Chama-se Marina Ovsyannikova, vive em Moscovo, nas redes sociais diz-se adepta de fitness e de natação de águas abertas, uma mãe feliz apaixonada por golden retrievers. Nos últimos dias, tornou-se um dos rostos da oposição à investida russa na Ucrânia, arriscando um preço elevado: na segunda-feira, a jornalista do Channel One, canal televisivo russo, colocou-se atrás da pivô de um dos blocos noticiosos com um cartaz com a expressão “No War” (não à guerra), palavra proibida pelo Kremlin. Em russo, uma mensagem direta à audiência: “Não acreditem em propaganda. Estão a mentir-vos”.
Num vídeo gravado, e depois divulgado, Marina apelava ao fim da guerra, dizendo ser filha de pai ucraniano e mãe russa e mostrando-se envergonhada por ter contribuído para a “zombificação do povo russo”. Após um interrogatório de 14 horas, foi libertada com uma multa de 30 mil rublos (257 euros) por incitar à participação numa manifestação não autorizada, o que ainda não terá a ver com os recentes acontecimentos.
No Telegram, plataforma que tem vindo a ganhar peso na guerra entre Ucrânia e Rússia perante as limitações em redes como o Instagram e Facebook, surgiram diferentes grupos em seu nome, com as imagens da libertação a serem difundidas e mensagens de solidariedade a cair.
Segundo a informação avançada durante o dia de ontem num dos seus canais, Marina Ovsyannikova enfrenta agora a acusação de disseminar deliberadamente informação sobre as Forças Armadas russas, crime que pode ser punido com uma pena de prisão até 15 anos de acordo com a revisão aprovada na semana passada no código criminal do país contra as chamadas “fake news”. No mesmo grupo, apelava-se ontem ao final do dia à mobilização e apoio de organizações internacionais de direitos humanos.
E o certo é que o protesto de Marina, e a sua ampla difusão no Ocidente mas desde logo na Rússia, expôs “brechas” na mensagem do Kremlin, assinalava ontem a BBC. “Cinco segundos de verdade podem lavar a sujidade de semanas de propaganda”, comentou no Twitter ainda na segunda-feira à noite Lev Shlosberg, deputado de Pskov da oposição.
“Aqueles cinco segundos serão um remorso moral para todos aqueles que podem falar verdade, mas acobardam-se e justificam a sua cobardia”.
Ontem, Shlosberg publicou no Twitter uma frase de George Orwell: “Toda a propaganda de guerra, toda a gritaria, as mentiras e o ódio, vêm invariavelmente de pessoas que não estão a lutar” e, mais tarde, a imagem de uma mulher detida por erguer um cartaz com o mandamento “não matarás” junto à Catedral de Cristo Salvador em Moscovo.
Segundo a plataforma de direitos humanos OVD, que monitoriza as detenções na Rússia, desde o início da invasão a 24 de fevereiro já foram detidas 14 963 pessoas em protestos anti-guerra.
De acordo com a BBC, os colegas de Marina no Channel 1 mostraram-se surpreendidos com a posição da colega, que não falava de política, mais sobre a vida familiar, os dois filhos e os cães. No Telegram circulava ontem no entanto outra versão, de que parte dos colegas ter-se-ia demitido. Antes de Marina, Lilia Gildeyeva, pivô russa do canal NTV, detido pela Gazprom, anunciou também a demissão após ter fugido do país.
Primeiro capítulo na justiça internacional O Kremlin descreveu os atos de Marina como hooliganismo, num dia marcado por novos bombardeamentos mas uma aparente estabilização na ofensiva russa. Ao todo, diz a Ucrânia, 20 mil pessoas conseguiram sair de Mariupol através do corredor humanitário acordado com Kiev. As negociações decorrem com sinais contraditórios e o combate vivido com a mesma intensidade que a resistência.
A Rússia anunciou que decidiu retirar-se do Conselho da Europa, órgão de defesa dos direitos humanos com sede em Estrasburgo, onde já estava suspensa desde 25 de fevereiro.
Para esta quarta-feira à tarde está marcado um primeiro capítulo no que poderá a virá a ser o julgamento internacional do conflito, com o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) em Haia a pronunciar-se, nomeadamente sobre os argumentos dos dois estados para a guerra.
Em paralelo, decorrem investigações sobre crimes de guerra no Tribunal Penal Internacional, que poderá sancionar individualmente Putin. O pedido da Ucrânia ao TIJ é que a Rússia seja instada a cessar atividades militares.