Em menos 24 horas, o que não tinha data certa concretizou-se: o Governo decidiu na quinta-feira levantar o uso de máscaras sem esperar que fosse atingido o nível de mortalidade estabelecido como meta na resposta à covid-19, Belém promulgou em tempo recorde e a velha normalidade chegou esta sexta-feira, incluindo nas escolas, com alguns a manter a cara coberta em espaços públicos fechados e outros a viver em pleno o dia da libertação. Se a pressão da opinião pública e o cansaço já era muito, a Direção Geral da Saúde tinha mostrado dias antes maior cautela, num esforço para que pelo menos a Páscoa fosse ainda vivida com alguma contenção. Para o epidemiologista Manuel Carmo Gomes, é o momento adequado para avançar, mas há que ter a perceção de que o vírus não desapareceu e continua «muito ativo», nota. Têm sido diagnosticadas diariamente cerca de 10 mil novas infeções, mas estas serão apenas uma pequena parte. «A taxa de positividade está nos 25%, o que significa que em cada 100 testes, 25 dão positivo. É evidente que é de esperar que isto acontecesse, porque não fazemos rastreios oportunísticos, apenas quando há sintomas suspeitos. Há uma elevada transmissibilidade e com a saída das máscaras naturalmente o vírus irá circular mais», explica.
E o que se segue? Carmo Gomes sublinha que no imediato há um aspeto positivo: com a população maioritariamente vacinada e manifestações mais ligeiras, os próximos meses deverão permitir continuar a fortalecer a imunidade natural. «Se reforçarmos a nossa imunidade na primavera-verão, isso é importante para quando chegar o próximo outono-inverno», sublinha.
Há no entanto que ter em conta que, com o nível atual de circulação, torna-se mais fácil ser infetado. «Devemos manter aquele mantra que temos desde o início que é proteger os mais frágeis, porque são essas pessoas que estão a morrer com covid-19. Temos tido cerca de 20 óbitos por dia e 75% são pessoas com mais de 80 anos,a maioria com mais de 90», diz.
Aqui chegados, colocam-se várias questões: Qual seria o número de mortes expectáveis nesta altura? A incidência do vírus está demasiado alta? Será assim todas as primaveras? Será pior nos invernos? Estamos já numa situação de endemia? «Em epidemiologia dizemos que uma infeção é endémica se está entre nós permanentemente e todos os dias há casos. Por este conceito, desde 2020 que estamos em endemia. Na forma geral que tem sido usada, que é pensarmos que esta doença será endémica quando estiver entre nós com um caráter previsível em que contamos com ela e sabemos o que esperar, diria que ainda não estamos nesta fase», responde Carmo Gomes. «Não sabemos quantos casos são expectáveis no próximo outono-inverno ou quantos mais casos vai haver do que na primavera. Tenho muita dificuldade em responder a essas perguntas e numa doença endémica típica é algo a que conseguimos responder. Sabemos o que é o normal da gripe, na covid-19 não».
Não é que não caminhe para aí. A dificuldade, explica, é que dois anos na história de uma doença nova são pouco tempo. «Convivíamos com os outros coronavírus mas há milhares de anos. Possivelmente também houve esta fase de adaptação em todos os vírus, mas nunca tínhamos tido esta experiência de acompanhar em direto a adaptação de um vírus ao homem», continua, admitindo que esta fase de adaptação, mesmo com as vacinas, pode durar vários anos e que há questões que mais do que uma resposta científica exigem uma reflexão da sociedade. «Há pessoas que parecem muito impressionadas por continuarem a morrer diariamente 20 pessoas com covid-19. Se é o normal, não sei dizer, é mais algo que a sociedade tem de refletir se é aceitável ou não».
Uma causa de morte comum
Desde o início do mês morreram 415 pessoas com covid-19 em Portugal, quase tantas como no mesmo período do março. A covid-19 tem representado 5% das mortes diárias no país, diz ao SOL o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, considerando que estas têm estado dentro do esperado. O Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde da Universidade de Washington (IHME) estima que a covid-19 seja atualmente a segunda causa de morte em Portugal, só atrás do AVC, mas usa números de óbitos mais elevados na análise, o que leva o INSA a considerar a análise pouco plausível. Mas por agora não se pode acrescentar mais: continua sem haver dados em Portugal sobre causas de morte para os anos da pandemia – só em maio o INE publicará as estatísticas de 2020. «É possível que passe a ser uma das causas de morte mais comuns entre os mais idosos, mas é uma das questões para as quais não temos resposta», diz Carmo Gomes.
O epidemiologista lembra que já de outras vezes um fator alterou o que parecia um bom cenário: o aparecimento de uma nova variante que escape à imunidade conferida pelas vacinas. «Não penso que possamos dizer que isto são favas contadas. Esta transição vai ter ainda alguma dificuldade». Não descarta também que, caso haja uma alteração, as máscaras e outras medidas tenham de regressar.