Uma região separatista moldava, parada no tempo como uma espécie de relíquia viva da URSS, pode tornar-se mais uma frente da guerra na Ucrânia. Uma série de explosões na Transnístria, dominada por antigos agentes secretos soviéticos – os mais poderosos dos quais são donos do FC Sheriff, que ganhou fama mundial o ano passado, ao bater o Real Madrid por 2-1 – e gangsters, levou as autoridades separatistas a apontar o dedo à Ucrânia, que por sua vez acusa a Rússia de orquestrar provocações, de maneira a justificar uma ofensiva a partir deste território.
A Transnístria pode parecer quase insignificante à primeira vista, com uma população que colapsou de meio milhão para uns 200 mil desde o fim da URSS, sofrendo uma hemorragia de jovens à procura de oportunidades, escapando deste território pobre, dependente economicamente da Rússia. Mas a Transnístria, onde estão umas duas mil tropas russsas, fica próximo de Odessa, cuja conquista pelo Kremlin cortaria todo o acesso da Ucrânia ao Mar Negro. E o que não falta na Transnístria são armas, legado da Guerra Fria, quando a República Socialista Soviética da Moldávia estava na fronteira oeste da URSS.
Entre os alvos das explosões, denunciaram autoridades separatistas, estava um dos maiores arsenais da Europa, na pequena aldeia de Kolbasna. Aqui, os 1500 militares do Grupo Operacional de Forças Russas na Transnístria – herdeiro do XIV Exército Soviético, lançado sobre esta região no colapso da URSS, com a missão de proteger este depósito de armas – guardam umas 20 mil toneladas de velhas munições soviéticas. Terão sido atingidos por drones vindos da Ucrânia, na quarta-feira, algo a que o Governo da Transnístria apelidou de “ataques terroristas”.
No dia anterior foram destruídas duas torres de rádio, tendo o Ministério do Interior da Transnístria sido alvo de fogo de lança-rockets. Além de ter sido atingido um aeroporto militar nos arredores de Tiraspol, capital do território separatista. Já Kiev assegurou que se tratam de “ataques de falsa bandeira”, à semelhança do que assistimos no Donbass, dias antes da invasão, culpando o Serviço Federal de Segurança russo (FSB).
Seja como for, um ataque contra os paióis de Kolbasna poderia ser desastroso, alertou Ion Leahu, antigo membro da comissão encarregue de manter a paz entre Tiraspol e Chisinau. “Se houvesse uma explosão seria devastador para a Ucrânia e para a Moldávia. Essa detonação poderia ser equivalente à bomba atómica de Hiroshima”, explicou ao El País. Que avançou que o herdeiro do antigo XIV Exército se preparava para uma guerra, escavando trincheiras e proibindo as tropas de gozar licenças.
Xerife impõe a lei, o Kremlin também Na Transnístria, oficialmente chamada de República Moldava Peridniestriana, vêm-se foices e martelos em todo o lado, mas também o logótipo da Sheriff, um conglomerado que se estima controlar uns 60% da economia deste território. É dona de cadeias de supermercados, das estações de serviço e empresas de construção.Também têm um destilaria do típico conhaque moldavo, a produção de caviar, um concessionário da Mercedes-Benz, jornais, canais de televisão e a rede móvel, bem como o FC Sheriff.
São monopólios que, à semelhança do que vemos noutras ex-republicas soviéticas, surgem com a queda da URSS, durante a qual a Transnístria declarou independência, dada a desconfiança da sua maioria russa e ucraniana quanto ao poder central, que queria o romeno (também chamado de moldavo) como língua oficial. Nesses tempos, dois antigos agentes secretos, Viktor Gushan e Ilya Kazmaly, aproveitaram a era das privatizações, saindo vencedores de uma guerra sangrenta no submundo do crime moldavo.
“Se for aos nossos cemitérios, verá ruelas inteiras de bandidos”, explicou Valery Litskay, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros dos separatistas, à AFP, admitindo que o seu Governo “não monitorou quem matou quem”. Perante este caos, só queriam que as fábricas continuassem a funcionar, inspirando o nome da Sheriff, fundada em 1993, quase como uma promessa de lei e ordem, de pôr fim aos tiroteios entre mafiosos.
Se não há grandes dúvidas que o Governo separatista esteja nas mãos do Sheriff, o principal financiador do Renovação, que tem maioria absoluta no Parlamento, não serão somente Gushan e Kazmaly a decidir o futuro da Transnístria. O outro mestre dos separatistas é a Rússia, que paga todos os meses um subsídio equivalente a 15 dólares aos reformados da Transnístria, além de vender gás natural a preços abaixo do valor de mercado. Daí que cerca de 80% da eletricidade do resto da Moldávia seja produzida neste território, que criou uma enorme indústria metalurgica, monopólio da empresa russa Metalloinvest, graças ao baixo custo da energia.
Já a Moldávia, um dos países mais pobre da Europa, que recebe 100% do seu gás natural da Rússia e usava sobretudo o porto de Odessa para as suas exportações, deu por si entre a espada e a parede, tentando não enfurecer o Kremlin, ao mesmo tempo que a guerra na Ucrânia bate à sua porta. Parece impossível que a Moldávia conseguisse sozinha enfrentar os separatistas da Transnístria. Além das forças russas, Tiraspol conta com 10 mil tropas, mais uns 15 mil reservistas e tanques modernos T-55 e T-72, enquanto o Governo moldavo só dispõe de sete mil militares.
Já a população da Transnístria, arrisca ser apanhada no conflito, levada de arrasto pelo Kremlin. “Eu sinto-me russo. A minha família, os meus amigos, as pessoas à minha volta sentem-se assim também”, explicou Rodion Osadchy, um professor de 30 anos, oriundo de uma pequena vila transnítria, à Al Jazeera. “Muitas pessoas aqui identificam-se como soviéticas apesar da União Soviética já não existir”, continuou. “Dito isto, muitos de nós têm um sentimento neutral quanto ao que está a acontecer na Ucrânia, toda a gente tem família nestes países, é algo muito sensível para nós”.