Certo dia, em Gyantzé, um grupo de tibetanos assistiu com entusiasmo a um jogo de futebol entre ingleses e indianos, nas traseiras da British Trade Agency. O gosto ficou. Sobretudo quando, em 1913, os britânicos estabeleceram um campo de treino militar em Lhasa, na capital. Gyantzé fica a 3.977 metros de altitude, no vale de Nyang Chu, centro do cruzamento de velhos caminhos que conduziam a Chigatzé, Yatum, e à província indiana do Sikkim. Estive no Tibete há mais de trinta anos. Não vou voltar. Na ânsia de matar de vez a cultura tibetana, o governos chinês transformou o antigo Reino do Tibete num centro turístico que perdeu toda a identidade.
Gyantzé: a cidade mais tibetana do Tibete, diziam os livros. Era, pelo menos, aquela em que ainda não cresciam a esmo os geométricos bairros chineses e onde o caos das caravanas tomava conta alegremente das ruas de terra batida. No fim da cidade fica o bloco imponente do Kumbum, com a sua stupa encimada a ouro, e o mosteiro de Pelkor Chöde, que foi no seu tempo um complexo enorme de mosteiros e não passa hoje de um grupo bisonho de edifícios abandonados. Pela rua larga que leva ao dzong, o forte, há gente que se junta à porta das lojas de ferragens e de utensílios de madeira e de plástico.
Lá do alto das muralhas, a vista abrange a verdura do vale até ao contraforte acinzentado das montanhas. Sobre um molho de pedras, as tarjor, as bandeiras das orações, levam recados aos espíritos. Notícias curtas da vida cá em baixo. Foram jesuítas os primeiros ocidentais a chegar a Tibete. Hugues Didier, historiador francês, chamou-lhe ‘O Último Destino dos Descobrimentos’ no seu livro Les Portugais au Tibet. António de Andrade foi o primeiro europeu a estabelecer-se no antigo reino de Gu-ge (Tibete Ocidental). Andrade chegou a Tsaparang, junto à fronteira da Índia, não muito longe de Dharamsala, o lugar para onde fugiu, e vive desde então, o 14.º Dalai-Lama após a invasão chinesa de 1959.
Passaram-se séculos. Em 2001, sob autorização do Kashag, essa espécie de governo tibetano no exílio indiano de Dharamsala, onde se instalou a diáspora, foi criada a Federação de Futebol do Tibete, presidida por Jetsun Pema, a irmã do Dalai Lama, obviamente não reconhecida pela China e impossibilitada de se inscrever na FIFA. Clubes surgiram como cogumelos em Lhasa durante os anos 50, mesmo depois da invasão do território pela República Popular da China – Lhasa, Potala, Drapchi, Bodyguard Regiment, Kham. Disputavam jogos entre si ou contra grupos de militares instalados na zona. Depois veio o ano de 1966, e a Revolução Cultural de Mao Tsé Tung. O futebol foi proibido. O Estádio Nacional de Kham foi destruído. Os adeptos deixaram de ter voz.
No exílio
Foi um dinamarquês, Michael Nybrandt, que depois de ter percorrido o Tibete durante meses, no ano de 1997, que decidiu que a seleção do Tibete deveria ter uma vida própria. Em Dharamsala fundou a TNFA (Tibetan National Football Association) e conseguiu juntar um grupo de indefetíveis jogadores com ganas para formar uma equipa representativa de um Tibete independente. Daí para cá, a equipa nacional tibetana, com o apoio de algumas marcas de material desportivo, como a Hummels, tem vindo a disputar jogos contra equipas e seleções de outros países.
A estreia deu-se em Itália, em Bolonha, em junho de 1999. A convite do Dínamo Rock, uma seleção de músicos de rock que se dispuseram a recolher donativos para o grupo de Aldeias de Crianças Tibetanas, zonas que albergam garotos que a diáspora deixou órfãos. O encontrou marcou a história atual do futebol do Tibete, tal como jogo entre ingleses e indianos tinha mudado nos anos 10 do século passado. Muitos jovens sentiram pela primeira vez o orgulho de poderem vestir a camisola do seu país, e de impor a sua rebeldia perante o invasor chinês.
Por influência de Michael Nybrandt, o Tibete deslocou-se, em seguida, à Dinamarca para disputar um verdadeiro encontro internacional, contra a Gronelândia, no estádio do Vanlose, em Copenhaga. Apesar da alegria posta em campo, a derrota foi inevitável e pouco surpreendente: 1-4.
Entretanto, em Lhasa, fazendo frente a todas as contrariedade, os tibetanos conseguiram fundar um clube profissional, o Lhasa Chengtou, que se candidatou a participar nas competições chinesas. Dois anos após a sua fundação, em 2019, disputando a China League II (correspondente à IIIDivisão), os seus dirigentes resolveram abandonar a prova. Impedido de jogar em Lhasa (a FIFA proibiu jogos a mais de 3000 metros de altitude) o Chengtou foi empurrado para as cidades chinesas de Huizhou (a 2500 quilómetros da capital tibetana) e de Deyan (1300 km de distância). Justificação: os jogadores tinham de utilizar bombas de oxigénio a cada 15 minutos. Lhasa fica 3650 metros de altitude. Acima das nuvens de qualquer futebol.