Para familiares, amigos ou vizinhos das tropas russas na Ucrânia, torna-se cada vez mais difícil compreender porque é que estes foram enviados para tão longe de casa, com ordens para combater contra um povo irmão. Não espanta que o Kremlin, cada vez mais frustrado com a resiliência da resistência ucraniana, esteja a acelerar a repressão dos críticos desta guerra, enquanto dá por si isolado internacionalmente (ver texto ao lado).
“Foram enviados como carne para canhão. Porque é que mandaram os rapazes para lá?”, exigiu saber uma russa, furiosa. Confrontava Sergei Tsivilyov, governador de Kemerovo, na distante Sibéria, que discursava no ginásio de uma base militar onde treinavam polícias de intervenção, avançou a Radio Free Europe, vários dos quais acabaram capturados ou mortos na Ucrânia.
Os seus entes queridos, preocupados ou de luto, não hesitaram em expressá-lo. “Mentiram a toda gente, enganaram todos”, continuou a russa, frisando que os combatentes da região tinham ido para a Bielorrússia pensando que seria apenas para participar em exercícios militares.
“Enquanto uma operação militar decorre não devemos tirar quaisquer conclusões, não devemos criticar”, ainda tentou responder o governador siberiano. Então quando, “quando todos morrerem?”, interrompeu outra mulher, ecoando um desespero que se sentirá um pouco por toda a vastidão da Rússia.
O Kremlin tem procurado calar essas vozes dissidentes reprimindo a imprensa, ao aprovar um lei que pune com até 15 anos de prisão quem deliberadamente espalhar fake news – leia-se, notícias que desacreditem as forças armadas russas ou não se baseiem apenas em informação confirmada pelo Governo – e sujeita a multas quem apelar a sanções contra a Rússia.
Como tal, o jornal de investigação Novaya Gazeta, cujo diretor, Dmitry Muratov, recebeu o prémio Nobel da Paz no ano passado, anunciou que teria de tirar do seu site todas as notícias sobre a invasão da Ucrânia, dias após o último canal considerado independente da Rússia, Dozhd, mais conhecido como Rain TV, ser proibido, terminando a sua última emissão com o apelo “não à guerra”. Ficou restrito o acesso a media internacionais como a BBC Russia, a RFE ou o site letão Meduza, enquanto o Twitter e o Facebook enfrentavam limitações e até a Wikipedia era instada a reformular a sua entrada sobre a invasão russa da Ucrânia, a referir-se a esta como uma “operação especial” e a apenas publicar estimativas das baixas russas que se coadunem com os números do Kremlin.
No entanto, talvez tenha sido tarde demais para o regime de Vladimir Putin, tendo em conta que as visualizações do site da BBC Russia mais que triplicaram após a invasão, alcançando mais de dez milhões de pessoas. E à medida que militares russos regressam a casa estropiados ou num caixão, vai-se tornando cada vez mais óbvio que a versão do Kremlin, que se conduz uma mera “operação especial” na Ucrânia, não bate certo com a realidade.
A questão é que mesmo que os números do Kremlin – admitiram ter sofrido 498 baixas e mais de 1500 feridos na primeira semana do conflito, mais que durante toda a crise de 2014, os ucranianos anunciaram ter abatido 11 mil invasores até este domingo, e Washington fala em entre dois a quatro mil russos mortos – sejam corretos ou não, Putin nunca enfrentou uma guerra com perdas a este ritmo. A última vez que os russos enfrentaram tais baixas foi entre 1979 e 1989 durante ocupação do Afeganistão – a Primeira Guerra da Chechénia, que acelerou a queda de Boris Iéltsin, talvez tenha sido comparável, dependendo da estimativa – e ninguém se esquece do papel crucial que isso teve na queda do regime soviético.
Aliás, na Ucrânia até altas patentes russas têm sido abatidas, tendo os ucranianos anunciado ter morto o major-general Vitaly Gerasimov, comandante do 41.º Exército, veterano da Segunda Guerra da Chechénia, da anexação da Crimeia e da intervenção militar na Síria. Terá morrido numa batalha próxima de Kharkiv, “outra indicação de que a invasão da Ucrânia não está a correr como planeado”, considerou Jonathan Beale, correspondente de Defesa na BBC.
“O local normal para estar um general seria a coordenar a batalha a partir de um quartel-general, a alguma distância da linha da frente”, continuou. “Que oficiais russos de tão alta patente se tenham exposto a perigo pode ser um sinal de frustração”.
“É claro que algo dramático está a acontecer”, frisou o almirante James Stavridis, antigo comandante supremo da NATO, ao New York Times. “Se as perdas russas forem tão significativas, Vladimir Putin vai ter algumas explicações difíceis a dar na frente doméstica”.