Andri tem 40 anos e é da região de Donestz no leste da Ucrânia. Conseguiu fugir com os filhos e com a companheira para Lviv, uma viagem de 26 horas que os deixou a dormir numa sala de aula transformada em abrigo. Viúvo e com filhos menores, foi autorizado a sair do país para os acompanhar, sem ter de ficar a combater. Quando surgiu a hipótese de Lisboa, aceitou, mesmo sem conhecer nada do país que os iria acolher. Chegaram no último sábado a Portugal, um mês depois do início da guerra.
Foram uma das famílias resgatadas pela junta de freguesia de Benfica da cidade ucraniana que se tornou ponto de refúgio para milhares de famílias deslocadas, no limite da capacidade. A preocupação dele? Ter as crianças a salvo, longe de bombardeamentos. O objetivo da junta de freguesia: garantir que, depois da viagem, todos têm acolhimento e podem começar a trabalhar, nas suas áreas ou noutras, caminhando para a autonomia, podendo pensar em encontrar casa própria.
Andri, que quando pedimos para escrever o nome diz que pode ficar André como se diz cá, estava a tirar um curso para ser professor de Educação Física e era trabalhador agrícola em estufas.
Esta quarta-feira, foi conhecer aquele que será o seu novo ofício neste recomeçar de vida longe de casa: ajudante de loja e manutenção de aquários da Aquaplante, em Benfica. É ali que vai começar a trabalhar na próxima semana, depois de a junta ter feito um apelo aos comerciantes sobre vagas de trabalho, com muitos a solidarizarem-se mesmo sabendo que a integração vai implicar formação e uma primeira fase de adaptação à língua.
Foi o caso de Gonçalo Rego, à frente do negócio familiar de aquariofilia aberto nos anos 90. “Estamos a fazer uma restruturação do nosso espaço, não estávamos à procura de ninguém em particular nesta fase mas vai haver trabalho e quisemos ajudar”, explica, confessando que não consegue imaginar “1%” do que passaram as pessoas que atravessam a Europa a fugir de um conflito que interrompeu a vida normal.
Do lado de Andri há o peso do que ficou para trás e agora “entusiasmo”, diz o pai de família com a ajuda da tradutora Tatiana. Na sexta-feira vai também acompanhar o primeiro dia dos filhos, dois rapazes cheios de energia, na escola nova. Não tem experiência a trabalhar com peixes e em criança teve pássaros e um hamster, mas está no sítio certo para aprender: a Aquaplante é a maior loja do género em Lisboa, com fileiras de tanques com peixes e peixinhos de todas as espécies.
Recém-chegado, em português Andri já consegue dizer olá, obrigada e bom dia. De novo com a ajuda da tradutora, diz aquilo de que está mais a gostar é das pessoas, dos sorrisos e dos doces, não começasse a hospitalidade portuguesa também pela mesa. Desde que a junta de freguesia se lançou num programa de acolhimento, vários estabelecimentos do comércio local ajudaram, explica o presidente da junta socialista Ricardo Marques. No dia em que chegaram, pastelarias foram oferecer lanches, mas antes de decidirem responder ao apelo do governo regional de Lviv já tinham recolhido e enviado para a Ucrânia toneladas de bens alimentares.
O plano que agora estão a pôr em marcha começou há menos de duas semanas, quando decidiram pôr-se a caminho e trazer deslocados de Lviv para Portugal. “Desde o início que tinha a ideia de fazermos mais. Uma empresa daqui disponibilizou as carrinhas e fomos. O governo regional diz-nos que estão no limite das capacidades, com 100 mil deslocados a chegar à cidade por dia. As pessoas que trouxemos foram as que foram sinalizadas por estarem a viver nas piores condições. Uma família com três crianças recebia alimentação de dois em dois dias, viviam numa cave”, retrata.
Ao cruzar a fronteira, os refugiados que seguiam na sua carrinha baixaram-se em pânico à passagem de um caça, com as sirenes a ecoar nas cabeças. A comitiva partiu de Lisboa na segunda-feira da semana passada e chegou no sábado, depois de várias paragens pelo caminho em que a solidariedade que agora tentam continuar em casa ficou patente.
“Ficámos a dormir na Polónia num espaço organizado por estudantes de Erasmus e em França numa comunidade evangélica”, descreve Ricardo Marques, que pelo caminho foi conhecendo a história de vida de cada um e começou logo a fazer contactos para que, além de acolhimento, os que tinham essa vontade e preocupação pudessem logo começar a trabalhar.
Aproveitando a rede de contacto com o comércio local estreitada durante a pandemia, seguiu o apelo para as lojas e instituições de Benfica e as oportunidades começaram a cair. Depois foi juntar as competências de cada um às ofertas disponíveis. Quatro dias depois da chegada, já houve pessoas colocadas na área de estética, inclusive no cabeleireiro onde vai a primeira-dama em Benfica, confidencia, e em pastelarias. Ontem foi o dia de mais uma ronda de entrevistas, as que acompanhamos e ainda numa fábrica ligada a distribuição alimentar na Amadora, todas com boas notícias.
“Estivemos num abrigo que era como o Colombo cheio de pessoas ” “Queremos emprego pleno e estamos a conseguir”, sublinha o autarca, que de Lviv trouxe imagens que lhe deram a escala da crise de refugiados na Ucrânia e a necessidade de criar planos de resposta ágeis e de proximidade. “Estivemos num centro de acolhimento que era como se fosse o piso térreo do Centro Comercial Colombo cheio de gente, deitadas lado a lado, sem espaço nenhum”, descreve.
“Aqui, conhecendo as pessoas e recorrendo às redes de proximidade, podemos dar uma resposta mais digna”, continua.
É esta a ideia que agora querem ajudar a passar a outras freguesias, até porque de Lviv já lhes chegou o pedido sobre se poderiam acolher mais 200 deslocados. “Não temos muito mais capacidade, porque além das 34 pessoas que trouxemos agora já chegaram várias famílias pelos seus próprios meios”, diz. Num total, estão 112 refugiados a viver em Benfica, quase 50 famílias, numa comunidade que já tinha laços fortes com o país antes da guerra com a presença da Associação dos Ucranianos de Portugal.
Se a maioria dos que chegam pelo próprio pé tem ficado em casa de familiares, o grupo que chegou no sábado ficou a viver com famílias de acolhimento que se voluntariaram à junta e também com o apoio da paróquia de Nossa Senhora do Amparo, a cargo do padre Natanael, de origem ucraniana.
É numa casa portuguesa que lhes abriu as portas que vivem Andri e a família mas também Larysa e Tetiana, mãe e filha de 58 e 39 anos. E também elas foram ontem às suas entrevistas para um novo capítulo na vida.
Larysa tem formação em marketing mas trabalhava em casa na Ucrânia, onde o marido ficou. Não fala português nem inglês, mas quer aprender – todos terão aulas na junta duas vezes por semana, além de formações adicionais que possam surgir.
Chegamos ao mercado de Benfica, onde com a ajuda do tradutor do Google, que se tornou parte da pouca ou nenhuma bagagem que conseguiram trazer na fuga, Larysa e a filha já vão falando com Pedro Neves, da florista Horta do Mercado, que disponibilizou uma vaga de trabalho após o contacto da junta.
Fica combinado que Larysa começará na terça-feira, aos poucos, para se perceber o que consegue fazer, embora a tradutora vá insistindo que gostavam de poder ver antes de meter mãos à obra. “Somos assim os ucranianos, queremos perceber bem como é antes de fazer”, explica Tatiana, segunda tradutora do dia embora com o mesmo nome, ucraniana a viver em Portugal há dois anos e que depois de nas últimas semanas ter ajudado voluntariamente vai começar a trabalhar na junta no apoio à integração na comunidade escolar deixando o trabalho em limpezas.
Embora não trabalhasse com flores, Larysa conta que em Kropyvnytsky, de onde são naturais na Ucrânia, é comum todas as casas terem canteiros floridos por isso está habituada a cuidar delas, mas até que ponto estará à altura do trabalho é a dúvida. Embora seja complicado ainda estar a dizer e a traduzir nomes, reconhecem as petúnias e os antúrios. E a orquídea amarela que Pedro lhes oferece para dar sorte. “É o nosso contributo, porque sabemos que a integração ainda vai ser demorada. Todos podemos fazer um pouco”, diz Pedro Neves, que tinha recentemente ficado com uma vaga de ajudante para ocupar na loja.
À tarde, é a vez de Tetiana, a filha, ter a sua entrevista e não esconde o nervosismo. Doutorada em economia pela Universidade de Kropyvnytsky, a junta de freguesia estabeleceu contacto com o Instituto Superior de Gestão. É recebida pelo diretor Miguel Varela e pela administradora do grupo Ensinus, a que pertence o ISG, Teresa Damásio, antiga deputada e secretária da mesa da assembleia de freguesia de Benfica. Se o laço é natural, Miguel Varela sublinha que além da solidariedade qualquer instituição tem interesse em acolher doutorados, sobretudo uma em que 30% dos alunos são internacionais.
Tetiana, que ontem pôde ver onde ficará instalada, vai ter um contrato de trabalho a tempo inteiro e começará por fazer investigação. Quando se estiver mais adaptada à língua, seja português ou inglês, poderá vir a ser integrada no corpo letivo do instituto. Entre o obrigada que já consegue dizer, no final da apresentação dizia-se apenas feliz. Quando falamos no carro, sorri ao traduzir no Google as únicas coisas que trouxe com ela: dois fatos de treino, com a tradução a dar 22.
Eram dois: o que trazia no corpo e outro. Saiu da Ucrânia com a mãe, explica já com mais à vontade, porque o pai as obrigou a porem-se a salvo. E respeitando o pedido, não esconde que há momentos em que o sente como uma traição.
É também essa “culpa” que carrega Oksana, de 46 anos, que encontramos à porta da junta de freguesia de Benfica, onde vai começar a trabalhar na área da contabilidade e também nesta fase no apoio à integração de refugiados.
Natural de Zaporíjia, vivia em Kiev, onde trabalhava como operadora turística, embora tenha formação de Técnica Oficial de Contas. Mais uma vez, procura a melhor palavra com a ajuda do tradutor para expressar o que sente agora que tem um plano para recomeçar para ela e para a filha de 15 anos. “O que sinto? Sinto-me bem aqui mas também culpada, porque estou a salvo e os meus pais, os meus amigos, o meu povo não. Têm falta de água, falta de comida, faltam medicamentos. É terrível no século XXI na Europa uma criança morrer por não ter água”, murmura.
Como a maioria das pessoas que conhece, nunca imaginou que a guerra lhes interrompesse a vida e destruísse a cidade e o país. E essa perplexidade misturada com revolta transporta todos os planos adiados. “No dia 23 de fevereiro fui aos saldos com a minha filha comprar uns sapatos. Tinha bilhetes para o teatro no dia 24. No dia 25 tinha combinado com colegas irmos festejar porque fazemos 30 anos de ter acabado o liceu e a minha filha tinha combinado uma festa com as amigas dela em casa com pizzas. Tinha acabado de remodelar a minha cozinha”, recupera para mostrar como é tudo surreal. “Dizia-se que podia acontecer mas não imaginávamos que fosse real. E depois acordei-a às 5h da manhã a dizer que estávamos em guerra. Um pai dizer isto a um filho é horrível”.
Junta-se a nós Maria. “Ela diz que está contente por estar aqui e quando a oiço dizer isso é que sinto que tomei a decisão certa.”
Quase a começar na escola, a adolescente não esconde saudades dos amigos e o medo que sente por eles e pelos avós ao ouvir relatos de quem é morto quando saiu de casa para ir buscar água ou comida nas cidades bombardeadas. Para se acalmar, ouve música. A banda preferida são os Queen e repete a Bohemian Rhapsody, explica. Quer ser cantora e gostava de ter aulas, embora Ricardo Marques, que as acompanhou na viagem de Lviv, brinque com ela que vai ser a primeira presidente de junta portuguesa ucraniana. Maria fica vermelha e abana a cabeça. “Pode ser cantora, também temos o presidente Zelenksy que é ator”, sorri a mãe.
Começar a trabalhar, embora não mude nada do que gostavam de recuperar, poderá pelo menos ajudará a distrair a cabeça, confia Oksana, que aguentou 11 dias em Kiev a pensar que tinha de ficar a lutar com os seus antes de decidir fugir, quando o som dos bombardeamentos se tornou constante e começou a ter pesadelos com as sirenes.
“Sem nada para fazer, pensas, vês as notícias, choras” Em Lviv, embora mais calmo, o som dos bombardeamentos continuava a persegui-la. “Se não tens nada para fazer, estás sempre a pensar. Depois vês as notícias, choras, voltas a pensar e vês mais notícia. Entramos num círculo”.
Entre a satisfação com a forma como a comunidade se tem mobilizado, Ricardo Marques fala das marcas pesadas que chegam com quem acolhem. “Uma das senhoras que vinha connosco soube durante a viagem que o filho tinha morido, é indescritível”, diz. Se até aqui o feedback tem sido positivo, começam a chegar poucas mensagens de quem questiona porquê mas sublinha que integrarar e ajudar na procura de emprego tem sido uma preocupação da junta para todos: “Todas as semanas publicamos anúncios de emprego na freguesia, alguns não têm tido resposta. É muito difícil encontrar pessoas em algumas áreas”. Entre os programas, destaca a integração de ex-reclusos numa parceria com a associação Companheiro.
Agora o que o move é a escala do conflito, diz, confessando-se hiperativo, mais depois de em 2020, antes da pandemia, um problema de saúde o ter deixado quase um mês ligado a um aparelho ECMO nos cuidados intensivos, à beira da morte. “Sempre fui hiperativo, mas sinto que sou mais afirmativo. Quando sinto que é preciso fazer, faço.”
Os dias têm sido cheias: ontem levaram as crianças à praia para fazer surf, vão ter um lanche e na sexta-feira será o autarca a cozinhar para um grupo “para mostrar que os homens também têm jeito na cozinha”, diferenças culturais ainda muito vincadas.
Pelo meio, vão tentando que não falte nada com mentores para cada família e portas abertas para recuperar planos de vida, dos rapazes que queriam jogar à bola e já foram ao emblemático Fófó Clube de Benfica às raparigas praticantes de halterofilismo que vão começar a treinar.