Alfredo e Cândida fazem a sua ginástica matinal num jardim de Benfica, a pedalar disciplinadamente na bicicleta de rua depois de uma ida às compras. São 85 e 84 anos, bem disfarçados, diga-se, e o corpo precisa de continuar a mexer, contam. Passa uma semana desde que deixou de ser obrigatório o uso de máscara e, se agora já saem mais, ainda não foi desta que alinharam no regresso à normalidade. A máscara só salta para beber uma bica de manhã: «Isto ainda não acabou ou pelo menos ainda não lhe vimos o fim», diz Alfredo, observando o movimento na rua: «Esta semana diria que anda aí 50% sem máscara, mas muitos continuam a usar e nós também vamos continuar». Cândida completa o marido: «É que se a gente não tiver cuidado, ninguém vai ter por nós e a saúde paga-se caro», atira. «Cada vez mais caro», volta a observar Alfredo.
Casados há 60 anos, mais cinco de namoro, foram anos mais resguardados e descobriram novas rotinas lá em casa como ouvir a Rádio Amália para fugir das notícias de enfiada que matraqueiam a cabeça. E com caras mais ou menos destapadas, Alfredo diz que há coisas que se notam: «As pessoas estão mais velhas, os anos não perdoam. E algumas parece que envelheceram mais, isto do covid desmoralizou um bocado». Eles vão andando, com saúde e as três doses da vacina, mas já se sabe que o seguro morreu de velho.
Não parecem estar sozinhos no pensamento: seja por hábito ou por cautela, esta sexta-feira continuavam a ser muitas as máscaras na rua, umas no sítio certo, outras penduradas no queixo. Dentro das lojas, também continuam a ver-se, sobretudo atrás do balcão. E há quem não mude uma vírgula na estratégia contra o vírus. No mesmo bairro, encontramos uma pastelaria ainda totalmente blindada contra a covid-19: na sala com mesas entra-se à vontade sem máscara, mas o espaço está dividido, com a zona de acesso ao balcão vedada. A porta continua a ter plásticos a servir de barreira e fazem-se os pedidos em mesas estrategicamente colocadas para deixar os funcionários numa bolha, enquanto os bolos e salgados continuam expostos junto à montra. Porquê?_Fernando, funcionário da Pastelaria Fim de Século, é curto: «Sinto-me mais seguro, eu e os outros». Não há planos para voltarem ao normal e os clientes já conhecem o esquema, embora alguns se inclinem debaixo dos plásticos. «Alguns reclamam, outros acham que é normal». A espreitar a montra dos bolos, Matilde, de passagem por Benfica, sorri. «Parece um bocado exagerado, mas está bem», diz, sem máscara na cara mas ainda a usá-la às vezes: «Não é tanto por mim, mas tenho pessoas mais velhas à volta e temos de cuidar dos outros».
Não muitos metros adiante, Samuel e Gabriel, barbeiros de profissão, também ainda não tiraram a máscara, mas é só para quando estão a trabalhar. «Como estamos muito perto da cara das pessoas, achamos que por agora é melhor assim», diz Samuel, à frente da Barbearia Malta, que de resto só tem bem a dizer da ‘libertação’. Até porque há mais gente a vir ao barbeiro e cabelos e barbas que não levavam uns toques profissionais há algum tempo. «Abrimos em plena pandemia e há caras que só estamos a ver agora. Ainda noutro dia esteve cá um cliente a cortar o cabelo pela primeira vez sem máscara e a minha reação foi logo: não te imaginava nada desse jeito», diz.
Não tem sido uma reação incomum, desde alunos que nunca tinham visto a cara dos professores a colegas de trabalho que não se conheciam de outra forma. Quando os olhos deixam de ser o único cartão de visita, descobrem-se feições diferentes das que se imaginavam: afinal as pessoas parecem mais velhas ou mais novas, mais bonitas ou mais feias. No café O Caminhense, também em Benfica, Daniel Gonçalves, à frente da casa há 30 anos, voltou a exibir o seu bigode atrás do balcão, para surpresa de alguns clientes mais recentes. «Já me disseram que não estavam à espera que eu tivesse bigode», sorri. Encontramo-lo sem máscara a meio da manhã, mas quando chegar a hora de almoço vai voltar a pô-la: «É assim que temos feito: quando está menos gente e temos distância não usamos, à hora das refeições pomos», explica, resumindo o que tem visto: «As coisas estão a voltar ao normal, mas é devagar devagarinho, temos de continuar a ter algum cuidado». Já o negócio está melhor um pouco – seis meses fechados fizeram mossa – mas ainda abaixo do pré-pandemia e longe do que já foi, diz. «Era um bairro mais movimentado, agora temos pessoas sobretudo de mais idade». Mas o que preocupa agora são os preços que não param de subir e não vê normalidade pela frente: «Está muito complicado».
Do outro lado da rua ergue-se o Mercado de Benfica, onde os mascarados também convivem agora com os desmascarados num equilíbrio espontâneo de vontades. Como foi a primeira semana sem máscaras? «Ótima», responde Miguel, à frente da sua banca de fruta. Abandonou a máscara sem hesitar e desde a sexta-feira da libertação que já não anda com nenhuma. «Respira-se melhor, então aqui estava sempre a transpirar e o verão era o pior», conta. Entre os clientes há aqueles que continuam a vir de máscara, os que não a trazem e aqueles que nunca mais apareceram. «Há gente que não sei o que lhes aconteceu, ou passaram a ir a outra banca ou deixaram de vir».
Na banca de Paula, uma das peixeiras do mercado, a máscara também já caiu. Não a tirou logo na sexta-feira – esperou uns dias para ver como eram as coisas e esta quinta-feira finalmente decidiu-se a experimentar a nova liberdade: «Foi engraçado, uma senhora até disse: Ai Paula, nem te estava a conhecer. Acho que não mudei assim tanto». Percebe a preocupação de alguns clientes que continuam a aparecer de máscara, sobretudo os mais velhos, mas é da opinião de que se não começar a voltar à normalidade aos poucos nunca mais se volta. Teve covid-19 há pouco tempo, depois das três doses da vacina, ligeiro. «Não há hipótese, ou é um vírus ou é outro, a partir de agora acho que vem sempre qualquer coisa por isso temos de fazer um esforço. Vamos ter de conviver com isto da melhor forma possível». Se as máscaras voltarão a ser obrigatórias ninguém arrisca, mas também isso passou a ser normal.