A polémica em torno do ‘chumbo’ do Tribunal Constitucional da lei dos metadados, e dos seus eventuais efeitos retroativos, tem feito levantar opiniões dissonantes um pouco por todo o país. Apesar de António Costa ter anunciado que a decisão do TC não teria efeitos retroativos, houve, no entanto, quem discordasse das declarações do primeiro-ministro, e houve quem concordasse. António Costa assegurou que a decisão do Tribunal Constitucional em questão não afetaria casos transitados em julgado, valendo-se da Constituição: “Chamo a atenção que o artigo 282 número 3 da Constituição da República é muito claro: as declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral não afetam os casos julgados, a não ser quando o Tribunal Constitucional não ressalva essa consolidação do caso julgado”, o que, defende o PM, não aconteceu neste caso. “Ou seja, os casos julgados são casos julgados”, concluiu António Costa.
Ainda assim, surgiram dúvidas sobre o assunto, especialmente numa altura em que se teme que milhares de processos possam ser postos em causa devido a esta decisão do TC, entre eles os quase 8 mil processos relacionados com burlas do MBWay, que estão muito associados ao acesso aos metadados dos suspeitos.
Efeitos retroativos
Paulo Otero, constitucionalista e professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, é sucinto na resposta à dúvida levantada: nos casos de processos que transitaram em julgado, não há efeitos retroativos. “São processos inbeliscáveis”, explica o constitucionalista, onde predomina o “princípio da intangibilidade, ou da imodificabilidade do caso julgado”. “Em princípio, a decisão não tem efeitos retroativos neste sentido. Tudo o que foi julgado pelos tribunais e não é passível de recurso mantém-se na ordem jurídica. Fica ressalvado o caso julgado”, explica, deixando uma ressalva: “Poderia, em matéria sancionatória, seja penal, disciplinar ou contraordenacional, se fosse mais favorável ao arguido, poderia o caso julgado ser afastado. Mas, para isso, era necessário que o Tribunal Constitucional o tivesse permitido, e ele nada diz sobre a matéria. O acórdão do TC não se pronuncia sobre esta matéria, logo ficam ressalvados os casos julgados”.
Aula
Quem também se pronunciou sobre o assunto foi o bastonário da Ordem dos Advogados, Luís Menezes Leitão, que, por sua vez, assumiu que os efeitos retroativos da decisão do TC serão uma realidade. “Efeitos retroativos tem sempre. É claríssimo, face quer à decisão do TC, quer à própria decisão do Tribunal de Justiça da UE que, no acórdão de abril do ano passado, já tinha dito que não era lícito restringir os efeitos retroativos da declaração de ilegalidade da diretiva. Neste quadro, efeitos retroativos terá sempre”, disse o bastonário ao i.
Também Jorge Bacelar Gouveia, através de uma publicação no LinkedIn, fez questão de dar uma ‘aula’ de Direito Constitucional Penal. “O art. 29º, nº 4, da CRP, afirma que ‘Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos pressupostos, «aplicando-se retroativamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido»’”, começa por explicar o constitucionalista, partindo para a sua tese: “Sempre que subsista uma nova norma penal mais favorável ao arguido ou condenado (aqui, por maioria de razão), que pode ser uma norma que ‘puna menos’ ou que ‘deixe de punir’ em comparação a norma anterior que deixou de se aplicar – e tanto faz se tal sucedeu por invalidação pelo TC ou por simples revogação como ato legislativo de opção de política criminal –, aplica-se a factos passados a norma que pune menos ou a norma que nada pune”.
Assim, por sua vez, Jorge Bacelar Gouveia admite que a decisão do TC tem, efetivamente, eficácia retroativa. “Ainda que na minha opinião essa restrição pudesse existir e não fosse inconstitucional, não foi essa a decisão do TC e só a tenho de respeitar, mesmo de que dela discorde totalmente”, conclui.
Pimeira vítima
A decisão do Tribunal Constitucional gerou, ontem, a sua primeira ‘vítima’. O Tribunal de Aveiro acabou por adiar o início do julgamento de um caso de corrupção na morgue da cidade, de forma a que o coletivo de juízes se possa pronunciar sobre uma eventual “contaminação” das escutas telefónicas incluídas no processo. “É nosso entendimento que não é conveniente darmos início à audiência, correndo o risco de estar a dar andamento e a produzir provas eventualmente com um âmbito mais abrangente do que aquele que poderá ser necessário”, revelou a magistrada que preside ao coletivo que irá julgar o caso.