Num dia de chuva – que não foi de muita dura – discutiu-se a escassez de água em Portugal num encontro organizado pela Ordem dos Engenheiros da Região Norte em Vila Real. Entre as soluções e ideias sobre como enfrentar e combater a escassez de água, houve um tema puxado à liça logo na abertura: a ideia de transvazar águas dos rios do Norte para Sul, recuperada nos últimos tempos por Carlos Mineiro Aires, bastonário da Ordem dos Engenheiros.
A Norte, o cartão é vermelho, desde logo entre os engenheiros. Joaquim Poças Martins, presidente cessante da Ordem dos Engenheiros da Região Norte, falou das soluções tradicionais e emergentes para o problema da escassez de água – da dessalinização e reutilização de águas residuais aos chamados sistemas de abastecimento em alta –, mas vincou a sua relutância em relação ao que já foi chamado de ‘autoestrada de água’, manifestando surpresa que tenha voltado a ser colocado em cima da mesa, o que considerou ‘impensável’.
«Os rios têm de ser rios, têm de chegar ao mar, tem de haver biodiversidade, mas a partir de agora a artificialização terá de ser muito mais cuidadosa do que foi antes», começou por defender, sublinhando que Portugal é um «país mediterrânico em que não chove todos os dias, não chove o suficiente, tem de haver alguma transferência de águas de armazenamento do inverno para o verão, de anos húmidos para os anos secos, mas qualquer obra deste tipo para o futuro terá de ser muito escrutinada, com estudos de impacte ambiental muito rigorosos, tem de se provar que não há alternativas. Só nesses casos é que será possível, de acordo com a legislação vigente, artificializar mais os rios», continuou.
E recuou no tempo: «Nos anos 90, lembro-me de o presidente da Câmara do Porto, Fernando Gomes, ter alertado para um problema grave que se estava avizinhar (escassez de água). Em Espanha, como resolução do problema, preconizava-se – no âmbito de um plano hidrológico, a que alguns chamaram plano hidro-ilógico –, fazer transferências de água gigantes de Norte para o Sul. Estamos a falar de soluções que aconteceram em Portugal e Espanha numa altura em que não havia palavra Ambiente, em que havia ditadura, em que não havia estudos de impacte ambiental», afirmou, lembrando o projeto para colocar o rio Ebro como afluente do Guadalquivir a ‘levar quantidades enormes de água’ para o Sul para alimentar uma agricultura de ‘baixo valor acrescentado’ – uma disputa de rendimentos agrícolas que afloria também sobre a situação nacional e o que deve ou não ser apoiado no futuro.
«Para Portugal era preocupante porque fazer laranja em Espanha de baixo valor acrescentado secava o Tejo e o Guadiana. Felizmente esse plano parou, está a haver adaptação mas ainda há em Espanha reclamações no transvase Tejo-Segura (obra concluída em 1979) pelo impacto social que tem», continuou o engenheiro, para considerar que foi com surpresa que viu ser colocada de novo a possibilidade de transvases do Douro para o Sul até ao Guadiana: «Com toda a abertura, teremos de voltar a falar disso: uma transferência de água deste tipo levaria a que, por exemplo numa situação de crise, alguém tivesse de decidir se se vai regar amendoeira e vinha no Couro, cereja no Fundão ou laranja ou milho no Alentejo. Quem é que vai decidir isso? Coisas deste género levam a grande conflito. Espero que nunca precisemos de tomar esta decisão e penso que os estudos não apontariam nesse sentido».
‘Solução radical’
Se a discussão parece ir no adro (tal como as secas, cada vez mais comuns, e com elas a escassez de água), no encontro Rui Santos, presidente da Câmara Municipal de Vila Real e engenheiro, rebateu igualmente a ideia. «Nesta nova normalidade», começou por dizer o autarca, «temos de encontrar soluções de engenharia ou outras para minimizar os problemas, mas temos de encontrar soluções que não deixem ninguém para trás ou beneficiem uns em detrimento de outros e em alguns casos beneficiem uns prejudicando outros». O risco? Conflitos.
«Podem surgir grandes conflitos até a nível mundial por causa da água: antes desta guerra que começou há dias na Europa dizia-se que uma futura guerra podia surgir pela escassez de água. Espero que nunca venha acontecer», considerando que mais do que soluções «radicais» como a dos transvases, há muitos caminhos a ser explorados antes de chegar aí, do aproveitamento de água da chuva, maior eficiência e criação de novos embalses. Mais: defende que, além de problemas para o ambiente, a ideia de transvazar água de Norte para Sul não seria aceite pela população. «É uma solução do passado e nem consigo perceber como volta a ser equacionada».
‘Menos água nas bacias’
No encontro, José Pimenta Machado, vice-presidente da APA, defendeu que o país nunca esteve tão bem preparado para enfrentar uma seca, mas sublinhou que se está diante de um cenário de escassez de água que vai agravar: «Tivemos o janeiro e fevereiro mais secos de sempre, bateram o recorde».
Pimenta Machado sublinhou que, apesar de haver mais conhecimento, mais informação, mais soluções e mais financiamento, é preciso mudar o chip. «No futuro vamos ter menos água em todas as bacias: esta é a realidade», afirmou, lembrando que 50% dos recursos hídricos portugueses provêm dos rios de Espanha, onde também chove menos. «É para esta realidade que temos de nos preparar e enfrentar».
O responsável da APA insistiu que o consumo humano não pode estar em causa e que o futuro passará por novas origens de água – e a novidade no continente é agora a primeira grande central de dessalinização no Algarve, que deverá estar operacional no final de 2025 e está em estudo para ser submetida a avaliação de impacte ambiental, adiantou.
A estratégia da APA passa também pela reutilização de águas residuais (ApR) e aqui o Algarve será também a charneira a par de um projeto no Parque das Nações: como o Nascer do SOL noticiou, até 2025 estão previstos investimentos no Algarve para se passar de uma reutilização de 1 hectómetro cúbico de água para 8 hectómetros, 10% do volume de águas residuais produzidos na região. «Tudo o que for campos de golfe só usará ApR», apontou.
Pimenta Machado pôs água na fervura: defendeu que primeiro se devem melhorar os sistemas disponíveis, com interligação de barragens como tem sido feito no Alqueva (que vai ser agora ligado a barragem crítica de Monte da Rocha) mas também por exemplo altear e limpar as barragens, para haver mais água disponível. «Antes de entrar em grandes projetos discutíveis temos de melhorar aquilo que temos».