Sem as verbas da Europa, Portugal ter-se-ia afastado mais da União Europeia. A conclusão consta de um trabalho de investigação liderado pelos professores João Bernardo Duarte e Pedro Brinca, que avaliaram o impacto dos Fundos Europeus Estruturais e de Investimento (FEEI) nas diferentes regiões em Portugal. João Bernardo Duarte, em entrevista ao Nascer do SOL, considera que «cada euro investido gerou um valor acrescentado bruto (VAB) de 2,4 euros ao fim de três anos, contribuindo de forma decisiva para a convergência» das regiões entre si e em relação à Europa. O investigador da SBE diz ainda que a distribuição dos apoios pelos municípios concentra-se, sobretudo, nas regiões onde se pretende atingir convergência económica em relação aos municípios mais desenvolvidos. Em percentagem do PIB, a região do Alentejo recebeu a maioria destes fundos, seguida da região Centro. Lisboa e Algarve são as regiões do país com menor alocação de fundos, quer em termos absolutos quer em percentagem do PIB. O responsável admite que a aplicação das verbas tem sido rigorosa, mas deixa um alerta em relação ao entusiasmo em torno do Plano de Recuperação e Resiliência, considerando que não vai ser o programa que irá ‘salvar’ a economia nacional. «Há muito tempo que estamos sempre à espera do El Dorado que nos vai resolver todos os problemas», diz, defendendo a aplicação de estratégias que levem «a economia portuguesa a um crescimento sustentado, que crie mais valor e melhores empregos», assim como a realização de reformas que têm sido sucessivamente adiadas e poderão dar benefícios no futuro.
No estudo que fez com Pedro Brinca e Sofia Terlica conclui que os fundos europeus são decisivos para a convergência económica de Portugal. Mas os relatórios de várias entidades internacionais mostram que Portugal está aquém do desejável. O que tem falhado?
Houve um processo de aproximação graças aos fundos, sem estes teríamos divergido ainda mais. Há duas leituras para os nossos resultados. Um é que os fundos cumprem o seu papel, uma vez que parecem estar a criar valor nas regiões portuguesas, contribuindo para a sua convergência. A segunda leitura é mais grave e mostra que o nosso crescimento é anémico. Ou seja, sem os fundos teríamos divergido ainda mais, o que significa que estamos com uma forte dependência dos fundos europeus como principal motor do crescimento, algo que não é obviamente recomendável para nenhum país.
Portugal cresceu mas estamos a falar que a maioria dos países da Europa do Leste já nos passou à frente. Sem fundos, a nossa imagem em termos económicos ainda seria mais assustadora?
Completamente e estamos a falar de um período, a partir de 2014, ou seja, de uma fase de recuperação, onde após a troika deveríamos ter assistido a um crescimento mais elevado, mesmo sem fundos. Vimos no estudo que a região autónoma dos Açores teria crescido metade do que cresceu se não tivessem existido os fundos. O Norte, Alentejo e Centro também teriam crescido menos de um quarto face ao que cresceram. É um pouco assustador e ainda é mais assustador se pensar que, de acordo com os analistas, há a probabilidade de sermos ultrapassados pela Roménia nos próximos dois a três anos. Lembro-me quando era mais novo pensava-se que a Roménia era uma realidade económica muito longe da nossa. Hoje em dia, o que vemos é que vamos ser provavelmente ultrapassados por esse mesmo país..
Estas ‘falhas’ devem-se à má aplicação de fundos, a má estratégia ou a falta de ambição? Muitos economistas falam na necessidade de Portugal de ter a ambição de crescer 3% ao ano todos os anos?
Sem dúvida que deveríamos ter esses valores como meta, aliás, nos anos 90 até aos anos 2000 foi essa a média de crescimento. A verdade é que o crescimento entre 2000 e 2010 não há de ser muito diferente do que se verificou entre 2010 e 2020, altura em que crescemos, em média, 0,4% ao ano. Estamos completamente estagnados. Mas quando pergunta se os fundos poderiam ter sido melhor aplicados, o que verificamos no estudo é que não. Quando olhamos para o multiplicador económico destes investimentos feitos através dos fundos europeus verificamos que é bastante alto, o que revela que os fundos estão ser bem aproveitados e estão a ficar tanto nas regiões, como ao longo do tempo. Para ter uma ideia, cada euro apoiado pelos fundos europeus gerou 90 cêntimos de aumento de valor acrescentado nas regiões do país. Isto no mesmo ano e chega aos 2,40 euros passados três anos. Um euro multiplica a capacidade produtiva das regiões. Se comparamos isso com outros gastos governamentais chegamos à conclusão que é muito inferior. Em média, um euro gasto do ponto de vista governamental tem um efeito multiplicador à volta de 40 a 50 cêntimos. Estamos a falar do dobro, no caso dos fundos europeus.
Poderíamos ir mais além desse retorno ou esse valor já é suficiente?
Acho que se pode fazer mais, mas quando comparado com outros países posso garantir que é um valor bom. Tivemos em conta outros estudos que foram feitos e apresentam multiplicadores muito parecidos com os nossos. E olhando para o que foi aproveitado em média nos outros países também não estamos longe desses resultados. Agora, olhando para a realidade nacional e analisando os nossos dados chegamos à conclusão que existem casos alguns municípios e algumas regiões que poderiam ter aproveitado melhor os fundos europeus. Basta olhar, por exemplo, para alguns casos de municípios que são vizinhos, que estão dentro do mesmo espaço em termos de região administrativa NUTS II [regiões Norte, Centro, Área Metropolitana de Lisboa (AML), Alentejo e Algarve, no Continente, e as duas regiões autónomas] e que em princípio tiveram um acesso parecido aos fundos europeus, mas apresentaram desempenhos completamente diferentes. Apesar de estarmos na média, existe uma distribuição muito grande em relação ao que foi o impacto. O impacto médio nos municípios rondou os 3,4% ao ano, isto é, os municípios cresceram, em média, 3,4% ao ano a mais graças aos fundos. No entanto, isso também é o que faz os resultados chegarem a um valor um pouco menor no que toca às regiões, já que há municípios em que o impacto foi praticamente nulo, quando noutros o impacto chegou aos 25%, ou seja, esses municípios cresceram 25% ao ano por conta dos fundos europeus. Isso mostra que há uma grande variabilidade face ao retorno dos fundos em Portugal, mas em média foi muito bom e compara bem face a outras regiões da Europa. Mas também revela que há imensa oportunidade de melhorar determinadas regiões, que menos aproveitaram os fundos e que poderiam fazer melhor uso.
Quais foram as regiões que mais aproveitaram e as que menos aproveitaram?
Ao nível da NUTS II, mas que está muito ligado ao que foi a quantia e o volume dos fundos que receberam, a região Autónoma dos Açores foi a que a mais beneficiou e teria visto o seu crescimento reduzido para metade caso não tivesse recebido essa verba – portanto, aproveitou bem. De seguida, temos a região do Alentejo, seguida pela região Norte/Centro. Já os que menos aproveitaram foi a região Metropolitana de Lisboa e o Algarve, não no sentido de não fazerem bom uso dos fundos, mas porque não tiveram acesso. Não estamos a falar de ineficiência, simplesmente não tiveram tanto acesso. Ainda assim, é preciso identificar os municípios que poderiam fazer mais.
Quando diz que poderiam fazer é porque não aplicaram a verba que tinham disponível ou porque não cumpriam os requisitos para acederem a mais fundos?
Têm de responder a determinadas calls, que são definidas pelos programas operacionais que operacionalizam essa alocação dos fundos. Ou seja, são criadas calls com temas específicos que estão sempre inseridos dentro dos temas estratégicos definidos nos quadros plurianuais. Por exemplo, o PT 20-20 estava muito ligado à internacionalização e houve várias calls no sentido de ajudar as empresas a exportarem mais e a ganharem mercados lá fora. Essas calls são abertas tanto a instituições públicas, como a empresas. Quando se diz que não aproveitaram não estou a dizer que foram as empresas que não aproveitarem bem os fundos que receberam porque o nosso estudo é feito ao nível médio e não posso analisar caso a caso cada. No entanto, posso dizer que, em média, houve municípios que receberam poucos fundos ou aplicaram pouco os fundos quando poderiam ter aplicado mais. Nesse sentido, podemos concluir que haverá municípios que provavelmente poderiam ter feito mais projetos ou que poderiam ter-se candidato a mais.
Longe vão os tempos em que as autarquias usavam essas verbas para fazerem rotundas…
A aplicação das verbas tem sido mais rigorosa. Pelo menos, Portugal neste último quadro – não olhei para o QREN, que foi o quadro anterior – parece que conseguiu criar bastante valor adicionado. Mas é importante referir que analisámos apenas o impacto do valor acrescentado nas empresas não financeiras, o que significa que, são projetos feitos pelos municípios, mas que, em média, criaram valor no setor privado da economia.
Uma das queixas diz respeito às freguesias que dizem não ter acesso e que são o parente pobre…
Não posso tirar do estudo nenhuma conclusão em relação a isso, mas uma possível mudança na gestão dos fundos e na alocação de quem tem o controlo pode ser alvo de uma discussão de debate nacional. Se é para melhor ou para pior não consigo dizer, porque não tenho dados ao nível da freguesia, mas sim ao nível do município. É algo que seria interessante estudar, porque os dados existem e assim seria perceber como é que as freguesias poderiam fazer melhor ou pior uso destes fundos.
Somos o sétimo país que mais recebeu, mas o 10.º em termos de PIB…
Uma coisa é o volume recebido, outra coisa é o volume face ao nível de desenvolvimento do país. Ao nível de desenvolvimento do país somos o 10.º que mais recebe. Há quem tenha PIB menor do que o português e, como tal, recebeu mais fundos face ao seu nível de desenvolvimento.
Face à importância dos fundos europeus para o desenvolvimento económico como explica que verbas do PT 2020 não tenham sido totalmente utilizadas?
Há sempre espaço para melhoras, mas, se olharmos em termos comparativos com outros países, especialmente aqueles que têm os envelopes grandes da União Europeia, Portugal está em segundo lugar ao nível da execução dos fundos europeus. Não estamos mal nesse sentido, estamos apenas atrás da Lituânia. É certo que, ao nível da execução, há sempre coisas a fazer, mas isso também é verdade para os outros países, porque as escolas demoram a ser feitas, depois há vários constrangimentos burocráticos, nomeadamente aqueles que envolvem concursos públicos, o que acaba por provocar sempre atrasos nas próprias execuções dos projetos, mesmo que sejam levadas a cabo por entidades privadas. O importante é que, enquanto existem alguns fundos por aprovar e executar, sejam agilizados. Portugal tem agora o PT 20-30 e também o PRR [Plano de Recuperação e Resiliência], em que este último, de certo modo, preenche algum possível potencial vácuo que pudesse existir entre um fundo e o outro. No entanto, nestes quadros plurianuais não existe um compasso de espera entre um e o outro, já que há sempre espaço para os projetos serem aprovados e executados, mesmo recorrendo a fundos anteriores e com os novos a começarem. Mas, no geral, não existe um grande diferencial entre o acesso os vários fundos europeus.
E quais são os países com os envelopes maiores?
Os maiores envelopes vão sempre para países menos desenvolvidos. Por exemplo, neste caso quem tem mais recebido é a Polónia e a Roménia.
Nota uma grande diferença entre projetos que são aprovados nesses países e os nossos?
As entidades nacionais têm sempre uma flexibilidade na abertura das calls com vista a adaptarem-se melhor ao que são os recursos e as infraestruturas das diferentes regiões, na Europa. Mas há sempre uma linha comum. Quando é assinado um acordo de parceria há sempre objetivos estratégicos que são definidos, mesmo que haja obviamente algumas diferenças. Por exemplo, o próximo Portugal 20-30 – penso que não irá mudar, apesar da realidade da covid – está direcionado para um realinhamento estratégico europeu com o objetivo de tentar trazer mais indústria em termos de localização geográfica para a Europa. E vê-se agora essa necessidade com o problema da dependência da guerra da Rússia com a Ucrânia.
É o caso do gás e do petróleo…
Exatamente, a questão da guerra trouxe problemas ainda mais graves e que possivelmente irão afetar o próximo Orçamento de Estado porque vamos assistir a outras necessidades, como é o caso de gastos militares, entre outros. Não tenho dúvidas de que isso vai afetar de alguma forma os objetivos, mas acredito que, em larga escala, os objetivos vão estar muito ligados à requalificação profissional, à transição digital e energética para fazer face aquilo que são os desafios da mudança climática.
E o PRR já vai, em grande parte, responder a estes desafios?
Exatamente. São desafios que ainda não foram implementados mas foram decididos antes. Estes objetivos estratégicos já tinham sido decididos no PT 20-30, mas foram agarrados também pelo PRR por serem considerados objetivos estratégicos da Europa.
Como vê a ideia de que a ‘bazuca’ é quase uma espécie de milagre ou uma tábua de salvação para a economia portuguesa?
Temos de ser mais moderados. Há muito tempo que estamos à espera do El Dorado, daquela bala de prata que nos vai resolver todos os problemas, não é assim que funciona. Precisamos de fundamentos que levem a economia portuguesa a um crescimento sustentado, que crie mais valor e melhores empregos ao longo do tempo. Não podemos estar tão dependentes de um apoio externo ou de uma decisão centralizada. Essa não é a solução, nem nunca foi assim historicamente, não me parece que venha a ser agora. Mas também acho que existe uma necessidade enorme de reformas estruturais, que iriam dar benefícios não só hoje mas no futuro.
Essas reformas estão contempladas?
Não me parece.
É preciso mudar mentalidades?
É preciso mudar mentalidades, mas também é preciso ter vontade e capacidade de fazer sacrifícios a curto prazo com vista a fazer essas reformas que trazem benefícios a longo prazo.
E que tipo de reformas?
Não sou especialista em economia nacional, comecei a investigar mais a partir de 2017 e, mesmo assim, grande parte da minha investigação está relacionada com os dados da Europa como um todo e com os Estados Unidos. Mas sei quais são as grandes amarras: o setor da justiça precisa urgentemente de reformas. A morosidade dos processos e a falta de capacidade de decidir os processos levam a graves entraves ao crescimento económico. Quando não se consegue resolver os contratos acaba-se por atrasar todas as decisões e todas as operações das empresas. Outro grande problema diz respeito à regulação do mercado de trabalho, que gera algumas frustrações, tanto do lado dos empresários, como dos trabalhadores. Outro problema, mas que é um bocadinho mais complicado de se resolver que é a falta de grandes marcas. Por exemplo, a Suécia tem um Ikea, cada país costuma ter uma grande marca e cá parece que sempre que ameaçamos ter uma grande marca estas desaparecem do país. Temos que nos perguntar se existe algum problema nesta questão, nomeadamente a forma como está colocada a carga fiscal, o que poderá levar a essas situações ou se são outros problemas, por exemplo, as infraestruturas. Convém fazer um estudo aprofundado para perceber quais são essas causas, porque tentar criar procura em cima de uma estrutura que já não funciona por si só não parece que vá ser a solução para nada.
E devido a estes entraves e se nada for feito os resultados vão ser sempre os mesmos…
Exatamente.
A ‘bazuca’ poderia ter sido mais direcionada para esse tipo de reformas, em vez de ir para a digitalização da função pública?
Essa é uma dúvida que existe. Vamos assistir a um grande investimento para a digitalização do setor público. Fantástico, mas qual é o retorno disso? Qual é o indicador que temos de olhar para sabermos se foi um investimento com sucesso? Quanto é que os contribuintes vão poupar com esta digitalização do setor público? Quantos funcionários públicos a menos irão existir devido a esta automação das tarefas?
Isso não está respondido…
Não e sem sabermos isso é muito difícil dizer se esse investimento foi bem feito, quais seriam as alternativas, qual foi o custo de oportunidade de isso ter sido feito. Sem essa avaliação parece que vamos estar expostos sempre a cometer os mesmos erros.
E há cada vez mais vozes a dizer que Portugal não pode correr o risco de desperdiçar essa verba….
Sem dúvida. Independentemente dos projetos, a verba é para usar.
O programa está mais desenhado para o lado do Estado do que para as empresas. Seria desejável ter sido feito de outra forma?
Acho que sim. É um pouco assustador o volume de investimento que será feito na máquina do Estado e ainda para mais sem esses claros indicadores de qual será o retorno para esse investimento, principalmente quando os resultados do estudo mostram que existe um grande impacto ao nível das empresas.
Seria desejável redirecionar o PRR como é pedido pelo tecido empresarial?
Acho que agora seria muito difícil. Não estou a ver como é que isso seria exequível. Parece que o que foi pago às empresas até agora foi muito inferior ao que Estado, pelo menos, pela informação que tenho tido.
Daí ser desejável existir uma comissão de acompanhamento para avaliar a aplicação de fundos?
Sem dúvida, isso é fundamental. Ao fazermos a análise do município verificamos que aparentemente os fundos foram bem aplicados e bem controlados, pelo menos, estas verbas do PT 20-20. Caso contrário, o dinheiro teria desaparecido da região. Os nossos resultados indicam que o dinheiro gerou valor nas regiões. Claro que temos analisado algumas reclamações de empresários em relação à elevada burocracia, mas aqui há sempre uma tensão natural, onde pouca burocracia pode levar a maior fraude e a um menor nível de controlo da aplicação das verbas. Mas muita burocracia desincentiva que muitos projetos não sejam feitos e acaba por dificultar, nomeadamente junto de pequenas e médias empresas, que consigam cumprir todos os critérios que essa burocracia implica. Agora, com o PRR vai ser um bocadinho diferente e já foi aberto uma candidatura para a auditoria do PRR pela Comissão Europeia, que conta com uma verba avultada: acima de um milhão de euros, não tenho ideia de quem é que ganhou. Mas vai ser fundamental perceber como é que vai ser auditada a aplicação dos fundos do PRR para que não aconteça o que aconteceu no passado nos quadros anteriores do quadro PT 20-20.
Com este novo Governo, António Costa desistiu do ministério para os fundos europeus e entrega-os ao núcleo político. É uma decisão acertada ou poderá prejudicar?
Não tenho conhecimento político para dizer isso. Mas, pelas opiniões que tenho ouvido, não veem essa mudança com bons olhos. Mas vai haver um debate que vai dominar o espaço mediático nos próximos anos e que tem muito a ver com o PT 20-30 e com a questão da regionalização. Esse debate da regionalização vai ser muito importante e vai ter um grande impacto sobre a forma como estes fundos vão ser geridos.