Taras chegou de Lviv há uma semana com a mulher e a filha. É um dos ucranianos que reza o rosário em frente à Capelinha das Aparições, na tarde de céu encoberto em que o Papa decidiu consagrar Rússia e Ucrânia a Nossa Senhora de Fátima. Reza com confiança: «Acredito que Deus pode tudo», diz, uma fé partilhada por outros ucranianos que, como ele, estiveram ontem em Fátima.
Acusam-nos as bandeiras, pontos de cor no santuário onde se juntam alguns milhares de peregrinos, longe das enchentes dos dias mais concorridos, mas mais do que é habitual a um dia da semana. Petro e Natalia, a viver há 20 anos em Madrid, puseram-se à estrada de madrugada para estarem presentes. Com eles, a tia Irena, que vivia em Ternopil, também na parte ocidental da Ucrânia, e que decidiu fugir. Lá, Petro tem a mãe, de 73 anos, que recusa sair. «Se tenho de morrer, morro em minha casa», diz-lhe. «Em todos os telefonemas peço para vir mas ela não vem. Passou a ser motivo de discussão».
São católicos, ao passo que Taras é ortodoxo, unidos na oração e na última esperança que depositam na oração convocada pelo Papa, mas também na revolta: «Só queremos que haja paz mas não vai haver um milagre de um dia para outro», diz Natalia, emocionada depois do momento em que se rezou em ucraniano no santuário, seguido de pai-nosso e avé-maria em russo. «Sou cristão e não posso desejar a morte de ninguém, mas ao menos que Deus o ilumine», diz Petro. «O problema é o orgulho, mas o orgulho pode acabar com a Terra. É preciso parar».
No Vaticano, Francisco denunciou a guerra brutal e a sensação de impotência e foi direto na explicação do ato: renovar a consagração da Igreja e da humanidade inteira e de modo particular o povo ucraniano e o povo russo. Se dúvidas houvesse, a ideia de que o Papa decidiu, perante a invasão da Ucrânia, fazer um ato de consagração da Rússia a Nossa Senhora de Fátima, cumprindo a profecia deixada aos pastorinhos há 100 anos como foi relatada pela irmã Lúcia, desfez-se com a oração preparada na basília de São Pedro junto a uma imagem portuguesa permanentemente em Roma. No santuário de Fátima, a celebração foi presidida pelo cardeal polaco Konrad Krajewski na Capelinha das Aparições. Antes da cerimónia, o cardeal que este sábado parte de Fátima para a Ucrânia com uma ambulância oferecida pelo Papa, disse que com o ato da consagração se pretende «expulsar demónios da guerra». Os católicos têm uma «arma sofisticada: a oração, o jejum e a esmola. Convido-vos a usar esta arma e vereis que temos um milagre», acrescentou numa intervenção no centro Paulo VI, onde decorria um congresso sobre os 375 anos de Nossa Senhora da Conceição como padroeira de Portugal.
Um ato histórico
Esta foi a 13.ª consagração feita por um Papa a Nossa Senhora, pedido que segundo os relatos de Lúcia remonta à aparição de 13 de julho, quando foi confiado aos pastorinhos o segredo que a irmã revelaria à igreja já em adulta. Sem consagração, a Rússia espalharia erros pelo mundo. No texto da oração, Francisco mostra temer o pior, pedindo que Nossa Senhora que proteja o mundo da ameaça nuclear.
Há 38 anos, a 25 de março de 1984, João Paulo II consagrou a humanidade a Fátima mas não referiu explicitamente a União Soviética, o que ao longo dos anos gerou controvérsia sobre até que ponto teria sido cumprido o pedido, o que Lúcia interpretou como tendo sido garantido. Descrita como uma decisão ousada por poder levar a uma resposta da igreja ortodoxa, numa altura em que o Patriarca de Moscovo já mostrou publicamente o apoio a Putin, fica como um dos gestos históricos de Francisco, que aos 85 anos tem tido apelos para se deslocar à Ucrânia. Na semana passada, uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, a 13.ª e a única que não estava no santuário, já tinha sido enviada para Lviv.