Se a invasão russa estacou no norte da Ucrânia, por agora, com o Kremlin a optar por cercar Kiev e Kharkiv, tentando fazê-las ceder sob o peso da fome, falta de munições e bombardeamentos, de maneira a evitar o caos do combate urbano, no sul o avanço tem sido muito mais rápido.
Mariupol, crucial para controlar o mar de Azov, tem sido devastada por artilharia, bombardeamentos aéreos e mísseis, tendo os russos até cortado a água e a eletricidade da cidade, deixando civis a desesperar. Kherson, onde desagua o Dniepre, o rio que divide o país ao meio, já foi tomada, e Odessa espera uma ofensiva a qualquer momento, após ter ser avistada uma frota de guerra rumo à cidade, deixando os ucranianos em risco de perder qualquer acesso ao mar Negro. Ou até que os russos subam pelo rio Dniepre, a partir de Kherson, impedindo que apoio vindo do oeste da Ucrânia – incluindo remessas de armamento enviadas pela NATO, sobretudo através da fronteira da Polónia – chegue ao leste, onde decorre o grosso dos combates.
O certo é que as forças russas «vão fazer os possíveis e os impossíveis para impedir reforços» ao leste da Ucrânia, garante Carlos Branco, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-NOVA), major general do exército na reserva, ao Nascer do SOL. É sobretudo no leste que vivem os ucranianos russófonos, em prol das quais Vladimir Putin justificou estar a invadir o país vizinho e seria aqui que poderia esperar menos resistência da população no caso de uma ocupação.
Não que esse seja o cenário com que se deparou, tendo as suas tropas encontrado uma dura resistência em Kharkiv, a segunda cidade da Ucrânia, russófona e próxima da fronteira. A ofensiva de Putin teve o condão de sarar, pelo menos temporariamente, as profundas fraturas entre as várias fações ucranianas. E até Ihor Terekhov, presidente da Câmara de Kharkiv, dirigente de um partido conotado como sendo pró-Rússia, tem recusado render-se, mesmo com a sua cidade cercada.
«O propósito do inimigo é semear o pânico e o horror. Mas Kharkiv está de pé e ficará de pé», declarou Terekhov, resoluto, perante as câmaras da Ukraina 24, quando Kharkiv já era alvo de fortes bombardeamentos, obrigando a população a esconder-se em caves e abrigos, aterrorizada. É difícil imaginar que o esqueçam tão cedo, que se decidam a receber o invasor de braços abertos como Putin parecia esperar, mesmo falando a mesma língua.
«Ser falante de russo, ser até amante da cultura russa não implica que se queira negar a cidadania ucraniana ou que se seja pró-Putin», explica Bernardo Teles Fazendeiro, professor de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigador no Centro de Estudos Sociais (CES), especializado no mundo pós-soviético, ao Nascer do SOL.
«Perante a forma como os nacionalistas russos ou ucranianos apresentam a questão, parece que só se pode ser um ou outro. Mas na prática não é assim, nem tem que ser assim», continua Fazendeiro. «Claro que, à partida, a esperança de Putin era conseguir uma vitória rápida em Kharkiv, que devido a essa empatia com a Rússia conseguisse apoio ali, o que não tem acontecido».
Contudo, enfrentar resistência em Kharkiv só parece ter acicatado as forças russas, que escalaram os bombardeamentos ao longo desta semana, sendo acusadas de atingir bairros residenciais, sem quaisquer alvos militares. A Amnistia Internacional até anunciou ter indícios que têm disparado indiscriminadamente bombas de fragmentação, ou seja, bombas que soltam fragmentos explosivos. Foram recorrentemente usadas pelas forças russas durante a sua intervenção militar na Síria, em apoio do regime de Bashar Al Assad, causando impactos catastróficos entre a população civil.
Pelo meio, foram atingidos ícones de Kharkiv, como a Praça da Liberdade, o local das celebrações do Dia da Vitória, que marca a vitória da União Soviética sobre a Alemanha nazi, onde milhares de manifestantes pró-Rússia declaram a independência de Kharkiv, em 2014, durante a Revolução Euromaidan, após tiroteios com manifestantes pró-Europa.
Ou a Universidade Nacional de Kharkiv, a mais antiga do império russo, que acabou devorada pelas chamas após ser atingida por um míssil. «Putin está agora a destruir o ‘mundo russo’ que reivindica defender», comentou o repórter Leonid Ragozin, no Twitter.
Coragem e horror urbano
Já em Kiev, teme-se a chegada de uma serpenteante coluna de veículos blindados russos, estendendo-se ao longo de uns 65 km, que veio da Bielorrússia, na margem oeste do Dniepre, ameaçando fechar o cerco à capital. A confiança dos russos, que não se deram ao trabalho de espaçar os seus veículos, ao contrário do expectável num deslocamento militar, mostram as imagens de satélite, indica que não temem um ataque dos mísseis ou aviação ucraniana. E que as capacidades aéreas destes poderão ter sido de facto praticamente obliteradas no início da invasão, como se gabou o Kremlin.
Ainda assim, os defensores de Kiev mostram-se desafiadores perante a ofensiva russa, montando barricadas, posições defensivas e armadilhas contra tanques nas ruas. Habitantes que se voluntariaram para combater, recebendo uma arma, uniformes de camuflado e meros dias de treino, são colocados nas florestas em redor da capital, cavando trincheiras entre o arvoredo, preparando-se para repelir um assalto.
«Devem faltar poucos dias e temos medo. Mas é a nossa cidade, o nosso país, e temos de lutar», explicou Olga, uma jovem que ensinava os voluntários na floresta a administrar primeiros socorros, a um correspondente da BBC. Quase só conseguiu mostrar como aplicar um torniquete, a si mesmos ou a outros, para evitar esvaírem-se em sangue. «Têm de saber como se salvar e como salvar os seus amigos», disse Olga. «Não temos tempo para mostrar tudo, por isso estamos a mostrar a coisa mais importante».
Mesmo os civis que não se juntem às forças armadas têm sido instados a participar na defesa da capital – as finanças ucranianas até anunciaram que qualquer material de guerra russo de maior valor que civis capturem, como tanques, não tem de ser declarado para propósito de taxação – ao produzir cocktails molotov ou disparando contra os invasores. Se isso terá impacto concreto na defesa de Kiev, é outra questão.
Para Carlos Branco, trata-se de uma péssima ideia. «Colocar um soldado russo profissional contra uma avozinha que nunca deu um tiro e tem uma arma, que se calhar até se assusta quando dispara… Isso pode ter resultados bastante negativos para a população civil», alerta o antigo major general, com longa experiência em teatros de guerra como os Balcãs – onde lidar com civis armados era um desafio recorrente – e no Afeganistão.
«Essas pessoas, a partir de determinada altura, com uma arma na mão transformam-se num combatente», reforça. «E depois quando se encontrar um civil morto não vai haver tempo para se fazer uma análise forense e perceber se tem sinais de pólvora no polegar».
No que toca ao uso de cocktails molotov, uma arma simples, brutal e eficiente, com provas dadas em diversos conflitos, «se houver um grupo determinado de kamikazes, pode perfeitamente fazer estragos», considera Branco. Os blindados russos modernos não são vulneráveis quanto os velhos tanques soviéticos – centenas dos quais foram destruídos por cocktail molotov usados pelos finlandeses na Guerra de Inverno, entre 1939 e 1940 – mas não são impenetráveis a líquido inflamável.
O problema é que os combatentes amadores ucranianos dificilmente terão oportunidade de se aproximar de um blindado russo. «Quando se coloca carros de combate num determinado sítio, têm de ser acompanhados pela infantaria, é uma coisa de armas combinadas. Porque se forem só os carros de combate ficam extremamente vulneráveis», diz o antigo major general.
Depois, irá depender de «quais são as ruas que os russos escolhem para se deslocarem. Têm de ser largas, avenidas», elucida Branco. «Não podem andar em ruas estreitas senão são alvos fáceis. Um individuo chega à janela, atira um cocktail molotov para a zona do motor e aquilo vai à vida». Não é de espantar que os russos estejam a fazer tudo para evitar esse cenário, cercando as cidades e estrangulando a Ucrânia, ao tomar as cidades portuárias do sul.
{relacionados}