O fim da era Putin

A Rússia ficou isolada porque trocou o seu modo de ação característico por imperialismo descarado

Por Bernardo Teles Fazendeiro, Investigador do CES e professor de relações internacionais da Universidade de Coimbra

Uma era chegou ao fim. Os soldados que invadiram os territórios de Donetsk e Lugansk, reconhecidos como independentes por parte de Moscovo, não representaram uma pausa no conflito armado, até então limitado, mas sim um subterfúgio para o início de uma guerra generalizada. Se, até esse momento, Moscovo disfarçara as suas ambições territoriais, pressionando a Ucrânia, enquanto centrava as hostilidades numa parcela de território, tudo mudou na manhã de 24 de fevereiro.

O presidente russo, Vladimir Putin, autorizou nesse dia uma ‘operação’ com o propósito declarado de abolir a existência de uma Ucrânia soberana. Essa decisão russa cortou os laços da suposta fraternidade entre as duas nações e descontinuou, de forma brutal, uma era na política internacional. Muitas das interpretações que negavam a probabilidade de uma invasão de larga escala e, ao invés, previam uma operação contida e localizada, perspetivas nas quais me incluía, tomavam como ponto de partida um modo de agir que deixou de existir a partir daquela data.

Essa era começara em 2000. Putin era eleito, pela primeira vez, para a presidência russa, uma era que, convém ressalvar, não foi isenta de mudança. Dificilmente alguém se mantém igual, muito menos um político, após mais de duas décadas no poder. Assim e para além de alterações de personalidade, não são constantes os assuntos da cena internacional, nem as suas dinâmicas de poder. O Presidente russo adaptou-se às circunstâncias. Variou o discurso e alterou as suas prioridades ao longo desse longo período, durante o qual e até hoje coabitou, por exemplo, com cinco Presidentes dos Estados da América (EUA). 

Não obstante as variações, Putin mantivera um modo de ação relativamente consistente.  Embora essa linha não se revelasse inequivocamente previsível ao longo dos anos (se a intervenção militar russa na Síria foi uma surpresa, em 2015, mais ainda fora a anexação da Crimeia, em 2014), ostentava um desígnio de evitar o isolamento da Rússia e de aumentar a margem de negociação. Buscava maior reconhecimento internacional e também alterar a arquitetura da segurança europeia, principalmente a expansão da NATO e do seu escudo antibalístico defensivo. Revelava-se fundamentalmente oportunista e, ao mesmo tempo, continha, no cenário interno, parte de um eleitorado mais nacionalista, sem comprometer os principais pilares da ordem internacional. 

Através de um discurso contestatário e de operações militares incisivas, Putin pouco a pouco ia abalando a ordem vigente. Questionou primeiro, protestou depois e desde cedo contra a decisão dos EUA em criar um escudo defensivo antibalístico. Mais tarde, em 2008, demonstrou ainda mais a sua determinação. Nesse ano em que o Kosovo declarou independência e em que a NATO previa a adesão possível da Ucrânia e da Geórgia, dois ex-estados da União Soviética justapostos à Rússia, Putin contestou a decisão e materializou a sua objeção. Autorizou uma operação militar na Geórgia, suspendendo efetivamente a expansão da NATO no Cáucaso. 

Em todo o caso, tomou a opção de forma calculada. Apenas permitiu a intervenção, aquando da retaliação da Geórgia na Ossétia do Sul, replicando argumentos avançados pela NATO na sua ação no Kosovo contra a Sérvia, em 1999. E justificou por essa via a suposta ‘intervenção humanitária’ e o reconhecimento da independência das repúblicas separatistas da Abecásia e da Ossétia do Sul. Putin contestou a arquitetura de segurança europeia sem deturpar todas as normas internacionais vigentes, evitando o rótulo de agressor. A própria UE aceitou esses desígnios num relatório publicado em 2009, condenando a dimensão da violência, porém sem pôr em causa os argumentos apresentados pelo presidente russo. Foi a Geórgia e não a Rússia que ficou isolada no espaço transatlântico.

Anos mais tarde e com um discurso cada vez mais caustico em relação à NATO, Putin respondeu desta vez na Ucrânia. Na sequência da fuga do homólogo ucraniano, Viktor Yanukovych, com quem havia renegociado o realinhamento político-económico desse estado, anexa a Crimeia, violando o memorando de Budapeste de 1994, ao mesmo tempo que reivindica a respetiva autodeterminação. Garante assim um fait accompli fruto de um apoio popular interno em relação à recuperação do citado território. Apoia também os separatistas russos de Donbass, intervindo veladamente por forma a evitar o rótulo de invasor. E se isso não fosse suficiente, apesar da violação do direito internacional e da organização de um referendo sem espaço para discussão pública, poucos contestaram o facto de muitos russos, dentro e fora do território, favorecerem uma reunificação da Crimeia.  

Em suma, as ações dessa era buscavam contestar uma arquitetura de segurança, sem que a Rússia ficasse permanentemente isolada. Independentemente das pressões, da má publicidade, da violência e dos assassinatos, a contenção e apropriação calculista de normas globalmente aceites permitia um modus vivendi, que não colocava em causa a totalidade dos argumentos avançados pelo presidente russo, alguns dos quais, eram legítimos face à expansão da NATO. Assim, Putin criou muitos rivais, mas também muitos admiradores, o mais notório dos quais era o anterior Presidente norte-americano, Donald Trump. 

Tudo se subverteu no dia 24 fevereiro de 2022. Nenhuma norma foi respeitada e nenhum evento recente no contexto regional justificava a escalada de violência. Dessa forma, todos os alegados ganhos caíram por terra. Putin não pode contestar a NATO e, ao mesmo tempo, legitimar a sua existência ao provocar uma guerra de larga escala; não pode obter reconhecimento legítimo como superpotência, quando, ao mesmo tempo, compromete todos os princípios da ordem da qual a Rússia faz parte. Mesmo aqueles que viam nessa era um desígnio revisionista necessário, até louvável, por parte de Putin, jamais validarão a política imperial abertamente evocada e aplicada. A Rússia ficou isolada porque trocou o seu modo de ação característico por imperialismo descarado. Uma época esvanece-se na violência tremenda e trágica de cidades destruídas por mísseis e centenas de milhares de pessoas em fuga. A era de Putin terminou.