Renda da guerra? UE pagou 35 mil milhões por energia russa desde o início da invasão

Números foram avançados ontem por Josef Borrell, chefe de política externa da UE. São 35 vezes mais do que o prometido por Bruxelas à Ucrânia em apoio militar e mais do que os 1,7 mil milhões pedidos pela ONU para ajuda humanitária. Seria possível fechar a torneira já? Quem ganharia? A que custo? 

Tem sido apontado como um dos fatores que impediu a economia russa de rebentar neste quase mês e meio de invasão da Ucrânia e sanções internacionais, ajudando a estabilizar o rublo: em 41 dias, os estados-membros da UE compraram gás, petróleo e carvão russo no valor de 35 mil milhões de euros, quantificou ontem Josef Borrell, chefe da política externa da UE, num discurso no Parlamento Europeu. 

Os números de Bruxelas são superiores aos até aqui estimado pela ONG Europe Beyond Coal, que tem um contador em tempo real da importações de produtos energéticos russos pela UE desde 24 de fevereiro, agora a aproximar-se dos 20 mil milhões de euros. No ano passado, a conta da fatura rondou os 100 mil milhões.

Não sendo claro qual será o valor certo, há números com que contrasta numa altura em que o discurso europeu é de condenação da ofensiva e solidariedade para com os ucranianos: os mil milhões prometidos em ajuda militar por Bruxelas à Ucrânia, comparou Borrell, ou o apelo de 1,7 mil milhões de dólares lançado pela ONU para responder à emergência humanitária provocada pela invasão russa, que já provocou o êxodo de mais de 4 milhões de refugiados ucranianos e milhões de deslocados no interior do país. 

A UE está longe de ser o único cliente da energia russa, mas o peso da Europa é relevante num setor que representa quase 40% das receitas do país dirigido por Putin: em 2021 os países europeus (não apenas a UE) somaram 49% das exportações russas de petróleo, 74% de gás natural e 32% de carvão. A União Europeia já se comprometeu a reduzir a dependência até 2030 mas, depois do massacre de Bucha, Bruxelas endureceu o discurso e já não exclui ir mais longe, parece faltar é consenso entre os estados-membros: esta quinta-feira é esperada uma decisão sobre um novo pacote de sanções que deverá incluir o carvão e o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, admitiu um corte ao gás e ao petróleo “mais cedo ou mais tarde”.

“Continuam a ser sanções muito leves. É o equivalente nem a sequer à picada de um mosquito, é um zumbido. Naquilo que poderia ter um impacto forte a UE continua a hesitar, que é a proibição das importações de energia da Rússia. Abriu-se a porta com o carvão mas estamos a falar de 4 mil milhões em 100 mil milhões que a UE paga em energia e que no fundo continuam a financiar a Rússia”, defendeu por cá Miguel Poiares Maduro na TSF, considerando que será preciso ir por aí. Seria possível? As análises têm-se multiplicado e as opiniões dividem-se. E há quem aponte os riscos e a ilusão desse tipo de resposta numa altura em que outros países continuam a fortalecer relações comerciais com a Rússia.

“Decisão extremamente perigosa e arriscada” Clemente Pedro Nunes, professor catedrático jubilado do Instituto Superior Técnico, especialista em política energética, é perentório: sublinha que uma guerra a partir do momento em que começa é “sempre uma tragédia” mas considera que um embargo europeu à energia russa seria “uma decisão extremamente arriscada e perigosa, atendendo a circunstâncias do enquadramento energético que não são alteráveis a curto prazo.” 

Mas também geoestratégicas: “Neste momento a Turquia está a comprar energia russa com desconto e tem um acordo com a UE que permite exportar para os estados membros sem limitações, o que significa que, do têxtil ao vidro, a nossa indústria está a levar um grande abalo e a perder competitividade. A Turquia não aplicou sanções à Rússia nem se prevê que vá aplicar”, afirma o especialista. “Isto para não falar da Índia e da China, sendo que vários países estão a comprar amoníaco e adubos da Rússia com desconto. Ao mesmo tempo que temos isto, vemos a nossa siderurgia parada com a subida dos preços. Estamos numa situação que se está a tornar dramática”, alerta. 

Para Clemente Pedro Nunes, é necessária uma visão geopolítica que tenha em conta todos estes fatores de competitividade económica e das relações entre principias potências, sobretudo quando os especialistas de Relações Internacionais preveem cenários em que o conflito se pode prolongar por muitos meses. 

Quanto ao que se pode fazer no imediato em termos energéticos, defende que devia estar a ser equacionada a reabertura de centrais a carvão num cenário de possível prolongamento da guerra durante bastante tempo, cada vez menos descartado. O especialista calcula que nos últimos nove meses houve um sobrecusto de 850 milhões no abastecimento do sistema energético nacional devido ao facto de o mercado marginalista se ter baseado durante um grande número de horas na eletricidade no gás natural em vez do carvão, que deixou de ser alternativa em Portugal com o fecho de Sines e Pego. “Mesmo com as taxas de carbono e com o ISP que lhe é aplicado, o carvão tem sido bastante mais barato”, nota.

Possível é, mas com recessão Se Portugal depende pouco de importações diretas russas mas está sujeito à volatilidade do preço do gás natural, o país europeu mais dependente da energia russa é a Alemanha: pagou no ano passado 40 mil milhões de euros por carvão, petróleo e gás russos. E é de Berlim que vêm os maiores receios sobre um embargo, embora o país garanta que não vai pagar à Rússia em rublos, a brecha ontem aberta pela Hungria, que admite contrariar a posição assumida pelos estados-membros. Um boicote ao gás russo traria pobreza em massa e desemprego, vaticinou o ministro Robert Habeck. “As pessoas não poderiam aquecer as suas casas”.

Mas também na Alemanha há quem defenda que seria possível cortar a dependência russa já, mas implicaria reduzir consumos industriais e domésticos, com os respetivos apoios. Um estudo publicado por um grupo de economistas alemães conclui que um embargo russo implicaria uma redução de 30% no fornecimento de gás do país, pondo em causa 8% do consumo, lê-se na análise publicada na revista VoX EU. O resultado seria uma quebra do PIB entre 0,5% e 3%, significativo mas “gerível” e inferior à quebra económica durante a pandemia de covid-19 (-4,5%).

“Não há dúvidas de que são custos económicos substanciais, mas são claramente geríveis no sentido de que a economia alemã resistiu a quedas mais profundas nos últimos anos e recuperou rapidamente”, concluem. Em março, a Goldman Sachs projetou que se a Rússia fechasse as torneiras, o preço do gás iria disparar e o cenário seria uma quebra do PIB de 2,2% em 2022. 

Com a incerteza sobre a duração da guerra, a reação à crise humanitária e o fantasma de uma nova crise económica a pesar nas decisões comunitárias e nas posições de cada país, um embargo poderá ser a decisão de último recurso – com a pressão a aumentar do lado da Ucrânia. Zelensky criticou ontem a indecisão dos europeus, afirmando que alguns países europeus parecem achar perdas financeiras mais horrorosas do que crimes de guerra. “Ainda precisamos de convencer a Europa de que o petróleo russo não pode financiar a máquina militar russa”, afirmou o Presidente ucraniano. 

Há quem defenda que pequenas mudanças poderiam contribuir para uma menor dependência da energia russa, como baixar o aquecimento um ou dois graus em edifícios residenciais ou comerciais, mas haverá sempre algo a sacrificar numa decisão deste género, desde logo o conforto. Segundo a ONG Energy & Utilities Alliance, poderia diminuir a dependência de energia russa na UE em 10%, quando atualmente depende em 30% a 40% do gás russo.