“Hoje é um dia histórico. Hoje a Liberdade ultrapassa os 17.499 dias da ditadura. 17.500 dias em Liberdade! Gratidão aos que combateram a ditadura e aos militares de Abril que a derrubaram. Confiança nas novas gerações que garantem 25 de Abril sempre!”
Portugal celebra esta quinta-feira 17.500 dias em Liberdade, mais um do que durou a ditadura, mas António Costa, ontem logo de manhã, deu o tiro de partido às celebrações dos 50 anos do 25 de Abril de 1974. Um evento polémico por natureza, cujos contornos não deixaram de criar algum atrito. Principalmente, e mais recentemente, com as declarações do Partido Comunista Português, na passada terça-feira, que se insurgiu contra a data escolhida para o início das comemorações do 50.º aniversário do 25 de Abril, acusando o suposto “simbolismo entre a duração do anterior e atual ‘regime’” de querer, “disfarçadamente, esvaziar” a revolução. Em comunicado, os comunistas alegaram que “lançar as comemorações oficiais dos 50 anos da Revolução de Abril em 23 de Março de 2022, associando essa data a um simbolismo entre a duração do anterior e do atual ‘regime’” é procurar, “ainda que disfarçadamente, esvaziar a revolução de 1974 do que ela constitui de profundas transformações democráticas”.
A revolução de Abril “não foi o processo de transição entre ‘regimes’ a que os seus detratores a quiseram e querem reduzir”, defende o PCP, reiterando haver uma “permanente tentativa de falsificação do que representou”. “Quando se salienta que passam já mais anos desde o 25 de Abril de 1974 do que o tempo que durou o regime fascista, assinala-se hoje uma realidade que se contrapõe aos tempos negros do fascismo. Mas importa sublinhar que se a realidade de Portugal hoje continua a ter a marca da Revolução de Abril, de muitas das suas conquistas, que o grande capital não conseguiu destruir, tem também a marca do processo contrarrevolucionário e dos graves problemas que gerou”, conclui o partido.
Testemunhos
No dia em que arrancaram as comemorações, com uma sessão solene no Pátio da Galé, em Lisboa, o i partiu à procura de testemunhos de figuras do país que tenham vivido a transição do regime, entre a ditadura e a liberdade, entre o pré e o pós-25 de Abril.
Simone de Oliveira, a ilustre intérprete de Desfolhada – tema com que venceu o Festival da Canção de 1969, ainda sob o regime do Estado Novo –, recorda uma data especial dos últimos 17.500 dias: o primeiro 1.º de Maio em Liberdade, apenas cerca de uma semana passada sobre a Revolução dos Cravos de 1974. “Foi tudo filmado pelo meu pai, numa máquina que lhe ofereci, deve estar numa bobine por aí, mas foi o mais extraordinário 1.º de Maio na minha memória. Lembro-me de estar na varanda com o meu pai a ver aquela multidão toda aos gritos. E depois lembro-me de ver na televisão a saída do Professor Marcelo [Caetano]”.
Assim recorda a artista uma época que lhe deixou uma memória agridoce em mente: “Não posso dizer que não fiquei um bocadinho incomodada [com a forma como se fez a saída de Marcelo Caetano]. Não estou a dizer que estou a favor ou contra, mas acho que foi uma forma muito feia, na minha opinião. Não era preciso tanto espetáculo. As pessoas tiveram o seu lugar na História, eram quem eram. Não era propriamente o meu amigo ali da esquina, e, tendo em conta o lugar que o senhor teve, deveria ter havido um bocadinho mais de recato”, defende.
Já Jorge Miranda, considerado um dos ‘pais’ da Constituição portuguesa de 1976, escolheu precisamente o dia em que esta foi aprovada: o 2 de abril de 1976. E aponta três razões fundamentais. Primeira, porque “representou a consagração da Democracia representativa, pluralista, com garantia dos direitos e liberdades fundamentais, com promoção de direitos sociais, separação de poderes, autonomias regionais, autarquias locais e todo um sistema de freios e contrapesos”. Em segundo lugar, porque “representou um marco histórico em confronto com as constituições anteriores”, caracterizadas por “grande instabilidade e grande diversidade de orientações, mas que nunca tinham consagrado o princípio do sufrágio universal, por exemplo, ou que nunca tinham consagrado com a mesma nitidez da atual constituição, os direitos fundamentais”. Para concluir, o constitucionalista aponta um argumento “pessoal” para a escolha desta data. Afinal, Jorge Miranda foi “um dos deputados à Assembleia Constituinte, e um dos duzentos e muitos que aprovámos a Constituição”. “É uma data fundamental, e depois disso o que se tem verificado é que a consciência jurídica portuguesa, a educação cívica e o sentimento que as pessoas têm às liberdades, ao Serviço Nacional de Saúde e às garantias do processo criminal, tem vindo a aumentar. Portugal, hoje pode dizer-se, apesar de não ter todos os problemas resolvidos, deu um avanço enorme em comparação com antes do 25 de Abril de 1974”, remata o constitucionalista.
Luís Marques Mendes, jurista, analista político, antigo líder do PSD_e ministro de Cavaco Silva, marca duas importantes datas na sua vida, nestes últimos 17.500 dias. Primeiro, o próprio 25 de Abril de 1974, “porque foi o início de uma nova era, e uma mudança radical na cultura nacional”. “Esse é, claramente, o dia mais importante”, defende, realçando, no entanto, outro dia que, pessoalmente, foi o mais marcante. “Se se pensar noutra perspetiva, mais na mudança na vida pessoal, eu diria o 8 de novembro de 1985, porque foi o dia em que fui para o Governo pela primeira vez. Vivia no Norte, passei a viver no Sul, deixei de fazer advocacia para fazer política, e portanto foi mesmo uma mudança de vida radical”, argumenta.
Às figuras questionadas pelo i junta-se António Bagão Félix, que, sucintamente, declara em resposta escrita: “O dia mais marcante do Portugal ‘livre’ foi um ‘dia imaginário’, que juntou ao primeiro dos 17.500 dias (25 de Abril de 1974) o 580º (25 de Novembro de 1975). Dois dias irmãos-siameses da democracia, perante totalitarismos de sinal contrário”.
Mudanças
Mas afinal, o que mais mudou nos últimos 17.500 dias? A Assembleia da República criou uma secção dedicada ao assunto no seu website onde, entre outros detalhes curiosos, partilha uma longa lista das mudanças que se fizeram sentir em Portugal após a Revolução dos Cravos de 1974.
A percentagem de deputadas eleitas é o primeiro dado partilhado: 38.6% em 2019, um valor muito mais alto do que aquele que foi registado em 1973, quando apenas 6% dos membros da então Assembleia Nacional eram mulheres. Também o número de eleitores inscritos aumentou fortemente entre 1973 (1.8 milhões) e 2019 (10.8 milhões, incluindo os eleitores dos círculos da Europa e de Fora da Europa).
A legislação, essa também sofreu fortes alterações, principalmente a nível social, relativamente à independência e à emancipação das mulheres em Portugal. Em 1973, por exemplo, a legislação estipulava que o homem que matasse a mulher em situação de adultério, ou o adúltero de ambos, era desterrado para fora da comarca durante seis meses. Hoje em dia, aquele que mate o seu cônjuge, ex-cônjuge ou alguém com quem mantenha ou tenha mantido relação de namoro, pode incorrer em pena de prisão até 25 anos. Por outro lado, em 1973, o adultério da mulher era punido com pena de prisão de 2 a 8 anos ou, em alternativa, com degredo. Hoje em dia, o adultério não tem punição legal, seja do homem ou da mulher.
Na altura, estipulava a lei, a administração dos bens do casal, incluindo os bens próprios da mulher, pertencia ao marido, como “chefe da família”. Hoje, a administração dos bens de cada cônjuge é da inteira responsabilidade do mesmo. Aliás, essa própria porção da legislação de 1973 inclui um termo que não existe mais nas leis do país: “chefe de família”. Nesse ano, o marido era considerado “chefe de família”, competindo-lhe “representá-la e decidir em todos os atos da vida conjugal”.
A Revolução dos Cravos trouxe consigo muitas mudanças para as mulheres portuguesas, entre elas o fim do poder que o marido tinha, caso assim o entendesse, de proibir a mulher de trabalhar. Ou por exemplo, a interdição de as mulheres se candidatarem à carreira diplomática, à magistratura, aos cargos superiores da Administração Pública ou às Forças Armadas. Tudo temas do passado. E ainda mais um detalhe curioso e ilustrativo sobre as mudanças que os últimos quase 50 anos trouxeram: em 1973, era legalmente permitido ao marido abrir a correspondência da sua mulher, sendo hoje em dia proibido – a qualquer um – abrir correspondência que não lhe seja endereçada, podendo incorrer em pena de prisão de 1 ano ou pena de multa até 240 dias.
Evento
No Pátio da Galé, em Lisboa, decorreu ontem uma sessão solene, que teve como principal momento a condecoração de 30 militares de Abril pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. A ele juntaram-se o presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, e o primeiro-ministro, António Costa, que também intervieram.
Mas nem só de discursos políticos se fez este evento. “O 25 de Abril é de todos e para todos, e isso tem de estar presente nas comemorações”, garantia Pedro Adão e Silva, citado pela RTP, previamente ao arranque das comemorações. Ainda antes da sessão solene da passada quarta-feira, à TSF, Marcelo Rebelo de Sousa declarava: “Muitos jovens que nasceram na democracia não têm noção do que é censura e proibição de tudo. Mesmo havendo turismo e televisão, Portugal continuava a ser um país longe do mundo. A democracia abriu-nos as portas do mundo. O grande ganho da democracia é existir, com todos os seus defeitos, porque as democracias são sempre imperfeitas. As ditaduras é que se acham perfeitas, mas não são”.
Também ontem foi apresentado o hino dos 50 anos de democracia, composto por Bruno Pernadas, numa interpretação da Orquestra Geração, um projeto que procura levar música erudita a contextos sociais considerados mais difíceis. Já Alice Neto de Sousa, uma jovem poetisa, leu um poema original escrito especialmente sobre os 50 anos de democracia. O dia foi ainda marcado pelo encerramento de uma cápsula do tempo, feita de cortiça, onde foi depositado um conjunto de objetos e de materiais representativos do nosso tempo. Entre outros elementos, estão dentro dessa cápsula, que voltará a ser aberta apenas em 2074, três cartas escritas por jovens portugueses da atualidade, vencedores do concurso de escrita do Plano Nacional de Leitura, e dirigidas à juventude portuguesa de 2074.
As comemorações dos 50 anos do 25 de Abril estendem-se até dezembro de 2026, data em que será assinalado meio século das primeiras eleições autárquicas realizadas em Portugal.