Dois meses depois das legislativas, o Presidente da República deu posse ao XXIII Governo Constitucional, o terceiro chefiado por António Costa, numa cerimónia no Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa. Num discurso marcado pelos desafios que o futuro coloca, Marcelo Rebelo de Sousa deixou um recado a Costa: o mandato é para cumprir até ao fim.
“Os portugueses deram maioria absoluta a um partido, mas também a um homem que fez questão de personalizar o voto ao falar na escolha entre duas pessoas. Agora que ganhou por quatro anos e meio, sabe que não será politicamente fácil que a cara que venceu de forma incontestável e notável possa ser substituída por outra a meio do caminho”, avisou.
Fechando a porta a uma eventual saída antecipada do primeiro-ministro para assumir um cargo numa das instituições da União Europeia – uma ambição que parece ganhar mais força pelo facto de ter ficado com a pasta dos Assuntos Europeus nesta legislatura -, o Presidente da República não deixou margem para dúvidas. Caso Costa abandone o mandato daqui a dois anos, fará uso do seu máximo poder, a ‘bomba atómica’, para dissolver a Assembleia da República e convocar eleições antecipadas.
“É o preço das vitórias, inevitavelmente pessoais e intencionalmente personalizadas”, atirou Marcelo, reforçando a ideia de que a substituição por um eventual sucessor será difícil, se não mesmo impossível.
O chefe de Estado traçou o seu discurso pelo cenário internacional, começando a sua intervenção por falar da “invasão” da Ucrânia. “De repente todos percebemos que tínhamos mudado”, declarou.
Numa altura em que a guerra ocupa a quase totalidade da agenda, Marcelo lembrou ainda a pandemia, realçando que o mandato do novo Executivo vai “praticamente coincidir” com o seu e também com o dos autarcas e, por essa razão, os portugueses esperam de todos “segurança, estabilidade, unidade no essencial, recusa de primazia ou intenções secundárias”.
Apesar de garantir que vai continuar um mandato de solidariedade institucional, sendo “cooperante para mais estes quatro anos de aventura coletiva”, deixou mais um alerta: “Vigiando distrações e adiamentos quanto ao essencial, autocontemplações, deslumbramentos, tentando evitá-los para não ter de intervir a posteriori.”
E foi mais duro nas palavras dirigidas ao Governo de maioria absoluta que empossou. “Os portugueses proporcionaram condições excecionais para, sem desculpas ou álibis, fazer o que tem de ser feito. Escolheram outro caminho, escolheram mudar e dar ao partido de Governo uma maioria absoluta, não deram nem poder absoluto nem ditadura de maioria”, frisou.
Sem responder diretamente ao aviso do Presidente da República, o primeiro-ministro reconheceu que “a maioria absoluta corresponde a uma responsabilidade absoluta para quem governa, com ausência de álibis e de desculpas”. “Os portugueses resolveram nas eleições a crise política e garantiram estabilidade até outubro de 2026. Estabilidade não é sinónimo de imobilismo, é sim, exigência de ambição e oportunidade de concretização”, declarou António Costa, prometendo uma “maioria de diálogo parlamentar, político e social”.
“As eleições alteraram a composição da Assembleia da República, mas não alteraram a Constituição”, vincou.
No final da tomada de posse, à saída da cerimónia o presidente do PSD, que chegou à Ajuda acompanhado pelo líder parlamentar cessante Adão Silva, também defendeu que o primeiro-ministro tem “uma obrigação redobrada” para cumprir integralmente o seu mandato, considerando “oportuno” o aviso de Marcelo.
O MAU-ESTAR COM CRAVINHO A cerimónia de tomada de posse deixou ainda transparecer a fricção entre o Presidente da República e o agora ministro dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho. Dirigindo-se primeiro a Mariana Vieira da Silva para a cumprimentar, Marcelo Rebelo de Sousa apertou ainda a mão do ex-ministro da Defesa – que estava ao lado da número dois do Governo -, mas sem lhe direcionar um único olhar. Tal como o Nascer do SOL noticiou, Costa acedeu à pressão de Belém para retirar o governante da pasta da Defesa, já que Marcelo não via com bons olhos a sua continuidade após as polémicas por causa da nova Lei Orgânica de Bases das Forças Armadas e também por causa dos conflitos com nomeações de chefes militares, nomeadamente a do almirante Gouveia e Melo para chefe do Estado-Maior da Armada.
siza vieira omite costa na despedida O dia ficou marcado também pelo vídeo de despedida do ex-ministro da Economia e da Transição Digital, Pedro Siza Vieira que, noticiou o Nascer do Sol, só ficou a saber que não faria parte do novo Executivo no último Conselho de Ministros. Nesse discurso, em que realça os desafios que o país enfrentou nos últimos anos, bem como o seu papel nas áreas da transição digital, o antigo ministro desejou “muitos sucessos a todos e muitas felicidades”, mas deixou de fora uma menção ao nome de António Costa, apesar de ter feito parte do núcleo duro do primeiro-ministro desde 2017.