Se fosse vivo, o arquiteto Manuel Tainha faria amanhã cem anos. Ensinou-me tudo o que sei do ofício de arquiteto. Na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa não se aprendia grande coisa, pelo que, chegado ao 3º ano do curso, procurei começar a trabalhar, em simultâneo, num ateliê de arquitetura.
Telefonei então a um irmão do meu pai, que era engenheiro civil e conhecia vários arquitetos – o meu tio Fernando, que está vivo e ativo –, dando-lhe conta dessa vontade.
– Com quem gostarias de trabalhar? – perguntou-me.
Eu pouco conhecia desse mundo. Não tinha arquitetos na família, não tinha amigos nessa área, alguns dos meus colegas de curso eram filhos ou sobrinhos de arquitetos mas não seria próprio falar com eles sobre este assunto. Assim, um pouco ao acaso, atirei um nome do qual tinha ouvido vagamente falar:
– Manuel Tainha – respondi-lhe.
Passados uns dias, o meu tio telefonou-me. Numa conversa breve, disse-me:
– Na próxima segunda-feira o arquiteto Tainha está à tua espera por volta do meio dia no ateliê dele. É na Rua Viriato, nº 5, 4.º andar. Ao pé do Hotel Sheraton.
Corria o ano de 1969. O edifício, que era Prémio Valmor, não dispunha de elevador, pelo que tinha de subir-se a pé, por uma escada larga de madeira.
Ao chegar ao patamar do 4º andar, dei com um colega que conhecia da Escola de Belas Artes, onde era um dos líderes da luta estudantil. Chamava-se Fernando Bagulho. Disse-me que ia começar a trabalhar precisamente nesse dia com o arquiteto Tainha. E enquanto esperávamos que nos abrissem a porta, o que demorou algum tempo, falámos sobre as eleições legislativas que iam realizar-se proximamente, as primeiras desde a queda de Salazar.
Vivia-se a Primavera marcelista, sobre a qual não alimentávamos grandes esperanças.
A situação de Bagulho era muito diferente da minha. Ele estava um ano à frente de mim na Escola e já tinha experiência de ateliê. Trabalhara com Daciano Costa, um pioneiro do design de mobiliário português, e vinha colaborar com Manuel Tainha no projeto da Pousada de Oliveira do Hospital. Este projeto fora chumbado pessoalmente por Salazar, por o considerar demasiado moderno, e repescado com a subida ao poder de Marcello Caetano.
Ora, não tendo Manuel Tainha grande experiência na área da arquitetura de interiores e design de móveis, o apoio de Fernando Bagulho nessa tarefa seria para ele precioso.
Eu estava nos antípodas. Não tinha a mínima experiência na profissão. O ateliê apresentava-se-me como um mundo novo. Tudo me fascinava, como a uma criança. O cheiro do papel, da borracha e da grafite das lapiseiras, os estiradores com os seus bancos altos, as cópias de ozalide, o trabalho.
Ali vivia-se um ambiente monástico. Cada um estava debruçado sobre o seu estirador, concentrado no seu trabalho, o silêncio era sepulcral. Ainda não existiam computadores e tudo era desenhado à mão – com lapiseiras ou canetas Rotring, e a ajuda de um ‘T’ (uma régua de plástico aparafusada a uma peça de madeira que lhe permitia deslizar para baixo e para cima sobre o tampo do estirador) e de um esquadro.
Mal cheguei, depois de uma breve conversa, Tainha pôs-me a trabalhar num projeto que estava no início – um centro cultural e desportivo para as Minas da Panasqueira, no concelho do Fundão, propriedade da empresa inglesa Beralt, Tin & Wolfram.
Comecei a ler bibliografia. As primeiras consultas que fiz foram sobre piscinas – que me seriam utilíssimas pela vida fora, pois calhar-me-ia projetar várias, mesmo para mim e para amigos: o José António Lima, ex-diretor adjunto do Expresso e do SOL, a Conceição Lino, jornalista da SIC.
No decorrer desse trabalho, fiz várias visitas ao local com Manuel Tainha. E essas viagens de automóvel foram-nos tornando bons amigos. Ele era 26 anos mais velho do que eu, mas sendo ambos ‘livres’ – eu ainda solteiro, ele divorciado – tínhamos muita disponibilidade. Almoçávamos e jantávamos muitas vezes juntos – com frequência no restaurante O Polícia, junto à Gulbenkian, onde se comia boa cozinha portuguesa.
Tainha era um bon vivant. Gostava de boa comida e de um bom vinho, conhecia restaurantes pelo país fora. Fisicamente era um homem alto e forte sem ser propriamente gordo, de cara larga e cabeça grande, tez morena, cabelo encrespado que com o tempo foi ficando todo branco.
Em certa época, depois de jantarmos n’ O Polícia, íamos visitar José Cardoso Piores, de quem Tainha era amigo, e que — tendo regressado de Londres e não dispondo de casa em Lisboa – vivia sozinho num hotel ali perto. Ficávamos horas no quarto dele a conversar. Era ele quem falava todo o tempo, contando histórias do exílio e comparando o que se passava lá fora com o que encontrara cá, no regresso à pátria. Tainha falava pouco, pausadamente.
Como profissional, Manuel Tainha pertencia à 2.ª geração do modernismo, corrente arquitetónica muito ligada ao movimento comunista internacional. Ele também era comunista, embora não fizesse alarde disso. Nunca foi um propagandista e respeitava muito a liberdade de pensamento.
O andar onde se situava o ateliê, com uma área bastante grande, era repartido com outros dois arquitetos da mesma geração: José Rafael Botelho, filho do pintor Carlos Botelho, e António Pinto de Freitas.
Rafael Botelho, urbanista, tinha um único colaborador, Pitum Keil do Amaral, filho de Francisco Keil do Amaral, e Pinto de Freitas trabalhava sozinho, só com a ajuda de um desenhador.
Tainha, pelo contrário, gostava de trabalhar com gente jovem, de ter discípulos, como nos ateliês medievais. Além de mim e de Fernando Bagulho, foi reunindo uma pequena equipa: a mulher de Bagulho, Cristina, Carlos Gil Moreira, Manuel Botelho, filho de Rafael Botelho (que trocaria a arquitetura pelas artes plásticas). Entre todos estabeleceram-se laços muito estreitos de amizade.
Manuel Tainha foi a pessoa que conheci que geria melhor o silêncio. Nunca criticou diretamente o meu trabalho nem o de nenhum dos meus colegas. Passava dias sem falar comigo sobre as tarefas que eu timidamente ia desenvolvendo.
Limitava-se, ao passar, por deitar para a minha prancheta o rabo do olho.
De quando em vez, dignava-se sentar-se ao meu lado – numa daquelas cadeiras altas de estirador – e ficava ali silencioso a olhar para o desenho. Minutos sem fim, meia hora, uma hora. E no fim, com alguma frequência, levantava-se sem dizer nada e ia-se embora. Eu ficava desolado. Percebia que ele não tinha gostado do que vira – e começava a procurar outra solução.
Às vezes, à margem do meu desenho, fazia perspetivas magníficas sobre o que eu tinha desenhado em planta.
Pessoalmente, era um sedutor. Quando o conheci, tinha 47 anos. Dava aulas na Sociedade de Belas-Artes e tinha muitas admiradoras entre as alunas. Uma ou outra aparecia no ateliê a fazer-lhe uma visita e depois iam jantar juntos. Acabou por casar em segundas núpcias com uma ex-aluna, Ana Filipa Amaral Neto, exatamente da minha idade, de quem teria dois filhos. Como já tinha duas filhas do primeiro casamento, ficou com quatro.
Também por lá passava Maria Antónia Palla, mãe de António Costa, que eu julgo ter tido um fraquinho por ele. Maria Antónia tinha ligações ao meio dos arquitetos, mercê do seu casamento com Victor Palla. Outras pessoas passavam por ali, como o pintor Júlio Pereira ou o arquiteto Bartolomeu Costa Cabral, talvez o seu maior amigo, que ainda é vivo. Um homem esguio, alto, bem-parecido, muito educado, parente do Costa Cabral da História, supostamente herdeiro do seu título de conde de Tomar.
Quando fui convidado para a direção do Expresso e lho comuniquei, Tainha disse-me: «Se fosse a si não ia. Pode ser um bom arquiteto e possivelmente não será um bom diretor de jornal».
Durante os primeiros anos no Expresso, continuei a frequentar o ateliê da Rua Viriato. Ia lá uma vez por semana tomar café – um hábito que no ateliê se cumpria religiosamente por volta do meio-dia, com o apoio da sua leal secretária Teresa Vítor. Mas fui espaçando as visitas, o Expresso foi-me absorvendo, até deixar mesmo de ir.
Mas daquela época ficou-me uma recordação muito forte. Tudo o que aprendi do ofício de arquiteto, como disse, foi ali. Tainha foi o meu mestre, E a sua personalidade marcou-me muitíssimo. O seu talento, a sua honestidade, a sua postura tranquila, a gestão que fazia do silêncio constituíram para mim referências para a vida. E as amizades que ali fiz ficaram para sempre: o Fernando Bagulho, a Cristina Bagulho, precocemente falecida, o Carlos Gil Moreira, o Jaime Ortegas.
Foi um tempo doce da minha vida. A mudança para o Expresso seria uma transição para outro mundo, mais agitado, mais frenético, muito menos leal, com uma presença pública incomparavelmente maior mas que nunca me fascinou.