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Perante a tenacidade da resistência ucraniana, as forças russas têm sofrido mais baixas do que seria de esperar. O Kremlin, sabendo que terá de dar explicações na frente doméstica pelos caídos em combate, já procura alternativas – o Presidente Vladimir Putin até deu luz verde à entrada de 16 mil voluntários vindos do Médio Oriente, mais precisamente tropas sírias – e aumenta os bombardeamentos, incluindo contra civis, para tentar vergar os defensores e evitar lançar as tropas russas no combate urbano.
Após uma semana de impasse no norte da Ucrânia, ambos os lados preparam-se para o assalto a Kiev. A tão falada coluna russa que ameaça o noroeste da capital, estendendo-se ao longo de uns 65 km, já está operacioinal, como mostram imagens de satélite da Maxar Technologies, tendo-se dispersado no últimos dias e colocado no que aparecem ser posições de fogo sobre Kiev.
Seria de esperar que o tivessem feito mais rápido, não é comum que tantos veículos militares sejam mantidos tão juntos ao longo de uma estrada, expostos a bombardeamentos aéreos, artilharia e mísseis. Mas as forças russas parecem ter sofrido um engarrafamento devido à má manutenção dos pneus – os camiões militares, com toneladas de equipamento, devem ser deslocados periodicamente para impedir desgaste, e os russos ficaram parados durante meses ao longo da fronteira com a Ucrânia – e ao lamaçal em que se tornam as estradas ucranianas na rasputiza, ou época da lama, como apontam os analistas.
Já os ucranianos mostram-se conscientes de que o assalto à capital está para breve. «Mesmo pessoas que nunca na vida o pensaram fazer, agora estão de uniforme vestido», declarou Vitali Klitschko, antigo boxer e campeão de pesos pesados, hoje presidente da Câmara de Kiev, anunciando que metade dos seus habitantes – sobretudo mulheres, crianças e idosos – já tinha saído da cidade, para tentar diminuir as baixas entre civis.
«Kiev foi transformada em fortaleza. Cada casa, cada edifício, cada posto de controlo foi fortificado», frisou Klitschko, perante câmaras da televisão ucraniana. As ruas estão bloqueadas por barricadas, armadilhas contra tanques – umas barras de metal soldadas que danificam lagartas de tanque, mais conhecidas como ‘ouriços’, feitas de maneira a continuar de pé mesmo que sejam derrubadas por uma explosão – e sacos de areia, dispostos em sucessivas camadas para permitir o recuo dos defensores.
Nas florestas dos arredores da capital foram cavadas trincheiras, onde foram colocados novos voluntários ucranianos, com uma arma na mão e uns poucos dias de treino, mas cheios de vontade de fazer guerrilha na retaguarda dos russos, caso estes consigam penetrar na capital. Contudo, há tantos voluntários que não existem armas para todos – apesar das recorrentes remessas de armamento vindas do Ocidente nos últimos tempos, o equipamento militar recentemente enviado da União Europeia através da Polónia não terá um caminho fácil até Kiev – e os civis têm sido incentivados a combater com o que tiverem à mão, como cocktails molotov.
Não que todos queiram combater. Aliás, não só há receio de que armar civis os torne combatentes aos olhos do invasor, aumentando a escala da atrocidade, como as Nações Unidas vieram pedir que a Ucrânia tenha uma abordagem «compreensiva e humana» com os homens – de momento, aqueles que tenham entre 18 e 60 anos estão proibidos de sair do país – que não queiram combater.
É algo comum entre homens oriundos de outros países, que deram por si apanhados no meio do conflito, como Alexander, nascido na Bielorrússia, crescido na Alemanha e que só recentemente recebeu cidadania ucraniana. «Esta não é a minha guerra», explicou ao Guardian, enquanto dava por si impossibilitado de fugir para a Polónia. «Estou desesperado. Não sou um cobarde, mas não tenho qualquer relação de sangue com a Ucrânia». É fácil compreender o terror. «Tenho uma mulher e um filho, e ela não quer partir sem mim».
Legados de outras guerras
É também dado como certo que, antes de qualquer assalto a Kiev, esta será devastada por bombardeamentos – o facto da coluna no noroeste da cidade se ter disposto em posições de fogo indica isso – aéreos, com artilharia e mísseis, como vemos ocorrer em Mariupol e Kharkiv, que estão cercadas.
A escala de destruição a que Putin está disposto a chegar na Ucrânia, um país que descreve como irmão, é uma incógnita. No entanto, os precedentes das suas forças em combate urbano, arrasando Grosny, durante a II Guerra da Chechénia, ou Alepo, durante a sua intervenção militar na Síria, em apoio do regime Bashar Al-Assad, não são nada animadores.
«O próprio Putin escreveu sobre o significado da Ucrânia na história russa. Estará disposto a destrui-la para a recuperar?», questionou o repórter Jeremy Bowen. O problema é que Putin pode não ter outra opção, com as negociações bloqueadas (ver páginas 10-11) e sem qualquer saída à vista que lhe permit0a manter a face que não a vitória militar. «Irá a santidade dos santuários ortodoxos criar a contenção que esteve ausente nos ataques contra muçulmanos na Chechénia e na Síria?», continuou Bowen, que cobriu ambos os conflitos, na BBC.
O legado destas guerras ficou cada vez mais visível nos últimos dias. As tropas veteranas de Ramazan Kadyrov – um senhor da guerra que Putin pôs a cargo da Chechénia após o assassinato do pai, Akhmad, um guerrilheiro independentista que mudou de lado, ganhando desde então uma reputação como tirano, torturador e estrela do Instagram, descrito por alguns como «o filho que Putin nunca teve» – chegaram ao noroeste de Kiev, contaram fontes militares ucranianas ao Telegraph. Milhares de combatentes da Chechénia – cujas forças especiais são acusadas de estar por trás de uma operação falhada para assassinar Volodymyr Zelensky – juntaram-se a mercenários da Wagner, cruciais na intervenção russa na Síria.
O uso desta forças «indica que as forças armadas russas estão a ter dificuldade em conseguir reunir suficiente poder de combate neste eixo a partir das unidades militares convencionais disponíveis», apontou um relatório do Institute for the Study of War. Aliás, os russos até têm mostrado dificuldade em completar o cerco de Kiev, algo que seria esperado antes de qualquer operação urbana, de maneira a negar reforços aos invasores e dispersar as suas forças, e levaram a cabo massacres civis – como em Irpin, perto da capital, abrindo fogo de morteiro contra refugiados (ver infografia) – que podem indicar um grau de frustração. «As baixas registadas entre forças mecanizadas e aéreas nos arredores da região noroeste de Kiev têm sido muito altas, e vários relatos sugerem que a moral e eficiência de combate são baixas».
Já Putin tenta refrescar as suas forçascom a injeção de combatentes do Médio Oriente, com toda a probabilidade veteranos sírios. Durante uma reunião do seu conselho de segurança, esta sexta-feira, o ministro da Defesa, Sergei Shoigu, assegurou ter 16 mil voluntários oriundos do Médio Oriente à sua disposição, avançou a Reuters. «Se vires que estas são pessoas que querem vir de sua livre vontade, não por dinheiro, para ajudar as pessoas que vivem em Donbass, então temos de dar-lhes o que querem e ajudá-los a chegar à zona de conflito», retorquiu Putin.
O receio é que não sejam apenas combatentes a ser importados da Síria – ou que estes tenham ainda menos consideração pelos civis ucranianos que os russos – mas também o género de crimes de guerra cometidos por Assad. Aliás, na guerra da Ucrânia já temos ouvido relatos que trazem à memória Alepo, como do uso de bombas de vácuo – que produzem uma pressão tão intensa que suga o ar dos pulmões dos defensores, ideais para atingir bunkers – ou bombas de fragmentação.
Entretanto, as autoridades britânicas – que se tinham desdobrado em alertas sobre uma iminente invasão russa, vistos como alarmistas por muitos analistas até se confirmarem – avisaram que o Kremlin lançou uma campanha de desinformação sobre o suposto uso de armas químicas pelos ucranianos, que poderia servir como justificação para o eventual uso russo dessas armas proibidas.
«O uso de armas químicas em qualquer teatro de guerra, certamente num onde há imensos civis, é totalmente inaceitável», frisou Chris Philp, o ministro da Informação britânico, à Sky News, esta sexta-feira, garantindo que tal cenário iria «espoletar uma resposta ampliada do Ocidente».