Visto como um dos maiores festivais LGBTIQ+ no mundo, o Sydney Gay & Lesbian Mardi Gras é também o segundo maior evento anual do estado australiano de Nova Gales do Sul em termos de impacto económico, gerando 30 milhões de dólares anualmente para o estado. Mas este ano, antes da sua realização – no dia 5 de março – uma parte menos conhecida da história LGBTQI+ do país veio à tona através de um novo podcast, lançando uma longa e escura sombra sobre a habitualmente colorida celebração. The Greatest Menace desenterrou a verdade por trás da “única prisão gay do mundo” na pequena cidade australiana de Cooma, destinada exclusivamente a “encarcerar indivíduos por ofensas homossexuais”. Supostamente, servia como “campo de testes humanos para tratar a homossexualidade”.
O que acontecia em Cooma? De acordo com o podcast citado pela BBC, na prisão – que iniciou as suas operações em novembro de 1873, fechando portas em 1900 e reabrindo-as em 1957 – muitos dos funcionários “nem sabiam o verdadeiro motivo pelo qual os prisioneiros gays eram segregados no local”. Les Strzelecki, atualmente com 66 anos, começou como oficial dos serviços de custódia na prisão em 1979, e mais tarde montou o Museu de Serviços Corretivos em Cooma. De acordo com a mesma publicação, Strzelecki acreditava que os presos eram enviados para lá “para a sua própria segurança”. “Cooma era uma instituição de proteção. Nós carimbávamos os prisioneiros homossexuais com ‘N/A’: não associação com prisões convencionais”, afirmou à agência britânica. “Eles corriam risco de violação em prisões maiores como Long Bay, em Sydney”, explicou.
Contudo, Cliff New, outro ex-funcionário da cadeia, afirma que sabia que as razões eram muito menos benignas. Ao The Greatest Menace, revelou que, na altura, as “visitas” de psicólogos e psiquiatras eram recorrentes. E acredita que os especialistas vinham com a missão de “converter os homossexuais”: “Estavam a tentar colocá-los no caminho ‘certo’. Achavam que poderiam ‘curá-los’”, admitiu, avançando que era também por isso “que os prisioneiros estavam em celas individuais”. “Não podíamos colocá-los juntos! Esse foi um dos nossos maiores problemas”, lembrou New, agora com 94 anos.
Para lá destes testemunhos, segundo a BBC, documentos históricos sugerem que o ministro da Justiça de Nova Gales do Sul (NSW), Reg Downing, assumiu a responsabilidade pelo estabelecimento e tinha muito orgulho dele, apelidando-o “o seu projeto de estimação”. Em 1957, ao The Sydney Morning Herald, Downing afirmava que não havia encontrado em nenhum lugar da Europa ou da América prisões onde homossexuais fossem separados dos outros prisioneiros. E, no ano seguinte, em comunicado, o próprio nomeou a prisão de Cooma como “a única instituição penal do mundo dedicada especificamente à detenção de infratores homossexuais”.
A homossexualidade como crime
Em meados da década de 50, leis estaduais draconianas reprimiram severamente a homossexualidade ( que em Nova Gales do Sul foi crime até 1984). Até mesmo conversar com outro homem na rua era um motivo pelo qual um homem “poderia ir preso”. Por isso, segundo a BBC, os prisioneiros de Cooma foram encarcerados por serem gays ou por crimes relacionados com a homossexualidade. Muito graças à pressão do comissário de polícia do estado, Colin Delaney, que sentiu “que a legislação corretiva era uma necessidade urgente para combater o mal”. “Essas mudanças legislativas foram muito abrangentes no seu ataque às liberdades civis de homens que se pensava terem desejos homoeróticos”, explicou à estação britânica o historiador Garry Wotherspoon, que falou ainda sobre o peso que a punição que a sodomia (sexo anal) carregava: “Se provado, o homem era condenado a uma sentença de 14 anos”, contou. Tanto Wotherspoon quanto o podcast expressaram evidências sugerindo que a polícia incitaria os homens a cometer atos homossexuais. “Eles usavam agentes bonitões para prender homens gays, seduzindo-os a fazer sexo, geralmente em casas de banho públicas”, defende o historiador.
Em 1958, o governo do estado de Nova Gales do Sul estabeleceu uma comissão para investigar a “causa e tratamento da homossexualidade”, prometendo que incluiria “especialistas nas áreas de medicina, psiquiatria, penologia e bem-estar social e moral”. De acordo com Patrick Abboud, o responsável pelo podcast, uma das questões dos psiquiatras era: “Como é que o poder da tua mãe te levou a desprezar outras mulheres?”. Além disso, Abboud afirmou que, na altura, o “excesso de mãe” foi considerado uma causa significativa da homossexualidade. Foi também nesse ano que a prisão de Cooma foi nomeada “uma instituição especial para criminosos homossexuais condenados” que “facilitaria a investigação” na área.
Uma vez estabelecida uma “avaliação científica do problema e uma possível solução, o governo considera que o problema deve ser atacado com vigor”, acrescentou Downing ao jornal australiano. Mesmo assim, como seria de esperar, a cruzada para erradicar a homossexualidade falhou redondamente. Homens gays tinham relacionamentos contínuos na prisão e mesmo quando saíam em liberdade cometiam delitos para voltar para os seus namorados. “Além de homossexuais, os criminosos sexuais também eram enviados para Cooma e isso estigmatizou ainda mais os prisioneiros gays”, frisou Abboud. “Não está claro quantos prisioneiros homossexuais foram enviados para Cooma, nem quando o deixaram de o ser. Muitos arquivos foram destruídos ou escondidos”, acredita Wotherspoon. Segundo a BBC, os Serviços Corretivos e o Departamento de Comunidades e Justiça de nova_Gales do Sul recusaram-se a comentar as alegações, citando a sua “natureza histórica”.
Abboud acredita que prisioneiros gays podem ter sido enviados para o local até o início dos anos 80, apoiando-se numa declaração de 1982 do ministro dos serviços corretivos que alegava que a polícia ainda “era válida”. De acordo com Wotherspoon , o recente debate parlamentar de um Projeto de Lei de Discriminação Religiosa que ameaça permitir a discriminação com base na orientação sexual, “traz um aviso preocupante”: “A vigilância é necessária para garantir que não recuamos!”, rematava.