As famílias portuguesas ainda não respiraram de alívio do impacto financeiro causado pela covid e já se deparam com possíveis ameaças de subida de juros por parte do Banco Central Europeu (BCE). Uma decisão que inevitavelmente irá afetar quem tem crédito à habitação e que poderá ganhar novos contornos para os consumidores que estão no seu limite de pagamento de despesas. Aliado a isso há que contar já com as subidas de preços dos combustíveis, energia, alimentação, transportes, entre outros, e com o aumento da inflação.
A garantia foi dada ao i por Natália Nunes, responsável pelo Gabinete de Proteção Financeira da Deco. “Essa é uma preocupação que temos desde o início do ano. Temos vindo a alertar os consumidores para a necessidade de irem acomodando os seus orçamentos familiares para o caso de virem a ser confrontados com a alteração das taxas de juro, uma vez que, poderá ter algum impacto na prestação a pagar ao banco no final do mês”.
Uma dor de cabeça ainda maior para quem, de acordo com a responsável, já tem uma taxa de esforço elevada. “Não é só a questão do aumento da taxa de juro é tudo aquilo que todos os dias já sentimos que é o aumento dos preços, algo que se verifica desde o início do ano. A maioria das famílias chega ao fim do mês e acaba por gastar muito mais do que gastava e o seu rendimento não acompanha o aumento desses gastos”.
A opinião é partilhada por Eduardo Silva, diretor-geral da XTB Portugal. “Qualquer subida na taxa de juro será sempre gradual e resulta na perda de poder de compra para o agregado familiar. Claro que num ambiente de inflação a subir de forma substancial parece que estamos perante um cenário absolutamente dramático, no entanto, na realidade os juros continuam muito baixos. Mas existe a noção de que os países, empresas e famílias estão sobre-endividados”. Ainda assim, lembra que o Banco Central apesar das pressões que tem sofrido em subir as taxas de juros – a Reserva Federal norte-americana (Fed) subiu, a meio de março, os juros de referência em 25 pontos base para travar a escalada dos preços no país e deverá subir as taxas mais seis vezes este ano até perto de 2% – acredita que “não irá agir de forma errática e aumentar os juros de forma apressada para controlar a inflação. E perante isso terá de ser o mercado a ajustar-se”.
Solução passa por “novas moratórias”?
Natália Nunes reconhece que o impacto do fim das moratórias – suspensão do pagamento por determinado período de tempo e que foi aplicado pelos bancos durante a pandemia – não teve tantas consequências negativas como se estava à espera. A explicação é simples: o número de famílias que voltou a pagar a prestação na totalidade foi menor do que aquela que se verificou em outubro.
“Os que começaram a pagar no início do ano já foi em número muito mais reduzido, o que de certa forma, permitiu que a própria banca fosse precavendo esse fim, mostrando alguma abertura, não muita, mas fosse adotando algumas medidas para atenuar essas consequências”, diz ao i .
E perante um aumento de juros poderíamos assistir a um regresso de uma solução semelhante às moratórias? A responsável pelo Gabinete de Proteção Financeira da Deco não hesita: “O que é verdadeiramente importante seria haver abertura da banca para analisar e encontrar soluções que evitassem o incumprimento dos portugueses”, acrescentando que “quando falamos, por exemplo, de períodos de carência é algo que, muitas vezes, a banca está disposta a negociar com os consumidores quando estamos a falar de situações de dificuldades que sejam temporárias”. E dá como exemplo, situações de diminuição de rendimentos, de desemprego, ou seja, períodos em que poderemos assistir a um período de carência e que acaba por funcionar praticamente como uma moratória. “Isto para dizer que a solução encontrada pela moratória acaba também por ser semelhante às situações que, muitas vezes, são apresentadas pelos próprios bancos face a determinado tipo de dificuldades”. E garante que os bancos não se querem a ver a braços com aumentos de carteiras de malparado, como assistimos no tempo da troika.
Mais otimista está Eduardo Silva ao garantir que “cada caso é um caso e pode ser injusto generalizar”, afirmando que a procura foi limitada face ao que se sugere ser uma asfixia. “Assim, não vejo problema em a certo ponto se introduzir novamente uma nova espécie de moratórias para resolver um eventual problema que, para já, me parece bastante controlado”, diz ao nosso jornal.
Juros baixos prolongados
Mas a opinião dos dois especialistas é unânime: tivemos um longo período com taxas de juro muito baixas, o que deve ser encarado como uma situação excecional. “Os consumidores quando contratam com taxa variável têm que estar sempre atentos e fazer um exercício para que o seu orçamento familiar possa acomodar as alterações da taxa de juro.”, refere Natália Nunes.
No entanto, lembra que a maior parte dos consumidores não tem apenas estas prestações de crédito e, como tal, é preciso fazer contas para ver qual o peso que têm no seu rendimento líquido mensal. “Somando a prestação do crédito à habitação, dos créditos pessoais e eventualmente um crédito automóvel, o desejável é que não representem mais de 35% do rendimento. Mas se, neste momento, com taxas de juro muito baixas e se a taxa de esforço já representa 50% do seu rendimento líquido mensal então se calhar está na hora de começar a olhar para os créditos e contactar os bancos no sentido de ver se é possível reduzir o valor das prestações e eventualmente olhar para os mesmo restantes gastos, para ver onde é possível reduzir no caso de assistirmos a um aumento das taxas de juros”.
Também Eduardo Silva lembra que “historicamente ainda estamos num ambiente de juros baixos. Logo, o que aconteceu nos últimos anos foi um cenário em que a descida dos juros concedeu um maior poder de compra no final do mês aos consumidores”, acrescentando que se “o ciclo se inverter antes de asfixiar ainda temos um período de normalização, que resulta numa perda de poder de compra, que os agregados deveriam ter noção de que era temporária, mas também fruto de um programa de facilitismo monetário”.