançadas de exércitos inimigos.
Ao exigir uma ‘terra de ninguém’ entre os países ocidentais e a Rússia, Putin considera-se pois em guerra com o Ocidente.
Esta é a realidade.
Vladimir Putin considera-se permanentemente em guerra com o Ocidente.
Basta olhar para ele para perceber que estamos perante um ser diferente.
O seu rosto é neutro – destituído de expressão. Os seus olhos não parecem fitar ninguém – como se fossem os de um cego. Tudo nele e no que o rodeia é sinistro: a mesa desmesurada, com uns oito metros de comprimento, onde se reúne com os visitantes; a sala redonda, de teto altíssimo, onde dá conferências de imprensa, em que os jornalistas ficam em círculo junto à parede, a uns quinze passos da secretária em que ele se senta.
Como pode ser normal, humano, um homem que aceita viver neste cenário aterrador, rodeado de uma grandiosidade gelada?
Putin já não é bem real – parece mais um morto-vivo a habitar num panteão.
Putin perdeu a alma. Pode ordenar sem pestanejar as maiores atrocidades.
É o político mais perigoso desde o suicídio de Hitler, há 77 anos.
Aquilo que o motiva é a reconstituição do império soviético.
Mostrar ao mundo que a Rússia não se conforma com a irrelevância em que caiu depois da implosão da URSS e quer voltar a ser uma superpotência.
Tendo dito em 2005 que «o colapso da União Soviética foi o maior desastre geopolítico do século XX», Vladimir Putin, acha que o seu destino é refazer o antigo império.
Sente-se na linhagem direta de ‘grandes homens’ como Pedro, o Grande ou Estaline.
E, tal como Hitler usou a humilhação da Alemanha no Tratado de Versalhes como ponto de partida para o início da 2.ª guerra mundial, Putin aproveitou a humilhação da Rússia pelo Ocidente após a queda da União Soviética para se lançar na guerra contra a Ucrânia.
Tal como Hitler invocou a necessidade de proteger as populações que falavam alemão fora da Alemanha para invadir outros povos, Putin disse querer salvar do ‘genocídio’ os grupos que na Ucrânia falam russo.
As justificações de um e de outro para desencadear a guerra foram as mesmas.
Antes da invasão da Ucrânia, Putin já tinha vindo a abocanhar vários pequenos territórios da ex-URSS. Este é apenas mais um passo nesse caminho.
Mas pode revelar-se um passo demasiado arriscado.
Por duas razões: porque a Rússia ficou muito mais isolada no mundo e porque Putin perdeu por completo a credibilidade.
A Rússia vai ficar em boa parte entregue a si própria, sem relações com uma importante área do planeta, sem poder negociar com grandes regiões económicas como a Europa e a América. Ora, a Rússia é hoje muito mais dependente das relações com o exterior do que era no tempo da antiga União Soviética – e por isso vai sofrer muitíssimo mais.
Por outro lado, Putin, que já se sabia ser impiedoso, revelou-se também um mentiroso compulsivo. Ainda uma semana antes da invasão dizia que essa hipótese era o produto da imaginação delirante dos líderes ocidentais. A partir daqui ninguém confiará na sua palavra: nem os inimigos nem mesmo os amigos. O que ele disser será irrelevante. Pode ter-se medo dele, mas será impossível ter confiança nele.
O isolamento da Rússia e a total perda de credibilidade do seu líder não deixarão de ter consequências externas e internas.
Mais tarde ou mais cedo, na corte do Kremlin, começarão a afiar-se os punhais.
Os grandes empreendimentos acarretam grandes riscos.
Podemos estar perante um deles.
Não é improvável que a invasão da Ucrânia tenha sido o início do fim de Vladimir Putin.