“O convívio com as peças acaba por tornar-se uma amizade”

Ao princípio, a pintura antiga parecia-lhes algo distante e inacessível. Aos poucos, perceberam que algumas obras não tinham casa. Hoje a sua coleção inclui quadros de Álvaro Pires de Évora, Josefa d’Óbidos e José Malhoa, mas também de mestres italianos, flamengos e espanhóis.

Maria é teóloga, João é economista – mas já passou pelo jornalismo, pela banca e pela agricultura. Têm oito filhos e uma coleção de arte de mestres antigos que recentemente começou a ser revelada ao país através do projeto ‘O Belo, a Sedução e a Partilha’, uma parceria entre o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) e a Fundação Gaudium Magnum – Coleção Maria e João Cortez de Lobão, a que o casal preside. No âmbito desta iniciativa, o MNAA expõe, até dia 10 de abril, a tela O Martírio de S. João Damasceno, pintada c. 1645-50 por Luigi Miradori, dito Il Genovesino (1605 -1656). Viram o quadro pela primeira vez na TEFAF, a grande feira de arte e antiguidades de Maastricht, e apaixonaram-se. Como tudo o que adquirem, tem a ver com o «gosto pessoal», admite Maria Cortez de Lobão. «Um museu tem obrigações, tem de representar certas escolas. Os colecionadores não. O grande critério é eles apaixonarem-se por uma peça».

A vossa coleção tem algum núcleo inicial, uma herança, por exemplo? Como começou?

MCL: Começámos por nos interessar por pintura portuguesa, e aquisição da Josefa [d’Óbidos] foi um grande momento. Como todos os jovens casais, quando casamos temos as paredes vazias, um colchão no chão. Mas tínhamos gosto, sempre fomos a exposições, a museus. Na altura tudo o que era pintura antiga parecia uma coisa completamente distante e….

Inalcançável?

MCL: Ao princípio até nos virávamos mais para os artistas contemporâneos. Mas depois ao irmos a museus, a galerias, a exposições, a antiquários, começamos a perceber que afinal algumas coisas não têm casa.

Muita gente tem quadros na parede. Mas outra coisa é quando se começa a ter uma coleção.

MCL Quando começa a não haver paredes! [risos] A certa altura é mesmo isso, não há onde pôr, mas pensamos: deixamos passar a oportunidade ou não? E, à medida que percorremos a trajetória, vamos crescendo com aquilo que compramos, vamos aprendendo. O convívio com as peças torna-se uma amizade. Mais que tudo tem a ver com o nosso gosto pessoal, porque um museu tem obrigações, tem de representar certas escolas, etc. Os colecionadores não. O grande critério é eles apaixonarem-se por uma peça. Isso é que constitui o fio condutor. Às vezes as pessoas perguntam: ‘Vocês compraram aquilo e agora compraram isto? Não tem nada a ver uma coisa com a outra’. Se calhar para nós tem.

Porque escolheram os mestres antigos?

MCL: Não é que não gostemos de outras épocas, mas os mestres antigos já passaram o crivo de algumas modas. E isso consola-nos. Modas haverá sempre, mas estas são soluções já passaram o crivo do tempo.

E andam à procura ou as coisas vêm ter convosco?

JCL: É muito os dois sentidos. O setor não é muito grande, as pessoas mais ou menos vão-se conhecendo. E quando aparece uma peça que sabem que nos pode interessar, telefonam-nos. Outras vezes somos nós que andamos à procura de uma peça, de um autor, de uma cena ou de uma personagem com a qual temos alguma afinidade. É uma estrada de dois sentidos. Estou-me a lembrar, por exemplo, do Álvaro Pires de Évora que temos, que é muitíssimo bonito. Foi alguém que nos telefonou de Nova Iorque a dizer: ‘Há um colecionador que vai vender esta peça, sei que vocês gostam muito deste pintor. Querem que vos ponha em contacto?’. E nasceu assim a ligação.

Neste momento têm a coleção espalhada por vários sítios. Onde estão as obras? Em casas de amigos, em armazéns, em galerias?

JCL: Temos umas peças emprestadas a museus internacionais, temos outras peças guardadas em armazéns especiais vocacionados para isso, em Inglaterra, em Nova Iorque ou em Portugal. A nossa vontade era ter tudo em nossa casa mas não há possibilidade, por isso temos o sonho de um dia poder juntar tudo isso num espaço em Lisboa, e partilhar a paixão que fomos tendo ao longo deste percurso.

Esta parceria com o Museu de Arte Antiga chama-se ‘O Belo, a Sedução e a Partilha’. Já percebemos como é importante para vocês sentirem-se seduzidos. Gostava que me dessem um exemplo de um desses encontros que vos tenha entusiasmado e que tenha resultado na aquisição.

MCL: Esta pintura que está agora no Museu de Arte Antiga vimo-la em Maastricht, na TEFAF. Normalmente vamos vários dias e ficamos sobretudo dedicados a mestres antigos, embora haja de tudo – arte contemporânea, joalharia, arte africana, o que seja. A grande vantagem da TEFAF é que tudo é vistoriado antes por peritos, portanto se há qualquer sombra de dúvida sobre a proveniência ou a qualidade ou a autoria isso está refletido. Não há enganos, aquilo que se vê é aquilo que é. E vêm galeristas, colecionadores e representantes de museus de toda a parte do mundo, e as pessoas conhecem-se e conversam. Porque quando se gosta muito de uma coisa, não entendemos os outros que também gostam como concorrentes ou competidores, entendemo-los como companheiros de viagem no fascínio.

JCL Há o exemplo da Vigée [Le Brun]. Passávamos por ela em Nova Iorque, não conseguíamos ficar-lhe indiferentes, e hoje está cá em casa. Pusemo-la ao lado de uma pintura do José Malhoa de uma senhora muito velhinha. É um bocadinho a conversa do tempo: a velhinha a fiar, e ela muito nova, muito senhora de si.

MCL: A Elisabeth-Louise Vigée-Le Brun era casada com um pintor [Jean-Baptiste-Pierre Le Brun], e era através do marido que ela vendia e expunha. Foi a pintora oficial da Rainha Maria Antonieta. Todos os quadros que se conhecem da Maria Antonieta, à exceção de um ou dois, são da autoria dela. E ela de facto era uma grande pintora. Curiosamente, o quadro com que se apresentou à exposição que a iria consagrar teve de ser retirado, porque ela pintou a Rainha com um vestido branco, e isso foi considerado indigno. Foi um escândalo brutal. Mas era uma grande pintora, que sabia que pintava muito bem, ainda por cima uma bonita mulher, que tinha confiança em si própria , e este autorretrato, que está na moldura que ela escolheu, mostra tudo isso: ‘Sou uma grande artista, sou uma bonita mulher, não devo nada a ninguém’. Mas tem um olhar tão perçant [penetrante]… Sabe aquelas pessoas que olham de uma maneira que a gente tem de virar a cara? [risos]

JCL: Nesse autorretrato ela está vestida de pintora, meia despenteada, mas muito bem na sua própria pele.

Esse é, portanto, um daqueles quadros que querem ter sempre por perto?

JCL: Rodamos periodicamente, a dificuldade é deixá-los sair porque temos saudades deles. No meio destas coisas também há grandes frustrações. Às vezes encontramos quadros pelos quais nos apaixonamos e depois desaparecem porque alguém os comprou. É a vida. Seguiram para outros destinos e andamos a perguntar se alguém sabe onde está, porque criámos alguma relação.

O João vive entre Lisboa e Londres, não é?

JCL: Vivo muito entre Lisboa e Londres, tirando o período de covid, que ou ficava lá mais em Londres ou ficava cá mais em Lisboa. Três meses seguidos ou às vezes mais.

A profissão em Londres, a produção de azeite no Alentejo, a coleção de arte… Estava quase a imaginá-lo como um malabarista a manter várias bolas no ar em simultâneo e a tentar não deixar cair nenhuma.

JCL: Em Londres sou acionista mas já não sou executivo na empresa e na empresa dos azeites, que funciona lindamente, já não sou administrador. Ainda hoje um colega dizia-me: ‘Hoje há lugares para todos: há o CEO, o CFO, o CMO. Tu és o CIO, o Chief Inspirational Officer, o que inspira’. [risos ] No dia-a-dia verifico se os critérios de investimento estão a ser cumpridos, mas não falo com clientes, corretores ou bancos. 80% da minha energia – e da Maria também, cada vez mais – vai para a fundação. A fundação tem um caminho a percorrer e nós chegámos aos 60 anos e a ideia era a partir dos 60 anos fazer disto uma prioridade.

Dedicarem-se a uma coisa que vos dá prazer?

JCL: A organizar tudo o que tínhamos numa instituição. As coisas estavam de certa maneira dispersas, porque Old Masters sempre tivemos alguma coisa, fizemos este percurso já há uma série de anos, a parte da educação, da cultura e da investigação também existia. Agora fomos pondo tudo aquilo que fazíamos de uma maneira dispersa numa unidade.

MCL: O João antecipou aquilo que a geração dos nossos filhos faz com grande naturalidade, que é mudar de vida profissional, porque começou por ser jornalista, depois esteve na banca, depois foi para a agricultura e agora está aqui.

Noutros países será diferente, em Portugal ainda não estamos muito habituados a ver a agricultura associada à arte e ao colecionismo.

JCL: Tudo se liga. Há um fio condutor que, quando olhamos para trás, começamos a unir os pontos e a ver que as coisas fazem sentido. Na altura não me passava pela cabeça ser agricultor, mas às vezes as oportunidades aparecem e só depois percebemos como foram importantes na nossa vida. Era uma propriedade agrícola da família que precisava de ser toda renovada e achei um desafio engraçadíssimo para uma pessoa que veio de fora e que gosta de construir coisas novas. Escolhi uma coisa que não havia cá em Portugal, que foi fazer plantações em linha, para facilitar a apanha, como se fosse uma vindima. Toda a gente dizia que era um bocadinho louco – e provavelmente, mas felizmente correu bem. Hoje toda a gente faz olival assim. Evidentemente as técnicas foram-se apurando – em Portugal o setor mudou mais nestes 20 anos do que nos dois séculos anteriores. Mas nunca estive só. Na altura pai era de seis para sete filhos, não podia deixar a banca, onde estava, e meter-me nesta aventura sem sentir que tinha uma pessoa ao meu lado que me acompanhava. Foi um percurso muito giro e não podemos esquecer que a agricultura também tem a palavra cultura lá dentro, por isso não é assim tão estranho estarem ligados.

O olival intensivo não tem boa fama em Portugal.

JCL: Passámos de heróis a vilões porque quiseram utilizar-nos como arma de ideologia política. Chama-se intensivo porque tem muitas plantas. Mas não tem mais produtos [químicos] e leva menos água, porque com o sistema gota a gota só se põe a água necessária, é toda aproveitada. O olival gasta muito menos água que o amendoal, que a vinha, que qualquer outra cultura. Nós que somos os donos da terra – a herdade está há 200 anos na família – não temos outra preocupação se não passar a terra para a próxima geração em iguais ou melhores condições do que a recebemos. Estas terras já foram tudo: já foram mato, vinha e no século XX foram muito utilizadas para cereais, até com DDT, que é uma coisa completamente proibida e que acabou com uma série de espécies. Na Herdade Maria da Guarda praticamente tinham desaparecido os cágados, que é um animal que está nestas terras há milhões de anos. Agora voltou a aparecer. Estamos carregados de javalis, que antes não havia quase, cegonhas não acabam mais. A água trouxe a biodiversidade, contra o que havia antigamente, que era tudo cereais, cereais, cereais, cerais, sequeiro, sequeiro, sequeiro. As primeiras campanhas eleitorais que iam lá para Serpa diziam: ‘Cuidado com estes empresários agrícolas que estão a fazer plantações intensivas porque querem fazer tudo mecanizado, querem despedir toda a gente’. Depois deixaram de falar nisso porque afinal estava a criar imenso emprego. Aliás há falta de casas em Serpa porque está a chegar muita gente nova. Depois, isto utiliza imensa tecnologia, matemática, drones, informática de gestão de recursos, de regas, é emprego qualificado. E fui dos primeiros a pôr tratoristas mulheres. Os tratores já não são desconfortáveis, têm ar condicionado, têm música…

MCL: Direção assistida, suspensão… Pusemos um sistema altamente inovador: através do um tablet o tratorista consegue identificar os problemas que possa haver. Claro que todos estes percursos de vida são feitos a dois. E por isso quisemos que na fundação ficássemos os dois co-presidentes. Os dois sonhámos isto, os dois empenhamo-nos nisto, não há um que vem primeiro e o outro vem depois. É uma parceria. Vamo-nos apoiando na ousadia, até porque quando um começa a achar que temos de abrandar, o outro puxa por ele. Estamos sempre a desafiar-nos um ao outro.

JCL: Às vezes perguntam-nos como é que uma teóloga se dá bem com um economista. Costumamos responder que é muito fácil. O primeiro grande economista era um teólogo, Adam Smith, que passeou pelas várias nações levando um nobre, a quem tinha a obrigação de formar, e no fim escreveu A Riqueza das Nações. Criar não fica completo se não houver a distribuição. E voltamos à ideia da partilha, que está no nome desta iniciativa.

MCL: Este percurso é ao mesmo tempo muito profundo e ao mesmo tempo muito simples. Quando se tem uma família mais numerosa a partilha faz parte do dia a dia e experimentamos que as dificuldades e as tristezas são divididas por todos, e portanto mais fáceis de levar, e as alegrias multiplicam-se por todos, portanto vivem-se com muito mais intensidade.

E estão sempre de acordo?

JCL: Não estamos necessariamente sempre de acordo, mas chegamos sempre a um acordo final. A mesma obra não nos transmite as mesmas emoções, a começar porque um homem e uma mulher muitas vezes sobre a mesma realidade têm percepções muito diferentes. Mas isso obriga-nos a falar muito sobre uma peça e a ver o que nos transmitiu, ou o que nos custou, o que foi penoso. Estou-me a lembrar de uma ou duas que me chocaram negativamente, foram demasiado fortes para a minha sensibilidade, e a Maria gostou exatamente por causa dessa força.

Às vezes um de vocês tem de convencer o outro?

JCL: Não é uma questão convencer. É sentirmos se acabamos os dois…

MCL: … no mesmo comprimento de onda.

JCL: Não é aquela história do casal: ‘Ganhei eu desta vez, da próxima ganhas tu’, não tem nada a ver com isso. É chegar ao mesmo comprimento de onda. Não é obrigatório que cheguemos sempre, e às vezes não chegamos. Mas lembro-me desse caso em que partimos de posições completamente diferentes e ao fim de algumas semanas estávamos a compreender porque é que aquela história era importante para nós.

Têm algum horizonte para reunir a vossa coleção e mostrá-la?

JCL: É uma questão de encontrarmos um espaço que permitisse acomodar a coleção. Temos falado com algumas autoridades.

É uma coleção à procura de casa?

MCL: [risos] Parece a peça do Pirandello, Seis Personagens à Procura de um Autor. É quase isso.