“O sistema de saúde, como está, não é sustentável”

A Universidade NOVA de Lisboa arranca na próxima semana com um ciclo de conferências sobre Saúde, a primeira sobre sustentabilidade – financeira, ambiental e social. José Fragata, vice-reitor e promotor das ‘Nova Talks’, diretor do serviço de Cirurgia Cardiotorácica do Hospital de Santa Marta, defende que a sustentabilidade só será possível em Portugal com uma…

Porquê a escolha do tema da sustentabilidade na saúde para o arranque destas conferências?
Acho que é mesmo a discussão que se deve ter. Se formos puristas na definição, sustentabilidade é conseguir manter algo com qualidade ao longo do tempo. É tentar garantir que deixamos aos nossos filhos, netos e bisnetos algo com qualidade, usável. Foi uma discussão que esteve sempre muito ligada ao ambiente, mas hoje percebe-se que há uma relação enorme entre ambiente, economia e saúde e entre todas as atividades da vida, como comprovam as 17 áreas dos objetivos de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas, das quais a Saúde é a número 3. Portanto, esta foi a nossa preocupação. Um dos objetivos desta equipa reitoral é que todos os alunos tenham contacto curricular com este tema, tal como com o empreendedorismo e com o digital. Estas Nova Talks vão abordar este triângulo de conhecimento. Somos talvez a universidade portuguesa com maior compromisso com a área da saúde. Publicámos recentemente um livro escrito por todos os investigadores desta área na Nova que vai desde as moléculas da vida à saúde global, passando pelas questões da gestão e economia da Saúde. Mas a nossa ideia com estas Nova Talks é que não sejam só para cientistas ou só para dentro, fazem parte de uma missão que assumimos de divulgar o conhecimento científico de uma forma acessível e promover o debate. Quando eu era pequeno, o meu pai que era engenheiro, deu-me um livro que era Os Lusíadas de Luís de Camões: Contados às Crianças e Lembrados ao Povo. E aqui a ideia foi a mesma: tentar trazer temas emergentes para sociedade civil para que as pessoas fiquem informadas sem fake news e sem distorções políticas.

Sente que o debate continua muito fechado na arena política?
Absolutamente, demasiado fechado. Tenho uma máxima: a saúde não é de direita nem de esquerda, é só má em si mesma. Claro que podemos tratar todos os assuntos de forma política e tudo será política, mas uma excessiva politização da discussão distrai-nos da essência daquilo que estamos a tratar. E de facto se há área em que esta discussão é mais necessária parece-me ser da saúde.

Nessa senda da sustentabilidade, costuma dizer-se que são precisos vários planetas para garantir o consumo humano. São precisos quantos SNS para garantir as necessidades de saúde da população?
Vários. Claramente o SNS que temos, que é de nobres tradições e de uma necessidade absoluta como se demonstrou na pandemia, precisa de ser encarado como um sistema de saúde. E tem de ser reformado porque é preciso perceber que se sendo os ideais da sua criação nobres, ao fim de 43 anos muita coisa mudou na medicina, na sociedade, nas exigências da população, nas ameaças. 

Vão focar-se em três dimensões da sustentabilidade: financeira, ambiental e social. Começando pela financeira, e estamos em fase de debate de um novo OE, em que o SNS tem mais de 700 milhões de euros mas continua a prever um défice de 1100 milhões de euros, concorda com a ideia reiterada esta semana pelo seu colega Pedro Pita Barros de que não são milhões que faltam à saúde mas uma melhor gestão?
Nesta conferência convidámos o professor Pedro Pita Barros para falar sobre a sustentabilidade económica, o professor Rui Nunes para falar sobre a sustentabilidade social e o meu colega João Queiroz e Melo, com quem comecei a trabalhar no Hospital de Santa Cruz e que nesta fase da vida tem estado muito focado na questão da sustentabilidade ambiental. Indo então à questão económica ou financeira: Portugal gastava em Saúde 9% do PIB e subimos para 10% ao longo do último ano. A média da OCDE é de 8,8%, portanto podemos dizer que Portugal está acima da média da OCDE.

Mas estamos a falar de despesa pública e privada.
Sim, é o que custa a saúde dos portugueses. Mas ainda antes disso, per capita dá 2100 euros. A Alemanha gasta 6600 euros, o que nos mostra como o PIB é bastante maior que o nosso. E logo aqui podemos ver que há um subfinanciamento da Saúde: não podemos se calhar gastar mais, porque é aquilo que produzimos, mas temos de pensar que compramos a maior parte do que gastamos em Saúde, equipamentos, dispositivos médicos que são caríssimos, medicamentos, etc, no estrangeiro.

E parte desta despesa é assumida diretamente pelos portugueses: as despesas diretas em Portugal são das mais elevadas na UE.
Era onde ia chegar. Por vezes, a leitura deste indicador é que o Estado gasta 10% com Saúde, quando não é isso que acontece. O Estado gasta 5,9% do PIB em saúde vindo dos nossos impostos. Os outros 41% são dispêndio direto do bolso dos portugueses, com uma taxa de esforço que na Europa é de 14% e em Portugal é muito alta. Portugal, pelo SNS, financia a saúde com a mesma taxa do PIB que o México, 6,1%. E aqui temos a primeira falácia da sustentabilidade da Saúde em Portugal: o dinheiro está a ser gasto mas vem de sítios errados, do bolso das pessoas.

Uma das alterações este ano será o fim das taxas moderadoras à exceção das urgências. No ano passado representaram 65 milhões de euros. Seguindo esse raciocínio, são uma gota de água dessa despesa.
Sim e por isso é mais um número, não digo de folclore, mas que não terá grande impacto no acesso e nos gastos diretos dos portugueses com saúde. E isto leva-nos às incongruências do SNS neste momento. É tendencialmente gratuito. A cobertura é universal, mas se isso foi revolucionário na altura em que o SNS foi feito hoje em dia não se concebe um sistema de saúde no mundo moderno que não tenha cobertura universal e na Europa, pelo menos oficialmente, não poderíamos deixar ninguém de lado. Agora o SNS para cumprir isto devia ser um promotor da equidade social, é aquilo que permite que pessoas com posses diferentes tenham o mesmo acesso à saúde. Isto é verdade de se o sistema chegar a todos. Se não chegar a todos da mesma maneira, o que vai acontecer é que um sistema que deve ser um promotor de equidade social se transforma num indutor de iniquidade ou desigualdade social. E é o que acontece quando temos este nível de despesas diretas: estes 40% de gastos com saúde feitos pelos portugueses vêm dos bolsos dos pobres e dos ricos.

Acredita que essa linha entre um sistema equalizador e um sistema indutor de desigualdade já foi ultrapassada no SNS?
Com toda a sinceridade acho que sim. Por isso é que acho que precisamos de uma reforma do sistema e partindo da noção de que o dinheiro já cá está. Estou de acordo com o Professor Pedro Pita Barros de que o problema não é necessariamente de dinheiro, apesar de achar que o sistema está subfinanciado, mas acho que a questão que se coloca neste momento é redistribuir melhor este esforço. Não é justo que as pessoas tenham uma taxa de esforço de 30% ou 40% para a saúde.

Chegou já a ser levantada a ideia de um seguro complementar de saúde, coberto pelo Estado para os mais pobres, para garantir acesso em áreas que o SNS não dá resposta: oftalmologia, dentistas. Acha que seria por aí?
A via é essa. Cito muitas vezes o exemplo holandês. Tem cobertura universal, uma forte assistência do Estado em termos financeiros e de regulação, garantindo o acesso das pessoas sem meios de subsistência e que os seguros não podem excluir as pessoas com incentivos de risco.

Pode explicar como funciona?
É baseado em dois seguros, um para a doença aguda e outro para a doença crónica. Todas as pessoas pagam uma taxa para a saúde obrigatória, independentemente de depois quererem contratar outros seguros por si próprios. Os mais frágeis e até aos 18 anos estão cobertos automaticamente e isto permite que os hospitais, que têm gestão privada, tenham resposta competitiva ligada a seguradoras que o Estado regula.

Mas isso seria o desmantelar do SNS, uma reforma radical.
Não necessariamente. Há uma grande confusão que se faz entre a obrigação do Estado de prover à saúde e o que temos que é financiar e prestar atos de saúde, portando do que deve ser o Serviço Nacional de Saúde ou o sistema nacional de saúde. O Estado deve ser responsável por nós termos segurança, água potável, eletricidade, condições de salubridade e saúde mas não está escrito em parte nenhuma que tenha de ser o Estado a prestar esses cuidados. Nós temos um sistema de saúde beveridgeniano, inspirado pelo serviço nacional de saúde inglês: são sistemas com forte inspiração estatal e de proteção social, aliás até por o serviço de saúde britânico ter sido criado no Reino Unido.

O sistema de saúde inglês tem tido uma crescente privatização e continua a ter os mesmos problemas de listas de espera, falta de staff, cama fechadas.
Certo, mas é isso que não vê por exemplo no sistema holandês, que é um dos exemplos de sistema de saúde bismarkiano. E repare, o sistema que nós temos já é híbrido: é por fundação beveridgeniano e por necessidade bismarkiano. Soubemos esta semana que três milhões de portugueses já têm seguro de saúde. Esta fatia de três milhões, que são um terço da população, terá ido arranjar um seguro de saúde porque confiava no SNS e porque estava seguro de que o SNS lhe permitia satisfazer as necessidades?

Não há também aqui algum aproveitamento? Há pouco tempo recebi uma chamada para venderem um plano de seguros e a introdução era: Numa altura em que as coisas estão muito más nos hospitais…’. Quando disse que já tinha seguro pelo trabalho, a postura era agressiva para que contratasse mais um.
Mas isso vai ao encontro do sistema holandês de que falava, em que estes seguros são muito assistidos e controlados pelo Estado até com mão de ferro. Temos de compreender que os seguros são um ramo de negócio baseado em risco e que na modalidade livre e liberal que temos façam as suas investidas para ter clientes. Um dos problemas que temos em Portugal é que as pessoas acabam por precisar de triplas coberturas. Eu tenho três seguros. Tenho a ADSE porque sou funcionário público, pago com os meus impostos o SNS e tenho um seguro privado para mim e para a minha mulher. Se não fizermos nada pelo nosso sistema de saúde, dentro de algum tempo certamente vamos cair num sistema que se vai inexoravelmente tornar mais liberal quando a saúde é um bem de cidadania.

Mas sente que três seguros são necessários?
Se estivesse totalmente seguro da capacidade de resposta sustentável no tempo, se calhar só tinha um. O meu encargo com seguros é de cerca de mil euros por mês para o meu agregado. Sou médico, conheço a medicina, porque será?

Mas pode explicar o que o leva a sentir que precisa de três coberturas?
O SNS temos todos mas nem sempre dá resposta atempada. A ADSE, e acho que devíamos migrar todos para uma grande ADSE, é uma mais-valia porque é um seguro que não tem exclusões e pagamos 14 anos mas não é um seguro de cobertura total, é um seguro de comparticipação. A ADSE paga cerca de dois terços ou três quartos da despesa.

Quando precisa de uma consulta mais rapidamente usa a ADSE?
Sim, mas repare que mesmo com a ADSE uma pessoa precisa de ter algum fundo de maneio. Se uma pessoa for ser operada ao coração num hospital privado pela ADSE pagará facilmente uns 4 ou 5 mil euros do seu bolso, porque não cobre tudo. Complementarmente uma pessoa contrata um seguro privado para ficar mais segura em relação à margem de despesa, pensando que não vai ter sempre a mesma capacidade económica. Quando tiver 80 anos, terá de pensar que tipo de capacidade vai ter. Mas repare não sou só eu que tenho três seguros e isto não devia ser necessário.

E seguramente muita gente não pode tê-los.
Óbvio e esse é o problema. Se o SNS cumprisse as funções para que está destinado, que é a cobertura universal e tendencialmente gratuita, estes cenários não existiam nem três milhões de portugueses tinham seguros de saúde. E não vejo esta questão a ser colocada nem nenhuma discussão sobre se o sistema deve continuar beveredigiano puro, se caminhamos para um sistema mais como o holandês ou francês ou se o Estado terá capacidade para pôr mais 40% de financiamento para que não haja o esforço que neste momento vemos em cima da população. Se o Estado está preparado para isso, então podemos ficar com este sistema. E mesmo assim estamos a falar de diferentes formas de assumir o financiamento, porque no caso da prestação, nesta área da saúde, penso que atualmente, com a competitividade que existe, penso que o modelo deveria ser a gestão privada. O Estado não tem de ter os hospitais como empresas públicas. Naturalmente esta não é a visão do Governo e estando em maioria, não será a visão da maioria dos portugueses, mas penso que lucraríamos muito mais com um sistema mais competitivo. O objetivo verdadeiramente é que a saúde dos portugueses esteja coberta com equidade, qualidade e de uma forma que seja sustentável economicamente para eles. 

Não vê defeitos na gestão privada?
Acho que é um erro pensar que o sistema público e o privado são assim tão diferentes em termos de motivação. O país é pequeno e os vasos são comunicantes, até nas pessoas. E por isso acho que deveria haver um sistema único de saúde que incorporasse público, privado, social, militar e que qualquer um de nós deveria ser livre de ir a qualquer uma destas instituições. Muitos países da Europa encontraram modelos mais integrados, até os ingleses, gerindo os hospitais em fundações.

Mas não houve nenhum país a fazer essa migração de um serviço público para um serviço misto.
É verdade mas não é por isso que não podemos pensar numa reforma. Deixemo-nos de lirismos até políticos: não é por colocar mais dinheiro no SNS que vamos resolver este problema, que vamos conseguir atrair mais pessoas para os hospitais públicos. Atraímos com reforma, com projeto, com uma visão. Este ano ficaram vagas por preencher nos internatos médicos. É gravíssimo. Significa que daqui a cinco anos saem menos especialistas. Porque é que estas pessoas viraram as costas ao SNS?

Não pode ser simplesmente porque querem fazer outro trabalho, desde logo podem trabalhar como tarefeiros indiferenciados nos hospitais públicos?
Mas isso já é uma perversão do sistema. Nenhum sistema de saúde pode assentar em tarefeiros que vão fazer um banco de urgência a hospitais distritais pagos se calhar ao mesmo preço que ganha um trabalhador normal de saúde num mês inteiro. Esta só é mais uma prova de que o sistema de saúde não está bem. O sistema de saúde como está não é sustentável.

É uma preocupação antiga. Vemos a população a envelhecer, os gastos a aumentar, agora a inflação e fatores que nenhum país controla sozinho. Quanto tempo acha que o SNS tem para se reformar sem haver uma rutura?
Acho que se não fizermos nada esse momento vai chegar e não é algo de um momento para o outro, vai acontecendo. E quando se fala com as pessoas, com as associações, vê-se que a sociedade civil está a pedir uma reforma do sistema de saúde, a população.

A população elegeu o Governo com maioria absoluta.
Não sei se a população na altura que o fez estava consciente disso. Temos listas de esperas grandes no SNS, que fazem com que tenham de recorrer ao setor privado e gastos proporcionalmente maiores do que noutros países. Não foi o setor privado que deu cabo do setor público. O setor privado tem emergido como cogumelos depois de dez anos de desinvestimento absoluto do sistema público. Não podemos culpar o setor privado por ter destruído o SNS. O SNS está a atravessar uma crise sem precedentes e o setor privado tem crescido, e ainda bem, para complementar essa falha. Estou à vontade porque sou um homem do SNS, dirijo um unidade importante na minha área, inovámos muito, mas agora tenho a noção clara pela desmotivação que vejo, pelo abandono sistemático de médicos e enfermeiros para o estrangeiro e para o setor privado, que o SNS não está a ter capacidade de se afirmar nesta competição que se criou.

As listas de espera para cirurgia estão abaixo do pré-pandemia. Sabemos que houve menos referenciações para os hospitais por causa da covid-19. Os doentes foram para o privado, vai haver aqui uma vaga de pressão nos hospitais?
Posso falar apenas pelos serviços que conheço. Vimos de um período em que o estudo de doentes e a referenciação caiu. Isso não foi culpa de ninguém, é óbvio, mas é um facto. Na oncologia foi muito significativo mas mesmo nós começámos a ver patologias que já não víamos, como infeções pulmonares arrastadas mal tratadas. Houve doentes oncológicos que perderam a sua janela terapêutica. Isto aconteceu em todo o lado e tem a ver com a boa e má resiliência dos sistemas de saúde, que se percebe numa emergência. Porque é que se fala agora tanto de resiliência? Resiliência é uma forma aguda de sustentabilidade. Quando a sustentabilidade é uma coisa tardia, a resiliência é o que permite que a gente se aguente. Não estivemos mal na pandemia, porque graças a Deus temos um SNS. Agora não podemos ficar com a sensação de que isso aconteceu porque o sistema responde à população. Temos indicadores diretos e indiretos. Ficamos muito melhor na fotografia dos indicadores indiretos publicados no que na realidade das coisas. Qualquer cidadão sabe da dificuldade que tem hoje em aceder à saúde. Mantemos ainda mais de um milhão de portugueses sem médico de família.

Esta semana José Miguel Júdice questionava na televisão porque é que todos os portugueses têm de ter médico de família. 
Tenho toda a consideração pelo José Miguel Júdice, que conheço bem, mas a peça fundamental do sistema de saúde, e permito-me discordar, é o médico de família.

Nessa lógica que poderia estar no público, privado ou misto?
Esqueça essa divisão artificial. Há um estereótipo que acaba por ser ideológico que divide a sociedade em público e privado mas na saúde isso funciona muito mal. Não podemos desperdiçar aquilo que o privado investiu, não somos um país rico. Mas mesmo aproveitando o setor privado de saúde, o advogado do doente tem de ser um médico de família em cuidados de proximidade, com uma imagem reabilitada e tem de ser ele a interface entre o doente e a referenciação para os hospitais. Essa é a pedra fundamental de qualquer sistema de saúde.

Até porque se qualquer pessoa puder ir aos médicos que quiser, fazer os exames que quiser, não há dinheiro que pague.
Exatamente. Mesmo o sistema holandês é baseado em médicos de família. Em Inglaterra, o modelo assentou sempre nos chamados General Practicioners (GP). Mais: Quando trabalhei em Inglaterra num serviço de cirurgia cardíaca, quando nos morria um doente, sabia que como médico hospitalar residente tinha dois telefonemas a fazer: tinha de ligar ao médico legista mas o primeiro telefonema era para o médico de referência daquele bebé, para o GP, para lhe agradecer a referência, para comunicar que o doente tinha falecido pedindo desculpa mas não tínhamos conseguido. Da mesma maneira que quando corria bem lhe telefonava a comunicar a boa notícia e explicar o que entendíamos sobre aquele caso. Isto é integração dos cuidados. A maior parte de nós precisa de prevenção e saúde e de um bom médico de medicina geral e familiar. Depois alguns de nós, em alguns momentos da nossa vida, precisam de ir ao hospital tratar de uma doença ou fazer uma operação. O que se passa é que a maior parte de nós vai ao hospital para tratar uma constipação e isso não pode ser.

Mas isso é também um problema de educação.
De educação e de recursos. Porque é que as pessoas estão aculturadas a ir a um hospital central, como se vê agora as pessoas a irem para os hospitais para fazer testes à covid? Seria cómodo e mais económico ir a um sítio perto de casa do que ir para a fila de um hospital, obviamente que se as pessoas não sentem essa facilidade vão para o hospital. A ideia de manter as taxas moderadoras para as pessoas evitarem ir é uma ideia certa, mas o caminho para resolver isso é desenvolver a medicina de proximidade. Sou médico hospitalar mas não tenho dúvidas nenhumas de que aposta na medicina de proximidade é mais segura e mais sustentável, lá está, até do ponto de vista ecológico. A saúde é um direito civilizacional, um direito de cidadania. Ficámos a perceber isso agora com esta dimensão global da saúde que a covid-19 nos deu. O mundo rico pensava que controlava a pandemia vacinando-se. De facto, sem haver uma abordagem global, continuará a haver pandemia. 

Falando agora da sustentabilidade social da saúde e desse direito de cidadania. Temos três consultas nos hospitais portugueses com tempos de espera média superior a mil dias. Não podia haver uma solução para estes casos extremos?
Um dos problemas do serviço de saúde é a distribuição de recursos. E essa é uma responsabilidade do Estado: garantir que cidadãos de qualquer ponto do país têm o mesmo acesso. É inaceitável mil dias de espera e é isso que leva as pessoas a gastarem o que gastam do seu bolso em saúde. Entre os que enfrentam esse tempo de espera tem pobres e ricos e os ricos tiveram muito mais capacidade de tolerar o esforço do que os pobres. Um dos indicadores em que nos saímos mal nas comparações é no esforço com despesas inesperadas na saúde.

As chamadas despesas catastróficas, que em Portugal atingem uma em cada dez famílias. Consegue dar um exemplo?
Na minha especialidade vejo doentes que vêm ter comigo por exemplo para pedir segundas opiniões, que não têm meios para ser operados no privado e que estão em lista de espera nos hospitais. Uma grande cirurgia digestiva ou cardíaca num hospital privado pode custar dezenas de milhares de euros. 

Com seguro?
Com seguro depende dos pacotes e das coberturas. E até a própria ADSE hoje evoluiu. Hoje em dia faço informações para a ADSE como faço para uma seguradora normal. Dantes qualquer doente apresentava-se no hospital com um cartão, fazia o que tinha a fazer e a ADSE pagava dois terços/três quartos. Hoje em dia propomos o procedimento e a ADSE faz perguntas como uma seguradora normal antes de aprovar, o que é normal, mas é o que é. Se esse dispêndio com a saúde for tolerado pelas pessoas é menos problemático: as pessoas também pagam rendas ou vão de férias. E é essa a diferença para um sistema como o holandês: as pessoas pagam 100 euros por mês de seguro para terem uma cobertura para doença aguda e doença crónica.

Além dos impostos?
Além dos impostos, sim, mas a taxa fiscal é mais baixa que a nossa. Parte dos prémios naturalmente acabam por ser financiados pelo Estado. O nosso sistema só precisava de um seguro aditivo desses, porque o dinheiro que se despende com a saúde é o mesmo. O Estado não vai por fixamente mais dinheiro na saúde. 
 
Fale-me da questão da sustentabilidade ambiental. Até pela experiência que tem no hospital, o que é que o preocupa?
Durante muito tempo não se pensou nesse impacto, mas basta ver que cada doente tratado produz facilmente quatro ou cinco quilos de lixo em pouco tempo. Quando comecei a trabalhar os campos eram de pano. Isso já não vai voltar a acontecer, por isso temos de pensar em formas de diminuir a nossa pegada ecológica.

O prof. João Queiroz e Melo tem-se batido pela reutilização de dispositivos médicos de uso único. Faz sentido? 
É um tema polémico mas que tem avançado em vários países e cá também com algumas experiências. A redução da pegada ambiental na saúde não se resume à reutilização de dispositivos. Começa pelo desenho de edifícios, pela economia da água, o reaproveitamento, painéis solares, até pelo uso da telemedicina. Gasta energia elétrica mas evita deslocações. E a pandemia ensinou-nos isso: há muitas situações que podem ser acompanhadas remotamente e isso vai ficar. Mas voltando à reutilização, utilizamos muitos dispositivos que podem ser recondicionados.

Questões como as infeções hospitalares são um dos receios? É um dos obstáculos?
Quando digo recondicionados não é serem lavados na torneira e postos a esterilizar. Têm de ser tratados por firmas próprias que fazem esse serviço. Está a ver que as companhias que vendem os cateteres não estão nada interessados nisso, mas costumo dar um exemplo: faço transplantes cardíacos e hoje em dia os doentes com insuficiência cardíaca invariavelmente têm desfibrilhadores, uns dispositivos que detetam arritmias e dão lhes um choque. Quando o doente chega para transplante, às vezes este desfibrilhador foi posto um mês antes. A primeira coisa que faço num transplante é tirar o aparelho e atiro-o para um balde de lixo metálico. O desfibrilhador que pesa aí uns 200 gramas cai no balde com grande barulho e digo ‘lá vão 35 mil euros’. Estes aparelhos podem hoje ser aferidos eletricamente, ser esterilizados por companhias especializadas e serem reutilizados. Só precisamos de um melhor enquadramento legal.

Creio que já no passado existiu. 
Sim mas é algo em que podemos investir mais e discutir. E isto leva-nos para outro ponto: Em Portugal, segundo números da OCDE de 2018, temos uma taxa de desperdício na saúde de 20% ou 21%. Significa que 10% do PIB que gastamos em saúde, há 20%, um quinto, que é desperdício. É muito.

Onde vê mais desperdício?
Redundâncias como exames repetidos, coisa que um bom sistema eletrónico de registo para a saúde resolveria e essa é uma das reformas de que precisamos.

O presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares propunha há umas semanas uma espécie de Visa da saúde.
Sim, porque é que uma pessoa com o seu cartão de saúde não pode usar os seus dados quando vai a qualquer sítio, seja cá ou no estrangeiro? Não imagina a dificuldade que há hoje em dia para aceder a dados de saúde. A pessoa liga, não está, não responde, não ficou arquivado, manda fazer outra vez. Outro fator de desperdício são os erros e complicações. Segundo um estudo da Escola Nacional de Saúde Pública, em que nós participamos, 11 em cada 100 doentes em Portugal que vão a um estabelecimento hospitalar sofrem uma complicação evitável. 

Esta semana houve esta polémica em torno de os médicos de família serem avaliados por indicadores como a ausência de IVG nas mulheres. Acha que era antes esses resultados que deviam ser avaliados?
É muito mais fácil em saúde avaliar o cumprimento de processos do que de resultados. Temos muito pouca tradição em avaliação em saúde. Houve alguma evolução, mas os sistemas de qualidade começaram sobretudo a avaliar o cumprimento de normas. Vamos a assumir que se eu lavar as mãos, se cumprir o protocolo, os meus resultados são bons. Penso que temos de fazer essa mudança para a avaliação do valor em saúde. Estou mais preocupado em saber se um doente que é operado às coronárias fica bem durante 20 anos, não tem de fazer outra vez cateterismos e se não morre de enfartes, se consegue jogar golfe, levar os netos à escola ou ir para o trabalho do que saber quantas operações são feitas. E isto prende-se com a sustentabilidade em saúde, por que só avaliando resultados conseguimos perceber o valor aportado pelo investimento que fazemos. A equação do valor em saúde foi definida por um americano chamado Michael Porter e, aqui na Europa, por Muir Gray, com quem estamos a trabalhar na faculdade. Ouvimos várias vezes pessoas do Governo dizer que fizemos mais 4 mil cirurgias, mais 30 mil consultas, mas não sei se eram precisas, se foram bem feitas. E a proposta era uma avaliação completamente diferente, com uma equação em que no numerador temos os resultados de saúde: quantos doentes sobrevivem e por quanto tempo, o seu grau de satisfação com o serviço, o modo como avaliam o seu estado de saúde. E depois divide-se isso pelo que se pagou para atingir esse resultado. Pensar assim não é um método economicista de ver a saúde, é uma promoção de qualidade e satisfação. 

Como se implementa?
É difícil, mas há muitas experências-piloto, cá no IPO no Porto ou nós em Santa Marta, mas a questão é o debate que isto devia suscitar e que não é de direita nem de esquerda. 

Mas acha que vai ser preciso definir a carteira de serviços do SNS? Chegou a falar-se no tempo da troika de um racionamento ético.
Racionamento é uma palavra terrível, mas racionalização não deve ser. Já Abraham Lincoln dizia no século XIX que nenhum sistema de saúde pode dar em cada momento tudo indiscriminadamente a todos. Não temos nenhum sistema no mundo que faça isso. Têm de ser feitas escolhas de razoabilidade e a forma de o fazer é avaliando resultados.

Mas na prática o que imagina que pudesse mudar?
Vamos pensar que o meu serviço hipoteticamente gera melhores resultados e consegue custos de produção mais baixos. Se quiser expandir o meu serviço hoje em dia não consigo. Luto com dificuldades de pessoal grande e apesar de ter lista de espera não consigo trabalhar mais. Se essa avaliação existisse baseada em custos e valor aportado à sociedade, poderia conseguir em vez de tratar mil doentes tratar 2000. 

É a discussão sobre como mudar o financiamento para se basear em resultados. Não é por exemplo o objetivo dos centros de responsabilidade integrada, relançados pelo atual Governo?
Mas a autonomia ainda é parca. Há três ou quatro perguntas sacramentais: quem dirige um centro de responsabilidade integrada pode contratar? Não. Pode despedir? Não. Pode pagar diferente aos seus colaboradores? Não. Pode gerir o seu orçamento? Não. Qual é o diretor de uma empresa privada qualquer que seja, e o meu serviço por exemplo tem um orçamento anual à volta de 12 milhões de euros, que consegue gerir bem nestas condições? A figura teoricamente é boa, mas o Estado vive mal com a partilha do poder.

Isso vai do diretor do serviço à administração do hospital.
Sim, a autonomia dos responsáveis pelos hospitais é muito pequena. A Saúde e as Finanças é que fazem a tutela conjunta do sistema. E então o poder de um diretor de serviço de empreender hoje em dia é inexistente. Estou em final de carreira, estou à vontade para o dizer.

O que gostava de ver ainda acontecer na saúde?
Começando pelos pedidos mais próximos, para o Natal, gostava que o meu serviço fosse aberto à capacidade máxima perante as listas de espera e já fiz vários pedidos sem sucesso. Mas para lá deste pequeno universo, gostava que a sociedade civil sentisse que para bem de todos era fundamental, de uma forma séria, sem espartilhos políticos, sem a divisão habitual do público e privado que já ninguém consegue tolerar, concentrarmo-nos sobre o que é essencial para a saúde e para a sua sustentabilidade. E não são questões prosaicas ou de paixão política, mas pragmáticas: perceber o que se passa nos outros países com os quais queremos comparar-nos e empreendermos uma reforma do SNS mantendo o que nele é bom. Se calhar tendo menos Estado mas melhor Estado, incorporando os outros setores num mesmo sistema, trabalhando em rede, com forte controlo regulatório do Estado de modo a reduzir a carga das famílias.

Esses já não são os pedidos só para o Natal. O que gostava de ver debatido na discussão do OE?
Uma reforma do sistema de saúde. O que vai acontecer é muito simples: não vai acontecer nada. Vamos construir três hospitais – o de Lisboa Oriental está previsto há 30 anos! Vão construir os hospitais e o sistema vai continuar o mesmo. E mesmo fazer serviços hospitalares não chega porque se continuarmos com uma debandada de médicos não sei quem é que vão pôr nos hospitais. Muitas pessoas dizem isto, antigos ministros da Saúde, médicos. É preciso alguém com capacidade para fazer uma reforma na Saúde.

Não esta confiante com a nova direção executiva para o SNS?
Todos os ministros da Saúde têm sido ministros do SNS basicamente. Talvez essa figura deixe mais tempo à tutela para olhar para a Saúde no geral. 50% da Saúde hoje em dia está no setor privado. Portanto percebo a bondade da ideia de uma figura gestora e reguladora para o SNS, mas o que precisamos é de olhar para a Saúde no seu conjunto. O objetivo não é manter o SNS, é manter a saúde dos portugueses. Não podemos confundir o fim com os meios. Winston Churchill costumava dizer uma frase que para mim é lapidar: ‘Never let a good crisis go to waste’. Nunca deixem que uma crise se desperdice e as nossas oportunidades têm estado a esgotar-se. Espero que estas Nova Talks sirvam para que as pessoas percebam que devem reclamar uma reforma do sistema de Saúde para que os filhos e os netos tenham um sistema de Saúde com as características que vimos no SNS, de cobertura universal e equidade social, que neste momento já não representa.