Os homens do Endurance já tinham suportado todo o tipo de provações. Desde que o navio encalhara no gelo, em outubro de 1914, haviam passado seis meses do mais profundo desconsolo: temperaturas geladas, uma fome mordente, ventos que enlouqueciam, caminhadas extenuantes. A tudo isso acrescia a sensação de incerteza. A ameaça de morte pairava sobre eles como uma sombra sempre presente.
«Aos poucos e poucos, as condições estavam a tornar-se cada vez mais primitivas», escreveu Alfred Lansing no clássico Endurance – A Incrível Viagem de Shackleton, de 1959. Mas nenhum desses dramas, curiosamente, se comparava com o fim da provisão de tabaco. Quando as últimas farripas foram consumidas, sobreveio «um período de depressão que quase tomava as proporções de luto». O facto de às vezes fumarem até ficarem mal dispostos, para enganar o estômago, não tinha ajudado.
Por essa altura – finais de abril de 1915 – o grupo estava dividido. Enquanto a maioria esperava na inóspita ilha do Elefante, onde tinham chegado a grande custo, Shackleton – o comandante da expedição britânica que se propusera a atravessar a Antártida para redimir a derrota na corrida ao Polo Sul – encontrava-se a bordo do James Caird com cinco homens, a desafiar os perigos da Passagem de Drake, «o mais temido pedaço de oceano de todo o globo – e justificadamente». Continua Lansing: «Na linguagem prosaica, muitas vezes intencionalmente contida das
Recomendações da Marinha dos EUA para a Navegação na Antártida, esses ventos são descritos categoricamente: ‘São frequentemente da intensidade de um furacão e com rajadas por vezes atingindo a 150 a 200 milhas por hora [qualquer coisa como 240-320 km/h]. Ventos de tal violência não são conhecidos em nenhum outro lugar, exceto talvez num ciclone tropical’.
Também nestas latitudes, como em nenhum outro lugar da terra, o mar circunda o globo, sem ser interrompido por qualquer massa de terra. Aqui, desde o início dos tempos, os ventos impeliram impiedosamente os mares no sentido dos ponteiros do relógio em redor da terra para regressar ao local onde nascem, reforçando-se mutuamente. As ondas assim produzidas tornaram-se lendárias entre os homens do mar. Chamam-lhes Turbilhões do Cabo Horn ou ‘barbas cinzentas’.
Estima-se que o seu comprimento de crista a crista ultrapasse uma milha, e os relatos aterrorizados de alguns marinheiros colocaram a sua altura em 200 pés, embora os cientistas duvidem que excedam frequentemente os 80 ou 90 pés». Falamos, portanto, de ondas de 24 a 27 metros.
Nem mesmo o sólido, obstinado e imperturbável Shackleton podia ficar indiferente a esta ameaça. Em especial porque viajavam numa casca de noz que não chegava aos sete metros, com uma vela improvisada. Foram dias angustiantes, sem saberem se se encontravam na rota certa. De 4 para 5 de maio o barquinho foi submergido por uma onda gigantesca…
Ficaram ensopados até aos ossos. Mas tinham resistido. «Foi um ponto de viragem», escreveu Lansing no seu relato emocionante. A 7 de maio, depararam-se com algas, um sinal de que havia terra por perto. No dia seguinte avistaram a ilha da Geórgia do Sul. Tinham percorrido 850 milhas, cerca de 1500 km, em condições inimagináveis. Do outro lado da ilha, havia uma estação baleeira. Foi para lá que se dirigiram.
Deu-se o caso de Shackleton conhecer bem o novo responsável pela estação, Sorlle, um norueguês com um grande bigode revirado nas pontas. Mas Sorlle não o reconheceu a ele. «Quem diabo são vocês?», atirou ao ver aquelas seis almas penadas. «Chamo-me Ernest Shackleton», disse tranquilamente o líder da expedição. Conta-se que Sorlle se virou para trás e não conseguiu conter as lágrimas. Se foram de alegria ou de comiseração não o sabemos.