Têm sido semanas de declínio no Hospital Beatriz Ângelo, que deixou de ser gerido pelo grupo Luz Saúde a 18 de janeiro, passando a ter gestão pública com o fim da parceria público-privada (PPP). Médicos ouvidos pelo Nascer do SOL são unânimes: a transição não correu bem, com impacto nos doentes, atingindo em particular obstetrícia, cirurgia mas também oncologia. A saída de médicos para o privado (Luz e não só) e para outros hospitais públicos, os limites às contratações e as mudanças na organização do trabalho, com cortes nos turnos de fim de semana para fazer exames, são alguns dos problemas que têm estado a causar atrasos na resposta clínica. Anestesiologia é uma das áreas críticas, com impacto no resto do hospital: os 30 médicos anestesiologista nos quadros passaram a sete – e ao que o Nascer do SOL apurou, chegaram a ameaçar demitir-se se nada fosse feito – mas saíram também imagialogistas e médicos especialistas em obstetrícia. Quantos ao todo ninguém sabe dizer e o hospital, contactado pelo Nascer do SOL, não respondeu em detalhe – mas reconhece que no caso de anestesiologia está a viver uma «situação excecional».
«Considerando a necessidade de reforço de médicos anestesiologistas no Hospital Beatriz Ângelo, foram desencadeados todos os mecanismos legais para dar resposta à situação, designadamente a formalização da proposta de contratação nessa especialidade. O Ministério da Saúde está a acompanhar o Hospital e a ARS de Lisboa e Vale do Tejo na avaliação de soluções específicas para esta situação excecional», respondeu esta semana o hospital, assegurando que o «Conselho de Administração continua totalmente empenhado em suprimir, com a maior brevidade possível, as necessidades de recursos humanos identificadas e assim continuar a assegurar a adequada prestação de cuidados de saúde à sua população».
‘Em janeiro estava tudo a funcionar'
Ao que o Nascer do SOL apurou, a solução terá sido encontrada nos últimos dias para tentar evitar o colapso do hospital, que acabava por estar a aumentar a referenciação para outros hospitais de Lisboa, numa bola de neve que fica maior à medida que se agravam as insuficiências nos hospitais da região, de Vila Franca de Xira, outra ex-PPP, a Setúbal.
Já depois da intervenção do Ministério da Saúde, a liderança do serviço de anestesiologia do Hospital Beatriz Ângelo deverá ser assumida por uma médica do Hospital de Santa Maria, em regime de cedência, com condições especiais para garantir que há equipa, explicou fonte próxima do processo. O Governo deu luz verde a contratos anuais para prestação de serviços médicos a 60 euros à hora, o dobro tabelado no SNS para especialistas (valor que pode ser excedido em casos de ‘manifesta urgência’ com autorização superior) por um prazo de um ano. Estará em cima da mesa a entrada de oito a dez médicos neste regime.
Como o Nascer do SOL noticiou na altura, nos meses que antecederam o fim da PPP, uma das hipóteses equacionadas chegou a ser uma eventual integração do Beatriz Ângelo no Centro Hospitalar Lisboa Norte, mas não chegou a concretizar-se. Perante estas dificuldades, e questionados pelo Nascer do SOL na semana passada, tanto a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo como a administração do hospital refutaram perentoriamente que essa hipótese esteja ou tivesse estado em cima da mesa, não adiantando detalhes sobre os esforços desenvolvidos entretanto, que acabaram por resultar na cedência de uma médica deste centro hospitalar.
Questionado pelo Nascer do SOL sobre esta solução, Alexandre Valentim Lourenço, presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos, que já tinha manifestado preocupação com o que se está a passar em Loures, sublinha que todas as soluções que permitam repor a capacidade de trabalho nos hospitais públicos são bem-vindas. «Se estas soluções fossem aplicadas em todos os hospitais, se o SNS conseguir dar melhores condições de trabalho aos profissionais, não vai continuar a perder médicos», sublinha, defendendo que o caso de Loures reitera que é incontornável mudar os instrumentos de gestão que hoje limitam a capacidade dos conselhos de administração dos hospitais EPE para reter e recompensar as equipas, conduzindo a um êxodo do SNS. «O que vemos aqui é que os bons modelos de gestão devem ser copiados e os maus não», diz, notando que as dificuldades que existem hoje no Beatriz Ângelo, comuns a outros hospitais do país, são um problema que não existia ali há três meses, quando o hospital podia contratar e remunerar os profissionais sem estar sujeito às regras da contratação pública. «Em janeiro estava tudo a funcionar. A população era a mesma, os médicos existem e trabalhavam ali. As regras de contratação que existiam no hospital quando era PPP é que desapareceram e as pessoas simplesmente não vão continuar a trabalhar 70 ou 80 horas por semana podendo ir para outro sítio com melhores condições. E houve médicos a sair para o privado mas também para hospitais públicos onde trabalham menos ganhando o mesmo».
O médico lembra que quando a PPP chegou ao fim já havia esta preocupação e nada foi feito, com a resposta do hospital a degradar-se desde então: «Visitámos o hospital na véspera do fim da PPP e as pessoas estavam muito preocupadas. Depois as principais preocupações confirmaram-se. Tem havido uma incapacidade do hospital para responder às necessidades normais da população, o que é mais grave quando devia estar a ter lugar uma recuperação das listas de espera causadas pela pandemia». Sem dados ao certo para quantificar a quebra na atividade, diz que a informação que chega à Ordem é ilustrativa: sem anestesiologistas, «há especialidades que tinham três dias de bloco e passaram a ter um. Na ginecologia há cirurgias que eram feitas por norma ali, como laqueações de trompas, e deixaram de ser, porque têm de responder a cirurgias prioritárias por exemplo oncológicas e urgências A sala de partos tem transferido utentes todas as semanas porque não há capacidade». A 22 de abril, dia em que um dos anestesiologistas escalados estava doente, chegou-se ao ponto de só haver apenas um médico de turno, lê-se numa nota interna a que o Nascer do SOL teve acesso. O hospital, que serve 300 mil pessoas nos concelhos de Loures, Mafra, Odivelas e Sobral de Monte Agraço, ficou com capacidade apenas para «atos com indicação emergente e life-saving».
Atrasos em biopsias e exames
Entre as equipas do Beatriz Ângelo a informação de reforços começou a circular mas, ao que o Nascer do SOL apurou, espera-se para ver – até porque nem todos os problemas se resumem a anestesiologia. E em especialidades sensíveis como Oncologia as últimas semanas têm sido de preocupação crescente. «Temos tido atrasos nas biopsias e na marcação de exames de seguimento e vigilância. Há exames que pedimos para daqui a seis meses, por exemplo ecografias e mamografias de seguimento, e que só estão a ser marcadas para daqui a um ano, já em 2023», disse ao Nascer do SOL fonte hospitalar, explicando que esta era uma realidade com a qual não se confrontavam há três meses. «Infelizmente a tendência noutros hospitais também é esta mas nós não estávamos habituados a isto, temos os exames sempre a horas. Há indicações clara para vigilância de doentes em risco de recidiva e os prazos internacionais para fazer esta vigilância atualmente não estão a ser cumpridos», diz a mesma fonte, explicando que neste caso o problema prende-se com a saída de imagiologistas mas também com a forma como era gerida a atividade clínica antes do fim da PPP. «Quando não havia vagas nos horários normais para agendamento, abriam vagas extra para exames prioritários para doentes oncológicos ou por exemplo da pediatria ao fim de semana. Como as vagas normais não chegavam, sendo as vagas normais o que o serviço consegue garantir a 100% ou 120% das 8 da manhã às 8 da noite nos dias de semana, tínhamos sempre turnos extra para exames ao sábado e domingo. Era o que nos permitia nunca ter tempos de espera excessivos», explica a mesma fonte. Também aqui a estratégia parece estar agora a mudar, com os primeiros sinais de que podem voltar a abrir turnos extra para alguns exames pelos menos ao sábado. «Basicamente esta transição não foi preparada. Saíram uns e entraram outros, mas o impacto de tudo isto não foi acautelado, com impacto nos doentes. E em oncologia sabemos que todos os dias contam», desabafou ao Nascer do SOL um médico, à espera que o hospital se componha.