É preciso lata, e muita, ou antes: tantas – bater-lhes forte, para trazer à superfície os fantasmas, dar à carne um rubor de outro mundo. E audácia também, mesmo contra o descanso eterno: ter o nervo de escancarar as portas, todas as que sobre nós se fecham, e nos deixam um país de muros, vigiando todo o percurso do nosso sono. Alexandre O’Neill bem merecia isto, agora que já dormiu uns anos, descansou bastante, para que não se faça dele outra carcaça verbal no museu dos iletrados, e também para que não se habitue ao «interminável sono coração emparedado».
Vem um filme então, Um Filme em Forma de Assim, uma coisa sem aquele respeito que nos torna comadres, com o engenho de nos devolver aos lugares, a esses passos de cidade à solta, espavorida, viva, que os torna familiares, nas articulações dos seus encontros com aquele eco que nos fala e obriga ao diálogo, mesmo no mais íntimo abandono. João Botelho tem nos ossos um estudo de quase meio século a calcorrear aquelas ruas, e, por isso, quando chegou a pandemia, soube arrastar por um período de sete semanas a Rua da Escola Politécnica para um pavilhão na margem Sul, que parece bem mais real no filme do que se formos à rua no que resta, hoje feita outra coisa. Um cenário tão fiel numa altura em que o sonho ignorado recua até ao mais íntimo de cada um de nós.
O filme não é uma viagem fácil, embora haja nesta recriação do ambiente, no desdobrável daquela poesia, na sua voz contrafeita, revirando o «diz-que-diz-que da vizinhança», essas «pequenas conversas de ferrugem de musgo/ queixas/ questiúnculas/arrotos comoventes». Assim, remonta o enredo de outra forma, fazendo um laço dos aspetos grotescos, satirizando-nos e à nossa particular vileza de quem vai ajudando ainda a tecer as malhas como quem não quer a coisa. E, assim, da cidade que tantas mortes tem simulado – também ela muito dada a delíquios –, na mesma curva exemplar do tempo, levanta-se de novo algo mais que o murmúrio e a reza, aquela mesma atmosfera rarefeita e a vertigem das ruas, o tumulto das praças. De então, de repente ela volta, e é ela, e somos nós, os de sempre, «numa dor de esperança sem razão de ser».
Há um aspeto curioso neste filme que é o subtítulo, que nos fala num divertimento em tempo de pandemia. Como foi para um boémio inveterado ver a forma como ao longo de mais de dois anos se prescindiu desse outro lado da vida? E que boémia nos resta hoje?
Já não é bem a mesma coisa. O que há são regras, que tomaram conta de tudo. O que resta é uma coisa muito controlada. Na pandemia o que vi ganhar expressão foi precisamente o medo, esse que o O’Neill adivinhava que ia ter tudo, e tem. Vimos como a pandemia deu azo a que se expressasse este medo pelo Outro, um medo que leva a que, mesmo quando as pessoas querem fazer as coisas de forma clandestina, já não saibam exatamente como, porque se habituaram a essa forma de exibicionismo que tomou conta de todos os aspetos da nossa vida. Mas as regras impõem-se em tudo, e o que nos resta são esses locais de divertimento onde tudo parece coreografado. Liberdade é coisa muito difícil de se achar, até na noite. E de algum modo o desejo de liberdade foi convertido nesse desejo de exibicionismo.
E noutros tempos como foi?
Tenho memória de uma coisa de transição que foi muito mais engraçada. Aqueles bares do Cais do Sodré, que se enchiam de marinheiros, quando ali se procurava uma forma de divertimento que tinha a ver com escapar de todos os aborrecimentos e de todos os constrangimentos do dia-a-dia. A liberdade nascia das pessoas se descobrirem… umas nas outras. Aquilo que me anima é esse momento de transição, quando se troca uma coisa infeliz por outra que, por um bocado, tem aquele sabor ilimitado do sonho.
Aquela geração do O’Neill, Cesariny, Pacheco, César Monteiro…
Sim, os meus colegas mais velhos, que se reuniam nos cafés, no Vá-Vá e noutros, no Monumental. E havia o Bolero, havia toda uma rede meio decadente, eram umas coisas estranhas, onde era possível escapar, buscar refúgio… Depois um momento muito alto foi a invenção do Frágil, no Bairro Alto, pelo Manuel Reis. Ele foi o génio dessas invenções. Ali entravam pretos, brancos, azuis, havia artistas e não-artistas, gente que chegava muito fora da órbita. E depois dessa aventura no Bairro Alto, o Manuel Reis foi ainda responsável por abrir o rio. Eu lembro-me do rio tapado naquelas noites no Cais do Sodré. Estava tudo tapado pelos contentores, e quando ele inventou o Lux, transformou a impressão da cidade. Tomou conta daqueles armazéns, restaurantes, fez um acordo com o porto de Lisboa, e abriu a perspetiva sobre o rio. Durante a pandemia o que eu fazia era sair para passear horas à noite, ao longo do rio. Às tantas parecia uma cidade evacuada… ouviam-se os passos ao longe. Nunca tinha sentido aqui uma tão grande comunhão com o espaço.
Foi também um intervalo na entrega da cidade aos turistas.
Sim, alguns pudemos reaver a cidade. Foi uma outra forma de boémia, esses percursos que retomámos a sós. Não consigo estar acordado pela manhã, essas horas da luz a crescer ferem-me. Antes do meio-dia funciono com dificuldade. Se acordava mais cedo, o que via era essa cidade muito amofinada: as pessoas com as máscaras, em filas à espera dos transportes… Que cenário tão triste se via por aí. Felizmente, eu tenho este luxo que é poder fazer só o que gosto. E aquilo de que mais gosto é cinema. Este filme foi preparado como uma festa, uma celebração de agradecimento ao O’Neill. Sabe que ele era meu vizinho… e quando quis fazer o filme Um Adeus Português, fui ter com ele ali à Císter, onde era fácil apanhá-lo às tardes, e pedi-lhe para usar o título dele. Não tinha tanto a ver com tudo aquilo que estava na origem do poema, mas mais com a ideia expressa lá num verso, ‘esta pequena dor à portuguesa tão mansa quase vegetal’.
E sentiu isso ligado à sua própria vivência, depois da morte do seu irmão, e pela forma como a família evitava o assunto?
Sim. O meu irmão ainda morreu cá, nos exercícios de preparação para a guerra. Foi um acidente em que foram usadas munições verdadeiras, e ele foi apanhado… Tinha 19, era tão novo, pá. E o O’Neill fez uma coisa de uma grande generosidade: escreveu um texto no jornal onde dizia que me tinha dado o título, que era meu. Veio dizer que não fora roubado, não se tratava de uma apropriação, não, que agora o título era meu.
Não terá sido ele a sentir alegria por lhe aparecer um jovem cineasta que se inspirara nas coisas dele? Isto quando, até hoje, o O’Neill anda tramado com o engraçadíssimo, e parece só ser reconhecido pelos aspetos mais leves…
Claro. Há meia dúzia de pessoas que sabem, que sentiram o peso que há naquela obra. De resto, são cada vez menos as pessoas que leem, e até diminui o número das pessoas que têm sequer a capacidade de o apreender. E isto não é só com ele. Temos tantos outros, grandes e que não têm quem esteja minimamente à altura e possa preencher-lhes a sombra. Uma das coisas que me impulsionam nos últimos tempos é uma frase que li no Séneca: ‘Lucílio lê, meu filho, lê, que aumenta a inteligência’.
Um dos aspetos mais pregnantes neste seu filme está na forma como nos obriga a pensar a questão da homenagem, sendo que o próprio O’Neill refere numa das suas crónicas como muitas vezes apenas realizamos ‘gestos’ que exprimem uma certa má-consciência, por sermos incapazes de verdadeiramente honrar em vez de mumificar os nossos grandes espíritos.
Sim, são mal tratados vivos, e mal tratados nesse estéril refazimento da glória quando eles morrem. Isso é uma coisa muito à portuguesa: põe-se a virtude para um lado e os defeitos para o outro, como as espinhas. Como se estivessem a arranjar a sardinha. Mas como é que acaba Os Lusíadas?
Como acaba?
A última palavra, qual é? «Inveja». Pois é, daí não saímos. Vivos ou mortos, somos presas da inveja de quem fica. E as pessoas têm a tendência de recuar ao Estado Novo, às tantas décadas de repressão, mas é melhor irmos mais lá atrás, à Inquisição. Nunca mais nos levantámos disso, da inveja, da denúncia. Veja-se que no tempo do Salazar não foram precisos muitos Pides. Eram uns quatro ou cinco mil, mas contavam com essa rede de dois milhões de informadores. Um país de chibos! E é isso o que ainda somos. O problema é que os portugueses em si ainda são piores do que a Pide.
Não é o O’Neill, nem o Camões, nem aquele o outro que o dizem, isto está em todas as fontes, ao longo dos séculos, este sufoco, esta noção de um povo que vai ao limite da obediência, que vai para lá do que lhe é exigido, esta subserviência grotesca, e que, por isso, funciona bem em regimes que lhe dão as condições para dar largas a esse ânimo malévolo. Seja a Inquisição, seja o Estado Novo, sejam as atuais formas de exploração e sofrimento imposto aos mais frágeis.
Curiosamente, na geração que o antecede, temos muitos exemplos de tipos que marraram contra esta vigilância dos vizinhos… O Pacheco parece que fez o pleno das ofensas…
Era meu amigo, fez de Pessoa no meu primeiro filme. Andávamos sempre a passear. Eu adorava-o. O gajo ligava-me a dizer: ‘Ó João, já sei que o filme passou em Paris. Quero mais 20 escudos’. Eu gosto destes que subiam a direito pela montanha de cães.
Mas persiste em grande medida o modelo da Igreja, e seja quem for que atinja um certo grau de reconhecimento, trata-se logo de encomendar um serviço de canonização, em que depois é preciso livrarmo-nos logo das partes que mais interessam, que são as sujas, as porcas…
Sim, depois como eles não correspondem ao código que eles inventaram, afinal dão-se conta de que não serve, e começam a salgá-los, tiram-lhes as tripas, a ver se os lavam e purificam. Depois não sobrevive nada com inteireza, que é, de resto, o propósito dessas homenagens.
Como é que, na sua colaboração com Maria Antónia Oliveira, a biógrafa de O’Neill, chegaram à ideia que organiza este filme, a um elemento organizador quase compulsivo, em que as partes se engatilham umas às outras, e temos o poeta nas suas perceções a ver a sua voz desdobrar-se numa comunidade, num bairro…
A ideia foi minha. O que pedi à Antónia foi que me ajudasse a ligar as partes. Pedi-lhe que me ajudasse a ligar aquilo tudo, a contar alguns episódios da vida dele, uma vez que disso sabe ela muito mais do que eu. A ideia do plano sequência é uma ideia de respeito pelo texto, para não andar a cortar coisas, a tirar, daí que o respeito pela integralidade do texto ou do poema dê origem a uma exploração sem grandes cisões.
Como a Antónia sabe muito daquilo, no fundo, o que fez foi dar-me soluções, acrescentar aqui e ali; chamou-me à atenção de aspetos que não estavam de acordo uns com os outros, estabeleceu uma ligação essencial, que foi com o filho do O’Neill, o Afonso. Isso permitiu-nos mostrar aquelas fotografias do pai dele que ninguém conhecia.
E a família gostou?
Sim, sobretudo o Afonso, por achar que o filme tem impacto e mostra quem era e quem é o pai. Há aquela frase que descreve na perfeição o que ele faz: ‘A junção do erudito e do popular para encontrar o belo’. Isto é também uma boa definição do sr. O’Neill. O mais importante numa homenagem é que para cada autor – seja ele escritor, pintor, o que for – é encontrar um estilo, um registo que lhe seja fiel, só depois podes começar a falar dele. Neste caso, o texto tem de ser mais importante do que o raccord. É o texto que manda nisto, que me diz o que fazer com as personagens, como orientar os atores, como tratar o português.
Para mim é um gosto ouvir a língua ser dita da forma mais bela. O O’Neill tinha nele toda uma operação da vida, uma combinação dos elementos, uma relação das coisas, nos mais mínimos detalhes, que explodia numa festa. Ao mesmo tempo, entrávamos num café e ali estava ele, por detrás daqueles óculos, e era um homem delicado. E a verdade é que ele sempre foi um homem muito delicado; era-o nos textos, era-o no trato, na vida. Mas se as pessoas querem arrancar de um homem uma imagem simplória, vamos todos acabar vítimas da caricatura, do registo mais tacanho.
O seu esforço ao pegar em obras literários tem sido contrariar isso?
O que gosto nestes autores é a forma como se abrem, como são muitos. Também o Pessoa o que fazia era isto. Essa perceção foi muito importante para mim, porque eu também já estou farto do ‘Eu’. Não gosto, prefiro mil vezes o ‘Nós’. O mais importante na arte é sabermos usar de uma certa distância, respeitá-la – não só quem nós somos, mas o espaço que há entre nós. E é aí que entra a palavra, a forma como ela estabelece relações sem, no entanto, nos apertar. Gosto de ver as pessoas.
Desde há anos que a minha terapia é sentar-me pela tarde na Benard [Rua Garrett, no Chiado], e ficar a olhar as pessoas. Também o O’Neill era apaixonado por estes detalhes que sobram e que se podem ler sem entrar mais fundo, na intimidade. Há coisas que vão florindo à superfície, e, para quem gosta de pessoas, isso basta, já organiza e oferece uma perspetiva sobre o nosso caos interior.
É uma das coisas que se sente neste filme, na sua noção de ritmo, o hábito de se estar na rua, no café, na tasca ou no barbeiro, o favorecer do lado público contra o privado, o fascínio pelo espetáculo da vida nos seus aspetos habituais.
O cinema para mim obriga-me a isto, a estar sempre a pensar, a ter atenção às coisas. Mas depois do trabalho, eu gosto muito e preciso da vidinha. Nesse aspeto divirjo do que o O’Neill diz naquele poema, A poesia é vida? O que ele diz é: A poesia é a vida? Pois claro!/ Conforme a vida que se tem o verso vem/ – e se a vida é vidinha, já não há poesia que resista. Pois, eu não vejo as coisas assim. Gosto de trabalhar muito no meu cinema, mas depois prefiro que seja a vidinha a vir buscar-me quando deixo o trabalho. Nem tudo tem de ser tão sério. E também não gosto de confundir demasiado o trabalho com a vida. Por isso também fujo a que os meus filmes tenham um aspeto autobiográfico. Há uns pós que vão assentando, inclusivamente no Um Adeus Português, mas tento sobretudo refletir sobre o que está à minha volta.
E o que tem descoberto com estes filmes a partir de pontos culminantes da nossa literatura?
Que este é realmente um país de grandes poetas. Temos certamente excelentes romancistas: a Agustina, o Saramago… Mas esta nação que parece andar à deriva, a perder-se no mundo, depois tem estes tipos que se sentam nos cafés e nos viram a todos do avesso, e vão deixando os sinais de uma aflição e de um sentimento que nos liga a todos… E a poesia tem esse fôlego de composição e ação que é muito mais do que umas coisas para entreter, é a própria perspetiva que nasce e que nos situa face ao mundo.
E o que tenho procurado nestes filmes, seja o Filme do Desassossego, seja este, é atingir a emoção das pessoas por meio de elementos de abstração. Criar coisas que tenham um impacto sem ter de estar a contar uma história. E isso é uma coisa que me revolta no cinema que hoje se nos impõe, na forma como a sua gramática se reduz a esse modo de narrar histórias. Estamos a ver esses filmes que nos vão contando histórias que podem até ser diferentes mas que o fazem sempre da mesma maneira.
Houve aquela sua célebre intervenção num programa do Canal Q, em que estavam o Nuno Artur Silva e o Pedro Mexia a rir-se e a comentar em tom jocoso alguns aspetos do cinema português…
Sim, uns idiotas. São uns idiotas. Estavam ali a defender um populismo cultural que é sempre aquilo a que se agarram esses tipos mais conservadores. O que me fez estoirar foi o terem exibido um plano do Fernando Lopes, de Uma Abelha na Chuva, que é uma carruagem que vem, vem, vem… E é Carlos de Oliveira puro e duro. E estavam ali a arrasar aquilo… São uns idiotas. Mas depois exaltam o cinema popular português dos anos 30 e 40, que esse sim era uma treta, salvando-se uma coisa ou outra. Então o Mankiewicz, o Lubitsch, quer dizer, artistas, andavam a fazer os seus filmes e nós estávamos a rir-nos com o ‘Ó Evaristo, tens cá disto’. E ainda se riem do mesmo.
A partir dos anos 80 e 90 no nosso país, nesta geração que já herda os efeitos da revolução, e que começa a chegar aos jornais numa altura em que entram em Portugal os fundos europeus, toda essa geração que assume ideais liberais, mas que não deixam de ser, no fundo, bastante conservadores, e que idolatravam o Miguel Esteves Cardoso e o Paulo Portas…
Sim, mas esses eram engraçados, eram melhores.
Parece-lhe que isto tem a ver com uma cultura de privilegiados, de quem pensa a cultura a partir do gabinete, e não tem muito interesse senão em relação aos pequenos dramas da vida burguesa…
Sim, isso está em seguimento daquilo que tomou conta da televisão, uma televisão que nos apresenta sempre o mesmo, e que agora se estendeu aos computadores e telemóveis, e isso leva a que se for ver um desses filmes para os miúdos, com super-heróis, dá-se conta de que o cinema, hoje, teve de sobreviver ao facto de os adultos ficarem em casa, entregues às séries, aos programas de debate e comentário político ou sobre futebol. Assim, nas salas de cinema o que temos são miúdos com menos de 18 anos. Aquilo serve para estarem ali nuns encontros entre eles: comem, bebem, mais não sei o quê, já nem olham para o ecrã.
Daí que Martin Scorcese lhes tenha chamado filmes como parque de diversões.
Sim. Os bons cineastas norte-americanos já nem espaço têm para fazer filmes para adultos. No fundo, aquilo que nos matou a todos foi aquele filme do Spielberg, o Tubarão. Abriu a boca e comeu-nos a todos. A partir dali o cinema foi reinventado como um divertimento infanto-juvenil, e o cinema passou a ser uma extensão do centro comercial. Era mais um recinto onde se pudesse estar ali a comer e a beber. Como sabe, as salas de cinema fazem muito mais dinheiro com a Coca-Cola e a pipoca do que com o bilhete.
Eu não estou necessariamente contra a existência desse cinema, embora não eleve o pensamento, e acompanhe esse registo de captura da atenção que obriga a ter 5 mil efeitos num plano… Mas tudo bem, é um divertimento, e quando eu era miúdo também os havia, absolutamente inconsequentes. O problema é que não deixa espaço para mais nada.
Mas o cinema português, sobretudo nos autores mais novos, parece estar muito mais de acordo consigo do que com essa ideia do cinema como negócio.
Sim, eu sei. Mas no novo cinema português há um problema ao qual só escapam dois ou três dos melhores. O problema é que falam muito deles próprios, dos problemas que têm, das coisas que lhes passam. Voltamos ao «eu, eu, as minhas experiências, as minhas emoções, o meu bairro…» Vão ver como é com os outros, falem-nos de todos. Mas é difícil pedir-lhes isto, estão todos muito ensimesmados.
O problema é que as pessoas estão já satisfeitas, o que recebem da cultura chega-lhes, não há uma nova geração que deseje outras coisas, que tenha outros horizontes. Estamos no reinado do ‘Eu’ e ninguém sabe muito bem como sair disto. E é um ‘Eu’ que se traduz em imagens, não é sequer um movimento de autocrítica, ou de revelação de si, mas uma espécie de conformismo sem saída.
O individualismo tomou conta de tudo, é o resultado de uma geração mimada e protegida, que não acha que tenha de se bater pelas suas conquistas, que simplesmente tem um sentimento de que tudo lhe é devido. Estamos prisioneiros nesta redoma do ‘Eu’… «Eu penso isto…» Mais nada. Ninguém tem dúvidas, cada um diz de si, e fica-se por isso. Não há batalhas comuns, apenas este ruído de vozes procurando gritar umas por cima das outras. Todo o idealismo se abateu debaixo deste desejo de cada um triunfar sobre os outros. É-se muito mais contra isto e aquilo do que a favor de seja o que for.
O coletivo está sobre ataque?
Sim, e, por isso, a política fica sem objeto. Resta a gritaria. É preciso agora um movimento do ‘Nós’ contra o ‘Eu’. Temos de nos livrar dessa sanha que está a desarticular tudo, que nos aprisiona em ilusões tão limitadas. É preciso outro teatro, outro cinema, outros espaços de encontro, que nos façam ver que só o coletivo conduz à mudança. A privatização atingiu já as esferas mais íntimas, e estamos prisioneiros desta incapacidade de nos solidarizarmos, de nos encostarmos ao tipo que está mesmo ao nosso lado. Não tenho de competir com ele. A dádiva é a coisa mais importante do mundo. Não é a caridade, é a dádiva. Faz toda a diferença.